Vivia um velho muito avarento quase sempre
fechado em casa, servido por submissa criada, também idosa, e tendo por
companhia um gato. Não dava nada a ninguém nem queria falar com pessoa alguma,
receando que lhe pedissem esmola.
Chegou o Entrudo e uns rapazes da vizinhança
resolveram enganar o avarento, que era ao mesmo tempo um grande finório.
Vestiu-se um deles com fato muito poeirento e remendado, a fingir de pobre
pedinte que vinha de longe, e foi bater à porta do velho. Tanta lamúria fez que
a criada o deixou entrar para a cozinha. Veio o avarento e não gostou da graça,
mas, como o rapaz fazia muito bem o seu papel de tontinho, deixou-o ficar,
achando até graça às perguntas que ele fazia, e respondendo a tudo às avessas.
Assim dizia o rapaz:
— O senhor como se chama?
— Santo Judeu.
Bem sabia ele que tal não era, mas fingiu
acreditar, com cara de muito pateta. Viu a cama onde dormia a criada, e
perguntou:
— E aquilo o que é?! Responde o velho:
— É o cabo da folgança.
— Sim senhor, bonito nome! — Olhou para o
lado, viu o gato e disse:
— Ui que bicho tão feio! O que é?
— É um animal chamado pilpirratos.
Como a velha estava a fiar estopa, perguntou:
— E aquilo que a sua criada está a fiar como
se chama?
— Calhamandras.
— Muito engraçado nome! E o que está naquele
pote?
Era água, pois vinho nunca lá tinha entrado
em casa.
— Aquilo é abundância (respondeu o velho por
troça).
— Sim senhor. E como se chama esta casa onde
vive?
— Isto não é casa, é altas miras.
— Bom; agora que já vi tudo, há de dizer-me o
que é que ali tem pendurado? — Era um presunto e chouriços que estavam no
fumeiro.
— Aquilo (disse o avarento, fingindo-se muito
admirado)?! Pois também não sabe o que tenho ali?!
— Eu, não senhor! É coisa que nunca vi.
— Pois admira! Aquilo é Jesus Cristo e os
Apóstolos.
Chegou a hora de se irem deitar, e o rapaz
dizia consigo:
— Deixa estar, meu velhote, que eu te direi
se tu ris mais do que eu!...
Mal viu tudo sossegado, abriu a porta aos
companheiros. Foram ao fumeiro tiraram os chouriços, pegaram num bocado de
estopa, ataram-na ao rabo do gato e começaram a gritar:
— Levanta-te, Santo Judeu,
Desse cabo da folgança,
Que fugiu o pilpirratos
Com as calhamandras no rabo.
Se a abundância lhe não acode
Lá se vão as altas miras!
Altas miras, senhor meu amo!
Fique-se com Jesus Cristo
Que nós cá vamos com os Apóstolos!
Enquanto o velho se levantava, todo aflito, safaram-se
os rapazes com os chouriços e foram, a rir, contar a história. Não sem
desatarem a estopa do rabo do gato, que afinal não tinha culpa nenhuma das
avarezas do velhote.
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Origem: Portugal.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)
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