quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

A Iara (Conto do folclore brasileiro), de Francisca Júlia



A IARA
(Balada tupi)


Rio abaixo descia a veloz igara impelida pelo remo. Um moço tapuio, belo como os mais belos da sua tribo, robusto e valente, cantava à proa, a meia voz, uma canção melancólica, em que dizia os combates que ferira contra as tribos inimigas, as mágoas que sofrera longe dos seus, nas perigosas caçadas pelo sertão bravio.
A igara corria. As águas espumavam em torno.
A tarde ia descendo. Uma tristeza crepuscular invadia as várzeas. Pássaros selvagens recolhiam-se em bando, vagarosamente, as asas abertas, cortando o ar em longos e regulares giros.
O sol há muito tinha caído. A lua, do alto, espiava, destacando-se na transparência do azul como uma mancha luminosa.
"Tapuio, tapuio! volta a tua canoa, corta a correnteza das águas, foge e entra na taba dos teus pais antes que a noite chegue.
Durante a noite, sob a claridade pálida da lua, a Iara aparece à flor d'água. Ela tem os cabelos loiros como as barbas do milho; os dentes brancos como o granizo que cai com as grandes tempestades; os olhos azuis como o céu nas madrugadas do estio.
Não te aproximes dela, tapuio! Em seu palácio encontrarás a morte.
Foge, tapuio, foge!"
A Iara, à tona do rio, o corpo envolvido na onda dos cabelos de ouro, a cabeça airosa apoiada numa das mãos, tem os olhos fixos no céu, embevecida na contemplação dos astros.
Há um grande silêncio. As folhagens estão mudas; a viração que passa é tão leve, tão branda, que as roça apenas sem as agitar.
A igara continua a correr, rio abaixo, impelida pelo remo.
A Iara canta:
"Nunca olhos humanos fitaram beleza igual à minha. Minha boca é perfumosa como a flor do vale rociada da neblina matinal.
Todas as noites, à flor d'água, acordo o silêncio da mata com as sonoridades do meu canto. E quando o sono me vence e me vai obrigando a fechar as pálpebras, desço ao meu palácio de ouro, que fulgura no fundo do rio, onde se acumulam os maiores encantos da terra."
O tapuio apareceu.
Aproximou-se cada vez mais, os olhos presos na Iara, fascinados de admiração e espanto, deslumbrados de encantamento.
Prevendo o perigo a que se expunha e a morte horrível, tentou, com um movimento rápido do remo, voltar à proa da igara e fugir. Era tarde. Seus músculos estavam frouxos, seus braços pendiam amolecidos de cansaço. E a Iara foi-se chegando a ele, resvalando de onda em onda...

O tapuio resiste. Ela agarra-o, envolve-lhe o corpo na túnica longa dos cabelos, e leva-o para o fundo do rio. As águas abriram-se, espumaram, fecharam-se sobre os dois e foram escorregando pelas várzeas em flor. 


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Ano de publicação: 1899
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2022)

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