Era uma vez um Rei que tinha uma filha e
desejava casá-la antes de morrer, para não haver guerras e questões na sucessão
à Coroa.
A Princesa era muito bonita e servida com o
maior esmero por suas aias, damas e açafatas; de modo que não havia quem, nesse
tempo, a igualasse em elegância e beleza.
Ora um dia, uma das aias que a estava
toucando, encontrou-lhe um piolho.
Houve grande alvoroço no Palácio por este
acontecimento aflitivo e nunca visto, pois que jamais em cabeça de linda e
esmerada Senhora se encontrara uma coisa assim, horrenda e baixa.
O Rei, informado pela grande dama Camareira-mor,
do espantoso fato, imediatamente ordenou que esse imundo animal fosse metido
numa saca de farinha, para engordar.
Depois de ali estar algum tempo o piolho
tomara tais proporções que logo o Rei mandou que da sua pele se fizesse um
pandeiro.
Assim fizeram, correndo tudo em grande
segredo. Quando o pandeiro estava pronto, o Rei deu um grande jantar,
prevenindo os convidados, Príncipes e Fidalgos da mais alta jerarquia, de que
os destinos do País dependiam daquele banquete, pois que a Princesa havia de
casar com aquele que adivinhasse de que era feito o pandeiro...
A Princesa, que gostava dum nobre Cavaleiro
que, embora não fosse de sangue real, era da mais nobre estirpe, pôs-se à
janela e quando ele passava disse:
— Da pele do piolho se fez o pandeiro!...
Foi, porém, tão infeliz que não a ouviu o
Fidalgo, e quem ficou sabendo o segredo foi um velho aleijado que andava a
pedir esmola. E este, percebendo que para o Cavaleiro que passava tinham dito
aquelas palavras, não lhas quis repetir.
Quando o jantar já ia no fim e todos os
convidados ardiam em desejos de ver o pandeiro e adivinhar de que que era
feito, tornando-se, o que tivesse tão boa sorte, noivo feliz da linda Princesa
e herdeiro da Coroa, o velho Rei mandou-o buscar com todo o cerimonial. Correu
o pandeiro de mão em mão, mas, por mais que todos o virassem e revirassem,
ninguém adivinhou de que era ele feito.
Nesta ocasião, o pobre pedinte que ouvira a
Princesa, e traiçoeiramente se queria aproveitar da sua sorte, chegou à sala do
festim e gritou:
— Da pele de piolho se fez o pandeiro. —
Ficaram todos muito tristes, e a Princesa chorava como se pode imaginar, pois
em lugar do belo e nobre Cavaleiro que esperava, tinha por noivo um velho
aleijado, feio e pedinte. Ofereceram ao homem muito dinheiro, honras e terras
para desistir do casamento. Mas, ambicioso e mau, teimou em só querer o
cumprimento da promessa, que era a mão da Princesa herdeira, pois assim, um
dia, ele, o Mendigo, seria senhor de todo aquele País, e mandaria em todos, e
se vingaria dos fortes e formosos, fidalgos e ricos.
O Rei arrepelava as barbas, com desespero,
dizendo maldições à loucura com que quisera entregar à sorte a escolha de um
bom marido para a sua filha. Mas como "palavra de Rei não volta
atrás", a Princesa, para que a palavra do Rei seu Pai fosse cumprida,
tinha por força de casar com o miserável mendigo.
Então a Princesa, revoltada e triste, disse
que a palavra do Rei só a obrigava ao casamento, mas não a viver no Palácio
Real, e que, casando, teria a condição do marido que lhe era imposto, e o
acompanharia pelo mundo e com ele faria a vida errante de pedinte.
Ninguém acreditou, porém, naquelas palavras
que exigiam dela novos tormentos.
Casaram na Igreja e, à saída, a Princesa
disse para o mendigo, já seu marido:
— Sei que foram apostados guardas para te
matarem à entrada do Palácio. Agora, que a palavra do Rei está cumprida, não
haverá na Corte um só homem que te aceite como Senhor. Cedo ou tarde te
matarão. E eu nada posso ainda para te defender. O remédio é fugirmos já. E
assim cumprirei eu também a minha palavra, fazendo a vida que tinhas, de
vagabundo mendigo.
Isto dizia a Princesa, porque tudo preferia a
viver na Corte, e perante os que a tinham conhecido feliz, envergonhada por
aquele casamento que a má sorte lhe tinha imposto.
O mendigo temeu-se da morte violenta, e ao
mesmo tempo imaginou que a miséria e o cansaço depressa fariam com que a
Princesa lhe pedisse para regressarem ao Palácio, e que seria então bem
acolhido, ao voltar com a herdeira da Coroa, quando todos a tivessem por
desaparecida para sempre.
Fugiram do Palácio, logo depois do casamento,
e lá foram, déo em déo, pela estrada fora. Andaram, andaram, até que saíram do
Reino e chegaram a uma floresta onde encontraram um rio que a cortava ao meio.
A Princesa, cada vez mais amargurada, não
fazia senão pensar na forma de fugir àquele martírio e vergonha. E a morte já
lhe parecia um grande benefício. Mas, ao mesmo tempo, a esperança de melhores
dias não a queria abandonar.
Cansada e triste, parou ali e disse para o
companheiro que tinha muita sede e que lhe desse uma pouca daquela água. O
mendigo alegrava-se de a ver assim desanimada, esperando a todo o momento que
ela exigisse o regresso ao Palácio e às comodidades a que fora habituada. E,
porque era muito mau, foi-lhe dizendo que estava no começo das suas provações,
e que tudo era para castigo do seu orgulho de Princesa, e que para isto quisera
a sorte que ele, e mais ninguém, ouvisse o aviso que da janela do Palácio fora
dado sobre a pele do pandeiro. Que nem um copo teria para beber água, devendo
contentar-se por ele poder agora dar-lha no seu velho e sujo chapéu.
E dizendo isto, com um riso escarninho,
dirigiu-se para o rio, e debruçou-se a encher de água o chapéu sebento.
Com o que ouvira, a Princesa ficou ainda mais
indignada, e, num impulso de revolta, decidiu fugir a um homem tão mau, e
deitou a correr para a floresta.
O mendigo ergueu-se de repente, para a seguir
e prender, mas com isto desequilibrou-se e caiu dentro do rio.
A cheia era grande, com as chuvas de inverno
que tombavam das montanhas, e o mendigo não se pôde segurar, e foi levado na
corrente. Já quando estava a afogar-se, fez um esforço e, estendendo o braço
com raiva, amaldiçoou a Princesa, que corria, espavorida. E, desesperado,
feroz, rogou-lhe a praga da mudez.
Sentindo-se imediatamente sem fala, a
Princesa desatou a chorar e internou-se mais na floresta onde passou a noite
sozinha, cheia de pavor, ouvindo os gritos e uivos dos animais bravios e o
grasnido e piar agourento de aves, sem bem saber se lhe fora melhor a morte que
tal vida.
Apesar dos farrapos com que se disfarçara
para acompanhar o vagabundo, a Princesa mostrava bem ser uma das mais formosas
damas do seu tempo. Mas, de que lhe servia toda a beleza, se não era mais do
que uma pobre mendiga muda?!
No dia seguinte, um Príncipe que por ali
andava à caça, viu-a e achou-a tão bonita e desgraçada, que, cheio de respeito
e piedade, lhe estendeu mão protetora, esforçando-se por compreender a sua dor.
Nobre e generoso Cavaleiro, sabendo bem a proteção que se deve aos fracos e aos
infelizes, o Príncipe levou-a para o Palácio, dizendo ao Rei seu Pai:
— Saiba Vossa Majestade que encontrei esta
Senhora perdida na floresta. E fiquei tão preso de amor por ela que não
procurarei outra esposa, se a sua mudez tiver algum remédio.
Concordou o velho Soberano, porque a Princesa
era de tal forma linda e atraente que muito bem se compreendia o entusiasmo do
Príncipe.
Chamaram então os Médicos de todo o Reino e
do Estrangeiro, que fizeram consultas e deram à Princesa remédios sem conta.
Mas tudo foi inútil! Por mais que todos os Sábios a tratassem, a Princesa Muda
não podia dizer uma palavra, e só por gestos e lágrimas exprimia a sua gratidão
e mágoa.
Assim foram passando sete anos, sem que
jamais o Príncipe perdesse a esperança de ver a formosa Senhora recobrar a
fala, para poder, então, dar-lhe a mão de esposo, e a seu lado, feliz e
satisfeito, sentar-se no Trono e tomar as rédeas do governo. Com o Príncipe e
com a Princesa estavam também a vontade e o amor do povo, que na infelicidade,
bom coração e beleza da Princesa Muda encontrara motivos para lhe dedicar maior
simpatia.
Mas o velho Rei é que não quis mais delongas
e, em nome da razão de Estado, chamou o filho e disse-lhe com autoridade:
— Que era tempo de se mandar procurar noiva,
porque a menina encontrada na floresta, não recobrava a fala; e assim não era
possível consentir em tal casamento, embora compreendendo o seu amor por ela,
pois nunca se vira no Trono uma Rainha Muda.
O Príncipe chorava a sua mágoa e a sua
revolta, mas teve de resignar-se à tristeza da sorte.
Foi então mandada buscar uma Princesa que
estava já designada e pedida, e o Príncipe, apesar do seu amor pela Princesa
Muda, não teve remédio se não obedecer ao Rei, seu pai e senhor. Com a morte na
alma viu resolvido o casamento e marcado o dia para o celebrar. Ordenara o
Príncipe, que a Muda fosse servida como Princesa e vestida como tal, resultando
que ela se apresentou mil vezes mais formosa do que todas as outras.
Quando estava já o cortejo disposto a seguir
para a Igreja, a noiva, cheia de despeito, ao ver a formosura da Princesa Muda
e a opulência dos seus vestidos reais, gritou:
— Olha a Muda Mudaça, as grandes sedas que
arrasta!...
No meio do assombro geral, respondeu-lhe a
Princesa Muda, voltando-se, cheia de dignidade e desprezo:
— Olha a senhora Ladrocaça, que ainda hoje
chegou e já falou. E eu, há sete anos que aqui estou, é a primeira fala que
dou!...
Mal o Príncipe soube do acontecido, correu,
cheio de alegria, a dar a mão à sua verdadeira noiva, pois era a escolhida do
seu coração, e, despedindo a intrusa, declarou que só casaria com a Muda, que,
recobrando a fala completamente, lhe contou toda a sua vida.
O Príncipe mandou logo um emissário ao pai da
Princesa, que ficou satisfeitíssimo por tornar a ver a filha, que julgava
perdida, e demais a mais vê-la casada com um tão perfeito Príncipe, herdeiro
dum grande Reino, vizinho dos seus Estados.
Houve grandes festas e regozijos, vivendo
muito ano, e sempre alegres e felizes, o Príncipe fiel ao seu amor e a Princesa
que, para o encontrar e por ele ser salva, passara tanta desgraça. A sorte
muito a experimentara mas, afinal, para seu maior bem.
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Origem: Portugal.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)
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