CAPÍTULO 1: PETER PAN
Quem já leu as Reinações de Narizinho deve estar lembrado daquela noite de circo,
no Pica-pau Amarelo, em que o palhaço havia desaparecido misteriosamente. Com
certeza fora raptado. Mas raptado por quem? Todos ficaram na dúvida, sem saber
o que pensar do estranho acontecimento. Todos, menos o gato Félix. Esse figurão
afirmava que o autor do rapto só poderia ter sido uma criatura — Peter Pan.
— Foi ele! — dizia o gato Félix. —
Juro como foi Peter Pan.
Mas quem era Peter Pan? Ninguém sabia,
nem a própria Dona Benta, a velha mais sabida de quantas há. Quando Emília a
ouviu declarar que não sabia, botou as mãos na cinturinha e:
— Pois se não sabe trate de saber. Não
podemos ficar assim na ignorância. Onde já se viu uma velha de óculos de ouro
ignorar o que um gato sabe?
Dona Benta calou-se, achando que era
mesmo uma vergonha que o gato Félix soubesse quem era Peter Pan e ela não — e
escreveu a uma livraria de São Paulo pedindo que lhe mandasse a história do tal
Peter Pan. Dias depois recebeu um lindo livro em inglês, cheio de gravuras
coloridas, do grande escritor inglês J. M. Barrie. O título dessa obra era Peter Pan and Wendy.
Dona Benta leu o livro inteirinho e
depois disse:
— Pronto! Já sei quem é o Senhor Peter
Pan, e sei melhor do que o gato Félix, pois duvido que ele haja lido este
livro.
— Está claro que não leu — observou
Emília. — Ele só lê ratos — com os dentes...
— Se leu, conte, vovó! — gritou
Narizinho. — Andamos ansiosos por ouvir a história desse famoso menino.
— Muito bem — disse Dona Benta. — Como
hoje já é muito tarde, começarei a história amanhã às sete horas. Fiquem todos
avisados.
No dia seguinte, de tardinha, a
curiosidade dos meninos começou a crescer. Às seis e meia já estavam todos na
sala, em redor da mesa, à espera da contadeira. Emília olhava para o relógio
pensativamente. Quem entrasse em sua cabeça havia de encontrar lá esta
asneirinha: "Que pena os relógios não andarem de galope, como os cavalos!
Nada me enjoa tanto como esta maçada de esperar que chegue a hora das coisas —
a hora de brincar, a hora de dormir, a hora de ouvir histórias..."
Pedrinho matava o tempo arrepiando
xises no veludo de uma velha almofada — com o dedo. E Narizinho, no seu vestido
novo de rosinhas cor-de-rosa, fazia exercício de "parar de pensar" —
uma coisa que parece fácil mas não é. A gente, por mais que faça, pensa sem
querer.
Faltava o Visconde. O velho sábio,
depois que se meteu a estudar matemática, fazia tudo com "precisão
matemática", que é como se diz das pessoas que não fazem as coisas mais ou
menos, e sim certinho. Quando bateu sete horas ele entrou, em sete passadas,
cada uma correspondendo a uma pancada do relógio. Logo depois surgiu Dona
Benta.
— Viva vovó! — gritaram os meninos.
— Viva a história que ela vai contar!
— berrou Emília.
Dona Benta sentou-se na sua cadeira de
pernas serradas, subiu para a testa os óculos de aro de ouro e começou:
— Era uma vez uma família inglesa...
— Espere, Sinhá! Não comece ainda —
gritou lá da copa tia Nastácia. — Eu também faço questão de conhecer a história
desse pestinha. Estou acabando de lavar as panelas e já vou.
Dona Benta esperou que a negra
chegasse, apesar do protesto da Emília, que disse: — "Bo-ba-gem! Para que
uma cozinheira precisa saber a história de Peter Pan?"
Tia Nastácia veio e escarrapachou-se
no assoalho, entre o Visconde e a menina. Só então Dona Benta começou de
verdade.
— Havia na Inglaterra uma família
inglesa composta de pai, mãe e três filhos — uma menina de nome Wendy
(pronuncia-se Uêndi), que era a mais
velha; um menino de nome João Napoleão, que era o do meio; e outro de nome
Miguel, que era o caçulinha. Os três tinham o sobrenome de Darling, porque o
pai se chamava não sei quê Darling. Esses meninos ocupavam a mesma nursery numa linda casa de Londres.
— Nursery?
— repetiu Pedrinho. — Que vem a ser isso?
— Nursery
(pronuncia-se nârseri) quer dizer em
inglês, quarto de crianças. Aqui no Brasil, quarto de criança é um quarto como
outro qualquer e por isso não tem o nome especial. Mas na Inglaterra é
diferente. São uma beleza os quartos das crianças lá, com pinturas engraçadas
rodeando as paredes, todos cheios de móveis especiais, e de quanto brinquedo
existe.
— Boi de chuchu, tem? — indagou
Emília.
— Talvez não tenha, porque boi de
chuchu é brinquedo de meninos da roça, e Londres é uma grande cidade, a maior
do mundo. As crianças inglesas são muito mimadas e têm os brinquedos que querem.
Os brinquedos ingleses são dos melhores.
— E os brinquedos alemães, vovó? Ouvi
dizer que há na Alemanha uma cidade que é o centro da fabricação de brinquedos.
— E é verdade, meu filho. Nuremberg:
eis o nome da capital dos brinquedos. Fabricam-nos lá de todos os feitios e de
todos os preços, e exportam-nos para todos os países do mundo.
— E aqui, vovó?
— Aqui essa indústria está começando:
Já temos algumas fábricas de bonecas e outras de carrinhos, cavalinhos de pau,
trenzinhos de folha, patinhos de celuloide, gaitas de assoprar, etc. etc.
Pedrinho declarou que quando crescesse
ia montar uma grande fábrica de brinquedos da maior variedade possível, e que
lançaria no mercado bonecos representando o Visconde de Sabugosa, a Emília, o
Rabicó etc. Todos gostaram muito da ideia e Dona Benta voltou ao assunto.
— Pois é isso. Aquela nursery era um encanto. Imaginem que
quem tomava conta das crianças era a Nana.
Alguma criada?
Não. Uma cachorra muito inteligente.
Era Nana quem dava banho nas crianças, quem as vestia para dormir e tudo mais —
e muito direitinho.
Na noite em que a nossa história
começa, Nana estava cochilando perto da lareira, com a cabeça entre as patas,
enquanto no cômodo pegado o Senhor e a Senhora Darling se preparavam para uma
visita a uns parentes. Quando o casal saía de noite quem ficava tornando conta
dos meninos era sempre a cachorra. Nisto o relógio bateu oito horas — bem, bem, bem, bem, bem, bem...
— A senhora errou, Dona Benta! —
berrou logo Emília, que não deixava escapar coisa nenhuma. — A senhora só bateu
seis bens.
Dona Benta riu-se.
— Não faz mal — disse ela. Os dois que
faltam ficam subentendidos. Mas o
relógio bateu oito horas e Nana ergueu-se e espreguiçou-se, porque a ordem da
Senhora Darling era fazer a criançada ir para a cama a essa hora justa. Depois
Nana acendeu a luz elétrica.
— Como?
— Ela sabia agarrar com a boca a chave
da luz e torcer. Estava acostumada a fazer isso. Acendeu a luz e foi ver os
pijamas de cada um. E foi ao banheiro abrir a torneira de água quente e fria,
experimentando a água com a pata para ver se estava no ponto.
— Que danada! Por que a senhora não
nos arranja uma cachorra assim, vovó?
— Porque vocês só querem saber de
onças e rinocerontes e bichos esquisitos. Mas deixem estar que ainda ponho um cachorrinho
aqui em casa.
— E há de chamar-se Japi! — gritou
Emília, que sempre fora a botadeira de nomes. — Mas continue Dona Benta. A Nana
encheu a banheira e que mais?
— Preparou a água do banho e foi
buscar o Miguel, que era o menorzinho, e Miguel veio montado nela, dando
esporadas. Nana fê-lo apear-se e entrar n’água, e foi fechar a porta para que
não houvesse corrente de ar. Depois de acabado o banho, deu o pijaminha para
Miguel vestir e levou-o para a cama.
Nesse momento a mãe dos meninos entrou
no quarto para ver se estava tudo em ordem. Animou a todos, um por um, prometeu
um passeio ao jardim zoológico, para que vissem a enorme goela vermelha do
hipopótamo e o pescoço que não acaba mais da girafa. Depois contou uma história
linda.
— Que história ela contava? — quis
saber Emília.
— Quantas existem. As mesmas que já
contei a vocês e muitas outras. Depois distribuiu beijos, dizendo: —
"Agora tratem de dormir." Acendeu urna lamparina de luz muito fraca,
apagou a luz elétrica e ia saindo na ponta dos pés, quando notou uma sombra
esquisita na parede — uma sombra que vinha da rua. Voltou-se de repente e viu
do lado de fora o vulto dum menino.
Assustou-se, está claro, porque as boas mães se assustam por qualquer coisinha e correu a
fechar a vidraça. Fez isso tão depressa que a sombra não teve tempo de
retirar-se e foi guilhotinada. Por
essa e outras é que as tais vidraças de subir e descer, como as nossas aqui do
sítio, são chamadas "vidraças de guilhotina".
— E que é guilhotina? — perguntou
Emília, que pela primeira vez ouvia essa palavra.
Dona Benta explicou que era uma certa
máquina de cortar cabeça de gente, inventada por um médico francês de nome Guillotin.
Isso durante o terrível período da Revolução Francesa, um tempo em que cortar
cabeça de gente se tornou a preocupação mais séria do governo. E Pedrinho, já
lido na História do Mundo, lembrou que o próprio Doutor Guillotin teve a sua
cabeça cortada por essa máquina.
— Bem feito! — exclamou Emília. — Quem
manda...
— Bom, chega de guilhotina — gritou
Narizinho. — Continue, vovó. A Senhora Darling guilhotinou a cabeça da sombra e
que fez depois?
— Ao ver cair no chão a cabeça da
sombra, como se fosse um pedaço de gaze negra, ela murmurou: — "Que fato
estranho!" — Depois abaixou-se, pegou a cabeça da sombra e examinou-a à
luz da lamparina, com cara de quem diz: — "Nunca ouvi contar dum fato
semelhante! São dessas coisas que até parecem invenção". Em seguida dobrou
a sombra, bem dobradinha, guardou-a na gaveta de Wendy e retirou-se do quarto,
pensativa.
— E os meninos? — indagou Narizinho. —
Nada viram?
— Os meninos nada perceberam. Quando a
Senhora Darling deu com a sombra na parede, eles já estavam caindo no sono.
O quarto ficou mergulhado em silêncio
profundo. Todos dormiam, e até a chama da lamparina parecia cochilar, de tão
quietinha. Mas de repente essa luz tremeu três vezes e apagou-se.
— Por quê? — indagou Narizinho.
— Algum besouro — sugeriu Emília.
— Não — disse Dona Benta. — É que
havia entrado pela janela uma pequena bola de fogo.
— Como havia entrado pela janela, se a
janela estava fechada? — berrou Emília.
— Isso não sei — disse Dona Benta. — O
livro nada conta. Mas como fosse uma bola de fogo mágica, o caso se torna
possível. Para as bolas de fogo mágicas tanto faz uma janela estar aberta como
fechada. Ela acha sempre jeito de entrar. Do contrário não valia a pena ser
bola mágica. Entrou e começou a esvoaçar em todas as direções, muito aflitazinha,
como quem anda atrás de alguma coisa.
— Já sei — interrompeu Narizinho. —
Estava procurando a cabeça da sombra.
— Talvez fosse isso, — concordou Dona
Benta — porque depois de várias voltas pelo ar a bola parou defronte do armário
de Wendy e entrou na gaveta pelo buraco da fechadura.
— E houve um incêndio, já sei! —
gritou Emília. — Bola de fogo em gaveta de armário é incêndio certo. A cidade
de Londres vai ser destruída...
— Credo! — exclamou tia Nastácia, que
estivera cochilando e acordara naquele ponto. — Não fale assim, Emília, que é
mau agouro.
— Não houve incêndio nenhum — disse
Dona Benta. — Bola de fogo mágica não pega fogo nas coisas.
— Então que aconteceu?
— Nada. A bola ficou na gaveta, e
nesse mesmo instante a janela foi erguida pelo lado de fora. A cabeça dum
menino apareceu. Apareceu, espiou de todos os lados e pulou para dentro do
quarto sem fazer o menor barulho.
— "Sininho, Sininho! Onde está
você, Sininho?" — indagou ele em voz baixa.
— Tlin,
tlin, tlin, — foi a resposta da bola de fogo lá dentro da gaveta.
O menino dirigiu-se pé ante pé na
direção dos tlins, abriu a gaveta e
remexeu-a toda, até encontrar a cabeça da sombra. Pela cara alegre que fez
via-se que era o dono dela.
— Que engraçado! — exclamou Emília. —
Só agora noto que todos nós temos a nossa sombra, que é só nossa, mas não de
gaze, como a desse menino. É de ar preto.
— E que fez ele, vovó, depois de achar
a sombra? — perguntou a menina.
— Que fez? Tirou-a da gaveta,
desdobrou-a e tratou de emendá-la no resto, porque desde que a Senhora Darling
desceu a janela ele ficou com a sombra sem cabeça — ou decapitada. Mas isso de emendar sombra não é coisa fácil. Exige
prática. O menino tentou primeiro grudá-la com cuspe. Não grudou. Lembrou-se de
a colar com sabão. Também não colou. O menino sentiu-se atrapalhado.
— Se fosse eu — disse Emília —
experimentava uma bisnaga de cola-tudo. O que cola tudo, deve colar sombra
também.
— E onde achar a tal bisnaga de cola-tudo?
— Todas as nurserys devem ter uma bisnaga de cola-tudo para colar os brinquedos.
Eu, se fosse a Senhora Darling...
— Está bem, Emília, mas pare de falar.
Não atrapalhe mais. Continue vovó.
Dona Benta continuou:
— A cabeça não colava de jeito nenhum,
de modo que o menino foi tomado de grande desespero. Isso de ter sombra sem
cabeça parece ser uma coisa terrível; pelo menos o era para aquele menino, pois
escondeu a cara nas mãos e, pôs-se a chorar tão alto que Wendy acordou e
sentou-se na cama, muito admirada.
— "Por que está chorando?" —
indagou ela.
Em vez de responder, o menino enxugou
depressa os olhos com as costas da mão e fez um bonito cumprimento com o gorro
vermelho. Depois disse:
— "Há muito tempo que eu ando
querendo saber qual é o seu nome."
— "Meu nome é Wendy Darling"
— respondeu a menina. — "E o seu?"
— "Peter Pan."
— "E onde mora o Senhor Peter
Pan?"
— "Moro na rua das casas, número
das portas."
Wendy riu-se daquela molecagem e puxou
prosa. Conversa vai, conversa vem, ficou sabendo que Peter Pan era um menino
sem pai nem mãe, que vivia solto pelo mundo e agora estava muito atrapalhado
por ter perdido a cabeça de sua sombra.
— "Não; gruda nem com sabão"
— disse ele fazendo bico.
— "Bobo!" — exclamou Wendy
rindo-se. — "Com sabão está claro que não gruda. Sabão só gruda nota
velha. Sombra tem que ser costurada com retrós, quer ver?" — e sem esperar
pela resposta saltou da cama, foi à sua mesinha de costura e trouxe de lá uma
agulha já enfiada. Ajeitou a cabeça da sombra no resto da sombra e num instante
alinhavou-a com retrós preto. Ficou que ninguém percebia a emenda.
— "Pronto! Vê como está bem
agora?"
Peter Pan pulou de contentamento. Deu
várias voltas pela nursery, num
verdadeiro namoro com a sua sombra consertada.
— "Eu sou mesmo um
danadinho!" — exclamou por fim, todo cheio de si.
Tamanha gabolice espantou Wendy Ela
havia consertado a sombra e o prosa chamava para si as honras! Já se viu uma
coisa assim?
— "Danado, você?" — disse a
menina com ironia. — "Se fui eu quem costurou a sombra, como o danado pode
ser você?"
— "Sim" — disse o menino; —
"você ajudou um pouco, não nego."
— "Ajudou!..." — repetiu
Wendy imitando-lhe o tom de voz. — "Pois nesse caso, passe muito bem! Não
gosto de gente gabola."
Disse e pulou para a cama, deitando-se
e cobrindo a cabeça com a colcha.
Peter Pan desapontou e fez cara de
arrependido.
— "Oh, não se ofenda, Wendy! Eu
tenho este defeito. Sou gabola de nascença. Quando qualquer coisa de bom me
acontece, ponho-me sem querer a contar prosa. Seja boa. Perdoe-me. Reconheço
que uma menina vale mais do que vinte meninos."
— Isso também não! — protestou
Pedrinho. — Só se é lá na Inglaterra. Aqui no Brasil um menino vale pelo menos
duas meninas.
— Olhem o outro gabola! — exclamou
Narizinho. — Vovó já disse que louvor em
boca própria é vitupério.
Wendy — continuou Dona Benta —
enterneceu-se com o tom daquelas palavras e sentou-se de novo na cama,
descobrindo a cabeça. Estava risonha e contente.
— "Peter Pan" — disse ela —
"você bem que merece um beijo. Quer?"
O menino ficou no ar, sem compreender.
Menino sem mãe é assim, nem beijo sabe o que é. Beijo! pensou consigo. Que
seria isso de beijo? Com certeza era aquele copinho de prata que Wendy tinha
posto no dedo quando tomou a agulha para coser a sua sombra. Não podia ser
outra coisa.
— "Quero" — respondeu ele, e
foi logo tirando o dedal do dedo de Wendy e colocando-o no seu, certo de que
beijo queria dizer dedal. Depois, para retribuir a gentileza, perguntou à
menina se ela aceitava um beijo dele.
— "Aceito, sim" — respondeu
Wendy, que estava achando muito curioso aquilo.
— "Pois tome este" — disse Peter
Pan, arrancando um dos botões de seu casaco e apresentando-o com toda a
seriedade.
— Já sei — gritou Emília. — Beijo para
ele significava presente, um presente qualquer. Que bobíssimo!
— Wendy — continuou Dona Benta —
recebeu o botão e ficou de olhos postos em Peter Pan. Súbito, perguntou:
— "Que idade você tem, Peter
Pan?"
— "Não sei. Só sei que sou
bastante criança. Fugi de casa no mesmo dia em que nasci."
— "No mesmo dia em que nasceu?
Que ideia! E por que, meu caro?"
— "Porque ouvi uma conversa entre
meu pai e minha mãe sobre o que eu havia de ser quando crescesse. Ora, eu não
queria crescer. Não queria, nem quero nunca virar homem grande, de bigodeira na
cara feito taturana. Muito melhor ficar sempre menino, não acha? Por isso fugi
e fui viver com as fadas."
Wendy quase perdeu a fala de tanto
gosto, ao saber que estava diante dum menino conhecedor de fadas. Ela ouvia sua
mãe contar histórias de fadas, mas não havia nunca falado com alguém que as
conhecesse pessoalmente.
— "É verdade isso, Peter? Há
mesmo fadas ou você está a mangar comigo?"
— "Verdade, sim, Wendy. Não
muitas, mas há."
— "E de onde vêm elas?"
— "Então não sabe, Wendy? Parece
incrível! Não há quem não saiba disso..."
— "Pois eu não sei. Conte."
— "Foi assim. A primeira fada apareceu no mundo do dia em que a primeira
criança nascida deu a primeira risadinha."
— "Oh, nesse caso deve haver uma fada para cada criança no Inundo, porque todas as crianças dão uma primeira risadinha" — observou Wendy.
— "Assim devia ser" —
confirmou Peter Pan, — "se as fadas não fossem as criaturas mais fáceis de
morrer que existem. Morrem como passarinhos. Cada vez, por exemplo, que uma
criança diz que não acredita em fadas, morre uma."
Aqui tia Nastácia interrompeu a
narrativa para dizer:
— Para mim esse menino estava
empulhando Dona Wendy. Estou velha e só vi fada nas histórias.
— Cale a boca! — berrou Emília. — Você
só entende de cebolas e alhos e vinagres e toicinhos. Está claro que não
poderia nunca ter visto fada porque elas não aparecem para gente preta. Eu, se
fosse Peter Pan, enganava Wendy dizendo que uma fada morre sempre que vê uma
negra beiçuda...
— Mais respeito com os velhos, Emília!
— advertiu Dona Benta. — Não quero que trate Nastácia desse modo. Todos aqui
sabem que ela é preta só por fora.
— É o pigmento — disse o Visconde. —
Isso de brancuras e preturas não passa de maior ou menor quantidade de
pigmentos nas células da pele.
Emília, que não sabia o significado de
pigmento, veio logo com a sua célebre respostinha: — "Pigmento é o seu
nariz" — mas Dona Benta apoiou o Visconde, dizendo que era aquilo mesmo,
que os pretos são pretos porque têm muitos pigmentos na pele.
— Mas que é esse tal pigmento, vovó?
— Pigmento é como os sábios chamam
qualquer substância colorida que tinge os tecidos duma planta ou dum organismo
animal. A rosa vermelha é vermelha por causa dos pigmentos vermelhos que tem
nas pétalas e os negros são negros por causa dos pigmentos negros que possuem
na pele.
— Quer dizer — observou Emília — que
se os pigmentos de tia Nastácia fossem cor de burro quando foge, ela não seria
negra e sim uma burra fugida...
— Chi, meu Deus do Céu! — exclamou
Narizinho. — Como a Emília está asneirenta hoje...
— É a lua — disse tia Nastácia. — Já reparei que em tempo de lua cheia Emília dá para espirrar bobagem que nem torneira aberta que a gente quer tapar com a mão.
Emílio botou-lhe a língua e Dona Benta
prosseguiu:
— Mas vamos ao caso. Vocês me
interrompem tanto que a história não pode chegar ao fim. Peter Pan contou a
Wendy como as fadas nascem, e ao falar em fada lembrou-se da bola de fogo que
havia entrado na gaveta. Era uma fada, essa bolinha, e muito sua amiga. Uma
fada que fazia tudo que as outras fadas fazem, menos falar. Sua fala não
passava daquele tlin, tlin, tlin, de
campainha de prata.
Assim que Peter Pan se lembrou da bola
de fogo, ou Sininho, como era o seu nome, um tlin, tlin zangado se fez ouvir dentro da gaveta.
— "A pobre!" — exclamou
Peter Pan. — "Deve estar furiosa comigo por ter-me distraído com você e
esquecido dela. Sininho é ciumentíssima."
De fato. Sininho saiu da gaveta
furiosa. Esvoaçou pelo quarto por uns instantes, indo afinal esconder-se num
canto, emburrada. Eram ciúmes de Wendy. Mas a menina não deu nenhuma
importância àqueles maus modos; continuou a conversar com Peter Pan como se não
houvesse visto nada.
— "Vamos, Peter Pan!" —
disse ela. "Conte-me mais alguma coisa da sua vida. Conte onde mora, mas
de verdade."
— "Moro com os meninos
perdidos."
— "Fiquei na mesma. Quem é essa
gentinha? Nunca ouvi falar em meninos perdidos."
— "Meninos perdidos são os
meninos que caem dos carrinhos nos jardins públicos quando as amas se distraem
a namorar os soldados. Se as mães deles não conseguem encontrá-los no prazo de
quinze dias, eles são remetidos para a Terra do Nunca, onde quem manda sou eu.”
— "Que engraçado!" —
exclamou Wendy. — "Terra do Nunca! Está aí uma terra que eu não sabia que
existisse. As geografias não falam dela. E depois? Que ideia a sua, de aparecer
por cá esta noite?"
— "Eu costumo vir sempre" —
respondeu Peter Pan — "para escutar do lado de fora da janela as histórias
tão lindas que sua mãe conta. Tantas vezes vim que sou capaz de repetir uma por
uma todas as histórias que vocês já ouviram."
— "Mas como é lá na Terra do
Nunca?"
— "Oh, uma terra linda, Wendy!
Temos piratas terríveis num grande lago, temos alcateias de lobos famintos que
percorrem a floresta e temos uma tribo de índios ferozes, os Peles-Vermelhas,
como são chamados. E temos ainda as sereias."
— "Sereias?" repetiu Wendy
batendo palmas. — "Com cauda?"
— "Com cauda, escamas e tudo. Sereias iguaizinhas a essas que você vê
pintadas nos livros. Uma lindeza, Wendy!"
Wendy não cabia em si de encantamento
ante as maravilhas contadas por Peter Pan: Ele, porém, alegou que era tarde e
tinha de ir-se embora.
— "Os meninos perdidos já devem
estar inquietos com a minha ausência, e ansiosíssimos por ouvir o fim da
história que a Senhora Darling contou hoje. Já sabem a primeira parte. Eu venho
cá, ouço as histórias ali da janela e depois conto-as a eles direitinho."
— "Não vá ainda!" — pediu
Wendy. — "Eu sei mais de cem histórias, cada qual mais bonita, e se você
ficar eu as contarei todas. Fique."
— "Mais de cem histórias? Oh, que
mina!" — exclamou Peter Pan, batendo palmas. — "Nesse caso o melhor seria
ir você comigo para a Terra do Nunca. Poderá contar todas essas histórias aos
meninos perdidos, poderá ainda remendar a roupa deles, pregar botões e de noite
fazê-los dormir — tudo como a Senhora Darling faz aqui. Oh, Wendy, venha comigo..."
A tentação era enorme. Visitar um país
daqueles, com feras e piratas e índios e sereias, e ter ainda toda aquela
meninada para brincar! Que bom não seria... Mas a menina vacilava.
— "Não posso, Peter Pan. Mamãe
não o consentiria nunca. E além disso deve ser muito longe essa terra."
— "Que importa que seja longe?
Iremos voando, e para quem voa não há distâncias."
— "Voando? Mas eu não sei voar,
Peter Pan! Que ideia..."
— "Eu ensino, não seja essa a
dúvida. Em dois minutos deixo você voando que nem uma andorinha."
Aquilo era demais. Era ainda melhor do
que ver sereias. Voar, voar... Wendy não pôde resistir à tentação: resolveu que
iria. Em todo caso, duvidou um pouco.
— "Já disse que ensino" —
assegurou Peter Pan com firmeza. — "Eu, quando digo, faço."
— "E ensina também ao Joãozinho e
ao Miguel? Se formos para lá temos de ir todos."
— "Ensino, sim, claro que ensino.
Está resolvida? Vai mesmo?"
— "Estou resolvida, vou!" —
respondeu Wendy com firmeza — e pulando da cama foi acordar os irmãozinhos.
João Napoleão e Miguel sentaram-se na
cama esfregando os olhos, e logo que souberam do caso, deram pulos de
contentamento. Gostavam de piratas e sereias ainda mais que Wendy e portanto
ficaram ainda mais assanhados. Queriam partir incontinenti.
— "Isso, não!" — disse Peter
Pan. — "Antes de mais nada vocês precisam tomar umas lições de voo."
— "É fácil voar?" — indagou
Miguel.
— "É assim" — e Peter Pan
deu uma demonstração, esvoaçando pelo quarto como se fosse uma borboleta.
Vendo a facilidade, os meninos
tentaram fazer o mesmo. Subiram às camas, ergueram os braços e atiraram-se. Mas
foi só tombo. Esborracharam-se no tapete.
Peter Pan riu-se.
— "Não é assim, meninos. Eu tenho
de soprar em vocês um pó mágico que certa fada me deu" — e dizendo isto
sacou do bolso uma caixinha do pó mágico e soprou uma pitada no nariz de cada
um; depois mandou que experimentassem, que subissem às camas, erguessem os
braços e dessem outro pulo para o ar.
Os meninos experimentaram e com grande
assombro viram que estavam leves como plumas e que podiam equilibrar-se no ar
com a maior facilidade.
— "Estou que nem esses
balõezinhos de borracha que mamãe enche de gás" — disse Miguel. —
"Estou sem peso nenhum!" — e voou quase tão bem como Peter Pan. Por
falta de experiência os três voadores deram algumas cabeçadas no forro, mas
alguns minutos depois estavam que nem uma andorinha que havia ficado presa no
quarto dois dias antes.
Vendo-os nesse ponto, Peter Pan achou
que não era preciso mais.
Podiam partir.
— "Muito bem" — disse ele. —
"Podemos partir. Sininho seguirá na frente, para indicar o caminho. Em
segundo lugar vou eu com Wendy. Depois vai João Napoleão e por último, Miguel.
Aprontem-se para partir.
Foi uma correria. João Napoleão quis
levar uma porção de coisas, mas teve que desistir porque ficaria muito pesado.
Miguel correu ao vestíbulo da casa em busca dum gorro e como não o encontrasse
veio com uma cartola do Senhor Darling na cabeça. Wendy resolveu ir como
estava, de camisola mesmo.
— "Pronto?" — perguntou
Peter Pan.
— "Pronto" — responderam
todos.
— "Então vamos lá. Um, dois e...
três!"
Ouviu-se um prrrrr... e ergueram-se nos ares os quatro meninos, na ordem
mareada pelo chefe e com a bola de fogo voando à frente para indicar o caminho.
E lá se foram para a maravilhosa Terra do Nunca...
Justamente naquela hora Mrs. Darling
estava na sala de jantar contando ao marido a história da sombra. O Senhor
Darling sorria.
— "Impossível, querida. Isso há
de ser sonho. É um absurdo."
Nisto soou o prrrrr... Julgando que fosse alguma coruja que houvesse entrado na nursery, a Senhora Darling correu para
lá. Ao ver a janela aberta e as três camas vazias, deu um grito e desmaiou.
Neste ponto Dona Benta interrompeu a
história, deixando o resto para o dia seguinte. Todos gostaram muito daquele
começo e Narizinho observou que as histórias modernas são mais interessantes
que as antigas.
— Estou notando isso, vovó — disse
ela. — Nas histórias antigas, de Grimm, Andersen, Perrault e outros, a coisa é
sempre a mesma — um rei, uma rainha, um filho de rei, uma princesa, um urso que
vira príncipe, uma fada. As histórias modernas variam mais. Esta promete ser
muito boa. Peter Pan está com jeito de ser um diabinho levado da breca.
Dona Benta concordou que sim.
— Eu só não entendo uma coisa disse
tia Nastácia. — Como é que a tal senhora... como é mesmo?
— Darling.
— Isso. Não entendo como é que a
Senhora Darling foi deixar a janela aberta. Quarto de criança a gente não deixa
de janela aberta nunca. Entra morcego, entra coruja — e entram até esses diabinhos,
como o tal Peter Pan.
— Boba! — exclamou Emília. — Se ela
não deixasse a janela aberta não podia haver essa história. Se você fosse a mãe
· dos meninos deixava a janela fechada, não é? E que aconteceria? Cortava a
cabeça da história logo no começo.
— Estou desconfiado — disse Pedrinho —
que o tal pó mágico de Peter Pan era o nosso pó de pirlimpimpim.
— E quem nos garante que o tal
Peninha, que deu a você o pó de Pirlimpimpim, não seja esse mesmo Peter Pan?
Aquela história do Peninha ser invisível está me parecendo arteirice de Peter
Pan para nos empulhar.
— Pode ser. Tudo pode ser — concordou
Pedrinho, pensativo.
Houve um silêncio. Cada qual pensava
numa coisa. Tia Nastácia pensava na franga que tinha de matar para o almoço do
dia seguinte. Dona Benta pensava num remendo a fazer no paletó de Pedrinho.
Pedrinho pensava num jeito de arranjar mais pó de pirlimpimpim. Narizinho
pensava num meio de fazer Peter Pan vir visitá-la no sítio. O Visconde não
pensava em coisa nenhuma. E Emília?
Emília saíra da sala pé antepé sem que
ninguém percebesse, e logo depois voltou com a tesoura de Dona Benta na mão. E
deu jeito de cortar a cabeça da sombra de tia Nastácia, que enrolou e foi
guardar no fundo de uma gaveta.
Ninguém percebeu a manobra, mas quando
chegou a hora de se recolherem e tia Nastácia foi apagar o lampião:
— Ué! — exclamou ela espantadíssima,
vendo projetar-se na parede a sua sombra sem cabeça. — Que coisa, Santo Deus!
Será que perdi minha cabeça?
E apalpou-se para verificar se estava
mesmo sem cabeça. Só então se lembrou da passagem contada por Dona Benta, e viu
que alguém lhe havia cortado a cabeça da sombra.
— Isso também é demais! — gritou ela.
— É judiação. Cortar a cabeça da sombra duma pobre negra velha que nunca fez
mal a um mosquito... Mas quem foi o malvado?
Olhou para a cara de Pedrinho, de
Narizinho, do Visconde e da Emília e não viu em nenhum deles o menor ar de
criminoso. Emília, sobretudo, estava com uma carinha que era só botar num
quadro e virava Santa Emília — de tão inocente.
Dona Benta foi de opinião que aquilo
só podia ser arteirice do Peninha, ou talvez do próprio Peter Pan, que houvesse
entrado na sala às escondidas, no momento em que todos estavam mais distraídos
com a história.
A boa negra arrenegou, e lá se foi para
a cozinha com a sua sombra sem cabeça, a coisa mais esquisita e feia que se
possa imaginar.
— A gente não tem sossego neste sítio — resmungava ela. — Estes meninos endiabrados não param com as reinações. Uma sombra que me acompanhava desde criança, tão direitinha, com a cabeça e tudo — e está agora essa coisa esquisita, que nem aquela rainha Dona Maria Antonieta que Sinhá Benta contou que perdeu a cabeça na tal janela da guilhotina... Credo!...
CAPÍTULO 2: A TERRA DO NUNCA
No outro dia, antes de Dona Benta
continuar a história de Peter Pan, tia Nastácia apareceu com a sua sombra
diminuída de mais um pedaço no ombro.
— Parece que é um rato que anda roendo
a minha sombra — disse ela colocando-se entre o lampião de cima da mesa e a
parede branquinha. — Veja, Sinhá — acrescentou apontando para a sombra
projetada na parede. — Está faltando mais um pedaço, bem no ombro. Neste andar
eu acabo sem sombra nenhuma. Isto é uma desgraça.
— Não acho — disse Narizinho. — Tanto
faz você ter sombra como não ter. De que vale sombra?
— Parece, menina, parece que não vale
nada — respondeu a negra.
— Mas o mundo é malvado, e se sabem
que eu não tenho sombra são capazes até de me queimarem viva, como fizeram com
a coitadinha da Joana do Arco.
— Joana d'Arc.
— Ou isso. O mundo dá cabo de toda
gente que não é igual a todos os outros. Dona Joana tinha olhos melhores que os
do resto das gentes e por isso via mais coisas, tinha visões. Eles foram é
queimaram a coitada. Se me enxergarem sem sombra são capazes de dizer que sou
feiticeira. O mundo é mau, menina. Credo...
— Isso não — gritou Emília. — O mundo
persegue os que são mais que os outros, como essa Joana d'Arc que enxergava
mais; mas você é menos, porque tem menos sombra. Logo...
— Deixem de bobagem — disse Dona Benta
— e vamos continuar a história do menino que não queria crescer.
Todos sentaram-se em redor dela e Dona
Benta começou:
— Essa Terra do Nunca, onde Peter Pan
vivia com os meninos perdidos, era bem longe — e muito linda terra. Na frente
havia uma grande floresta, que naquela estação do ano estava despida de todas
as suas folhas e recoberta de neve branquinha. Nem para remédio era possível
encontrar lá uma só folha verde. Do lado direito havia um enorme lago, no qual
boiavam pedaços de gelo, como ilhinhas flutuantes. Era nesse lago que navegavam
os navios dos piratas. Do lado esquerdo ficava uma aldeia de Peles-Vermelhas,
isto é, índios norte-americanos de nariz recurvo, cocar de penas na cabeça,
cachimbo da paz na boca. Viviam em silêncio e em descanso, sempre de cócoras,
como nossos caboclos do mato.
As casas desses índios eram em forma
de tenda árabe.
— Eu sei — interrompeu Pedrinho. — A
tal tenda árabe tem a forma dum cartucho achatado, ou dum funil sem o bico.
— Pois é — confirmou dona Benta. —
Viviam nesses funis sem bico e em vez de cacique eram governados por uma índia
muito valente, de nome Pantera Branca.
— A senhora não disse o que havia nos
fundos da Terra do Nunca — reclamou Pedrinho.
— Nos fundos ficava um deserto de neve
que os lobos famintos percorriam em bandos uivantes. Pois bem: os meninos
perdidos moravam perto dos índios, longe dos piratas e longíssimo dos lobos
famintos.
— Moravam como?
— Numa caverna subterrânea, sem porta
de entrada.
— E de que modo entravam na caverna,
se não havia porta?
— De um modo muito interessante. Em
cima da caverna o chão era como ali no terreiro — liso, sem sinal nenhum de
caverna embaixo. Mas de longe em longe havia várias árvores — árvores ocas.
Cada menino era dono de uma árvore e entrava na caverna pelo respectivo oco.
— Por que isso, vovó, de cada um ter a
sua árvore? Acho asneira.
— Havia uma razão muito importante.
Tendo cada qual a sua árvore, um não atrapalhava o outro, quando eram atacados
pelos piratas ou pelos lobos famintos. Sumiam-se todos a um tempo, cada qual
pela sua entrada. Se não fosse assim, na precipitação da fuga dois ou três eram
capazes de se meterem pelo mesmo oco, ficando entalados lá dentro. Não há
melhor defesa contra piratas e lobos do que árvores ocas, que vão dar em cavernas
subterrâneas. Tomem nota disso.
Pedrinho tomou nota em seu caderno.
— Na noite do começo desta história —
prosseguiu Dona Benta — estavam os meninos perdidos a brincar na floresta,
vestidos de pele por causa do grande frio. Um deles dançava uma valsa com um
avestruz. De longe mais pareciam ursinhos do que gente.
— E quantos eram?
— Seis. O mais velho chamava-se
Levemente Estragado. Os outros chamavam-se Bicudo, Cachimbo, Assobio e,
finalmente, Gêmeo. Gêmeo era ó nome dado a dois meninos realmente gêmeos e tão
iguaizinhos que as mesmas roupas e o mesmo nome serviam para ambos.
— E como se distinguia um do outro?
— Não se distinguiam. Os demais
lidavam com eles tomo se fossem um só.
— Eu sei — berrou Emília. — Com os
livros é assim. Há montes de livros tão iguais que tanto faz a gente pegar num
como pegar noutro. A obra é a mesma.
— Pois é — disse Dona Benta rindo-se
da comparação da boneca. — Os seis meninos perdidos eram esses tais, e naquela
noite estiveram brincando até tarde, à espera de Peter Pan, que fora à cidade
ouvir o resto da história da Senhora Darling.
— Estiveram brincando de quê? —
perguntou Pedrinho.
— De tudo — respondeu Dona Benta. — Os
meninos ingleses são como vocês aqui: brincam de tudo. E um deles tinha um
brinquedo muito original.
— Qual deles?
— Levemente Estragado. Esse menino
havia apanhado um avestruz fugido dum jardim zoológico, e o ensinara a pular e
dançar ao som da flauta. Nada mais cômico do que essas danças do avestruz,
porque os avestruzes são os bichos mais desajeitados e deselegantes que existem.
Ficaram brincando até tarde, visto que
Peter Pan estava a demorar-se mais que do costume, e por fim começaram a ficar
inquietos, com medo de que lhe houvesse acontecido qualquer coisa. Subitamente
ouviram um rumor ao longe. Seria ele? Bicudo colou o ouvido ao chão, como fazem
os índios.
— "Ouço um barulho surdo de vozes
horrendas" — disse arregalando os olhos. — "Devem ser os
piratas."
Foi água na fervura. Os seis meninos
sumiram-se pelos ocos de suas árvores, como coelhos se somem nas tocas quando
cachorro late perto.
Minutos depois apareceram os piratas,
os terríveis piratas do lago. Que horrendas criaturas!
O crime estava estampado naquelas
caras como números escritos a giz no quadro-negro. Vinham comandados pelo
famoso Capitão Gancho, o pior pirata que jamais existiu, tão malvado que não
havia quem não tremesse de medo dele. Tinha olhos vermelhos e sobrancelhas que
nem certos bichos cabeludos. Barba arrepiada e suja de terra, andar de gorila,
cabelos cacheados e lustrosos de banha rançosa. Marchava na frente do bando, a
cantar uma cantiga das mais feias, marcando o compasso com o gancho de ferro
que lhe servia de mão.
— Como é isso, vovó? — indagou a
menina. — Que história de gancho de ferro é essa?
— Muito simples. Esse famoso pirata
havia perdido a mão direita numa guerra contra os meninos perdidos. Peter Pan
dera-lhe tamanho golpe de espada que a mão peluda pulou longe, indo cair no
lago, justamente dentro da boca dum crocodilo. O crocodilo, nhoque! devorou o horrendo petisco; e
gostou tanto, que desde essa época não fez outra coisa senão andar peregrinando
de terra em terra e de mar em mar para comer o resto da munheca, isto é, o
Capitão Gancho inteirinho. Por esse motivo o pirata tinha ódio de morte a Peter
Pan e aos meninos perdidos, havendo jurado matá-los a todos com a pior das
mortes possíveis e imagináveis.
— Qual era essa morte? — indagou
Emília.
— Não sei, nem quero saber. Não gosto
de horrores. Quem sabia era o Capitão Gancho, um diabo malvadíssimo. Mas depois
que perdeu a mão com a espada de Peter Pan, mandou fazer uma manopla de ferro
com dois ganchos na ponta. Enfiava o toco do braço nessa manopla, atava-a bem
atada com tiras de couro e manejava o gancho como se fosse mão.
— Credo! — exclamou tia Nastácia.
Imagine uma ganchada desse garfo!...
— Devia ser terrível — confirmou Dona
Benta — porque esse pirata passou a meter mais medo depois de perder a mão do
que antes. Menos para o crocodilo. Este monstro não tinha medo nenhum do
Capitão Gancho e começou a persegui-lo por toda parte. Tornou-se o azar da vida
do pirata. O que valeu ao Capitão Gancho foi uma coisa que até parece mentira.
Imaginem que ó tal crocodilo também havia engolido um despertador que tinha
corda por um ano e cujo tique-taque
era muito forte. O tique-taque do
despertador no estômago da fera fazia-se ouvir longe e servia de aviso ao
Capitão, dando-lhe tempo de fugir com quantas pernas tinha.
Pois bem, assim que o bando de piratas
chegou ao ponto da floresta onde, pouco antes, os meninos estavam brincando, o
Capitão Gancho sentou-se num enorme chapéu-de-sapo que por ali crescia, bem por
cima da morada subterrânea. Sentou-se para descansar e ao mesmo tempo meditar
sobre o meio de descobrir o esconderijo de Peter Pan e seu bandinho.
— “Com seiscentos bilhões de demônios!"
— urrou ele. — "Não descansarei enquanto não agarrar esse maldito
menino."
O chefe dos piratas era especialista
em pragas. Possuía a maior coleção de pragas da Inglaterra, e talvez da Europa
inteira, na opinião de muitos. E todas as suas pragas começavam por seiscentos
bilhões. Não fazia nenhuma por menos.
Nesse ponto Emília interrompeu Dona
Benta.
— Por que é que os marinheiros gostam
tanto de pragas? — perguntou ela. — Sempre que numa história aparece um cachorro-
do mar...
— Lobo-do-mar — corrigiu Dona Benta. —
Os velhos marinheiros são chamados lobos-do-mar.
— Dá na mesma — objetou Emília. — Eu
quero dizer cachorro do mar e tenho minhas razões. Mas sempre que aparece um
desses cachorros do mar, vem logo
praga, e de milhões. Com trezentos milhões de caravelas! Com seiscentos milhões
de baleias! É milhão que não acaba mais.
— Sim — disse Dona Benta — mas repare
que é sempre praga de milhões apenas. Só esse Capitão Gancho usava as tais
pragas de bilhões, e por isso ficou terrível. Um bilhão compõe-se de mil
milhões. Ora, quando ele praguejava com seiscentos bilhões de demônios, como
fez em relação a Peter Pan, esse número queria dizer seiscentos milhares de
milhões, ou seiscentos montes de mil milhões cada um. Eu até creio que ele não
era forte em aritmética, pois é impossível que haja tantos demônios assim...
— Credo! — exclamou tia Nastácia
persignando-se. — Um demônio já deixa a gente tonta, como aquele Lúcifer que
fez a revolução dos anjos lá no céu e foi jogado no Inferno. Imaginem agora
seiscentos montes de não sei quantos cada um. Credo...
— Continue, vovó — pediu Narizinho. —
O Capitão Gancho sentou-se no chapéu-de-sapo e depois?
— Sentou-se e logo deu um pulo, porque
o tal chapéu-de-sapo estava quente como chapa de fogão. Furioso da vida,
pregou-lhe um tremendo pontapé, fazendo-o voar dali com um som metálico. Aquele
som abriu os olhos do pirata.
— "Hum!" — exclamou ele,
percebendo que não era chapéu-de-sapo natural e sim uma ponta de chaminé que
saía de dentro da terra e tinha a forma de chapéu-de-sapo. — "Oitocentos
bilhões de diabos me assem vivo em todos os fogos do Inferno, se isto não é
arteirice do Senhor Peter Pan e mais os seus meninos perdidos! Descobri tudo!
Eles moram aqui embaixo, nalgum buraco subterrâneo."
Disse e pôs-se a examinar o terreno,
dando pancadas no solo com a ponta dos dedos, como fazem os médicos para
examinar o pulmão dos doentes. O som era de terra oca embaixo. O chefe dos
piratas ficou radiante. Tinha descoberto o esconderijo dos meninos e agora iria
caçá-los como se caçam ratos. Pôs-se a examinar o terreno. Viu que não havia
entrada nenhuma afora os ocos das árvores. Tentou descer por um deles
(justamente o oco de Bicudo) e entalou. Não cabia. Ficou danado, espirrou mais alguns
bilhões de demônios e teve uma ideia sinistra.
— "Achei o meio!" —
exclamou. — "Mando preparar um grande pão-de-ló bem bonito por fora e bem
cheio de veneno por dentro”. Ponho o pão-de-ló ali naquela pedra e vou ficar
espiando de longe. Os meninos perdidos não têm mães para ensinar-lhes o que
devem e o que não devem comer, de modo que logo saem da caverna e se lançam
sobre o doce como lobos famintos — e eu terei o gosto de vê-los morrer a pior
das mortes.
Em seguida deu uma ordem ao tenente do
bando.
— "Olá, Capacete! Diga ao
cozinheiro que prepare um pão-de-ló bem grande e bem bonito e que ponha dentro..."
Não pôde terminar. Um tique-taque muito seu conhecido fez-se
ouvir perto.
— "O crocodilo!" — berrou o
chefe dos piratas, disparando na fuga a todo galope, seguido pelo bando inteiro
— e logo se sumiram no horizonte dentro duma nuvem de pó. O crocodilo, tique-taque, os acompanhou sem pressa
nenhuma, filosofando que se daquela vez não o havia apanhado, de outra o
apanharia.
— A senhora falou em nuvem de poeira,
vovó. Mas a floresta não estava coberta de neve? — indagou Narizinho.
— Sim, minha filha. Mas a neve logo
que cai, acumula-se solta como farinha. Se dá o vento, voa como poeira. Ora, os
piratas fugiram ventando como tia Nastácia diz quando a carreira é séria, e
portanto levantavam nuvens de neve em pó.
— E que aconteceu depois? — quis saber
Pedrinho.
— Pelo tropel, os meninos lá embaixo
perceberam que os piratas haviam fugido e trataram de sair do subterrâneo.
Foram subindo pelos ocos, e ao chegarem à superfície viram que os
Peles-Vermelhas estavam na pista dos piratas.
— Que história é essa, vovó? Então os
índios eram inimigos dos piratas?
— Eram aliados de Peter Pan e inimigos
do Capitão Gancho, contra o qual andavam em guerra feroz.
O modo desses índios fazerem guerra
merece ser contado. Eles trepavam às árvores para espiar ao longe, com a mão
sobre os olhos em forma de viseira e aplicavam o ouvido sobre a terra para
ouvirem os rumores distantes. Caminhavam de rastos, como cobras, escondendo-se
atrás de cada toco de pau ou moita. Levavam arcos e flechas e também um tantã,
que entre os índios é o tambor da vitória. Infelizmente era muito raro ouvir-se
o som do tantã, porque os Peles-Vermelhas sempre saíam derrotados e fugiam como
lebres.
Mas os meninos, ao porem as cabecinhas
fora dos ocos só viram o fim da correria. Em minutos a poeira levantada pelos
piratas em fuga e pelos índios perseguidores desapareceu no horizonte.
— Que expressão bonita! — exclamou
Emília. — Desapareceu no horizonte!... Acho uma beleza em tudo quanto
desaparece no horizonte. Inda hei de escrever uma história cheia de
desaparecimentos no horizonte, com três pontinhos no fim...
E a boneca ficou absorta, de olhos
pendurados no horizonte, enquanto Dona Benta, a rir-se, continuava a história.
— Passaram os piratas — disse ela. —
Depois passaram os índios. Só faltava passar o bando de lobos famintos, que
habitualmente acompanham os guerreiros para comer os mortos.
— E vieram os lobos nesse dia?
— Como não? Logo depois surgiram os
lobos no horizonte; mas farejando a gentinha de Peter Pan fora do subterrâneo,
desistiram de seguir os guerreiros e vieram como flechas devorar os meninos.
Peter Pan, entretanto, já havia
descoberto o melhor meio de assustar lobo faminto. Consiste em sair ao encontro
deles de costas, com a cabeça entre as pernas. Os lobos entreparam,
desnorteados, não podendo compreender que espécie de animal é aquele, e depois
fogem com velocidade maior ainda que a do Capitão Gancho ao ouvir o tique-taque do crocodilo.
Assim que os lobos famintos chegaram a
uma certa distância, os seis meninos, guiados por Bicudo, correram-lhes ao
encontro de costas, com a cabeça entre as pernas. Foi uma beleza! Os lobos
entrepararam uns segundos e em seguida voltaram-se nos pés e sumiram-se dentro
da floresta.
Ora graças! Os meninos perdidos podiam
enfim brincar sossegadamente de pegador ou chicote-queimado à luz do lindo luar
que fazia. Mas não brincaram, porque Cachimbo lhes chamou a atenção para
qualquer coisa no céu.
— "Olhem! Lá vem voando para o
nosso lado uma espécie de pássaro branco bem grande..."
Todos ergueram o nariz e arregalaram
os olhos. Não podiam compreender que pássaro fosse aquele. Não parecia garça,
nem outra qualquer ave conhecida. Súbito, uma bola de fogo riscou o ar, vindo
descer bem no meio deles. Era a fada Sininho.
— "Peter Pan manda dizer" —
declarou ela nervosamente na sua linguagem do tlin, tlin, tlin — "que é preciso matar quanto antes essa ave
que vem vindo."
Cachimbo, o melhor atirador do grupo,
desceu imediatamente ao subterrâneo, de onde voltou com um arco e uma flecha.
Ajustou a flecha ao arco, fez pontaria, esticou a corda e — zuct! — A flecha lá se foi assobiando e
deu certinho no alvo. A ave branca vacilou no voo, cambaleou, descrevendo um
parafuso e veio cair junto ao grupo. Todos correram para apanhá-la.
— "Não é ave!" — exclamaram
cheios de surpresa. — "É uma linda menina de camisola branca. Talvez seja
a tal mãezinha que Peter Pan vive prometendo trazer-nos."
Era Wendy, que se tinha adiantado dos
demais durante o voo. A fada Sininho havia cometido aquela traição porque
estava a roer-se de ciúmes: Gostava de Peter Pan e não podia suportar as
atenções e requebrados do menino para com a sua nova conhecida. Daí lhe veio a ideia
de fazê-la flechar por um dos meninos.
Nisto chegou Peter Pan, seguido de
João Napoleão e Miguel. Assim que pôs o pé em terra, foi logo indagando:
— "Onde está Wendy?" — Ao
saber que Wendy havia sido flechada, teve um grande acesso de cólera e passou
mão do arco para também flechar Cachimbo no coração. E flechava mesmo, se não
fosse Wendy despertar do desmaio ainda a tempo de impedir tamanho crime.
Wendy não havia sido ferida, porque a
flecha batera justamente no botão-beijo que Peter Pan lhe havia dado. Só sentiu
o choque da flecha; e como já estivesse cansada e tonta de tanto voar, bastou
isso para fazê-la perder os sentidos e cair.
Vendo que ela estava vivinha, os
meninos a rodearam na maior alegria, embora sem saber o que fazer. Levar Wendy
para a morada subterrânea não lhes parecia bem. Deixá-la por ali ao relento,
era pior. O único remédio seria construir-lhe uma casinha bem ajeitada. Estavam
a discutir esse ponto quando Wendy começou a cantar uma cantiga em verso por
ela mesma inventada, assim:
Uma casinha quero ter,
Que menor não haja no mundo;
Terreiro bem limpo na frente,
Jardim de mil flores no fundo.
— "Pronto! Já sabemos o que ela
quer!" — exclamaram os meninos em coro. — "Vamos fazer a casinha de
Wendy, com jardim de mil flores ao fundo."
E foi uma lufa-lufa. Bicudo correu a
cortar paus na floresta; Cachimbo desceu ao subterrâneo em procura duma velha
grade muito ajeitada para a armação do teto; Assobio foi em busca dum pedaço de
tapete velho e dum rolo de encerado.
Num instante ficou pronta a casinha.
Peter Pan observou que haviam esquecido a chaminé. Onde já se viu casa sem
chaminé? Correu os olhos em torno, em procura, e deteve-os no Miguel, que tinha
na cabeça a cartola de seu pai.
— "Ótimo!" — gritou Peter
Pan tomando a cartola. — "Melhor chaminé do que esta não é possível"
— e arrumou-a em cima do teto.
E tudo mais foi assim. O material de
construção mais empregado era o "faz-de-conta". Não tem fechadura na
porta? Faz de conta que esta fivela é fechadura. Não tem cadeira? Faz de conta
que esta pedra é cadeira.
Wendy não precisou entrar na casinha,
porque a casinha havia sido construída em redor dela — e foi a primeira vez no
mundo que semelhante coisa aconteceu.
Pronta a casa com a dona dentro, Peter
Pan veio e bateu na porta — toque, toque, toque. Wendy surgiu à janela e
perguntou quem era.
— "São os meninos perdidos que
desejam saber se a menina está disposta a ser a mãezinha deles. Nunca tiveram
mãe e querem experimentar se é bom."
— "Com muito gosto" —
respondeu Wendy. — "Serei mãe de todos, contarei histórias à noite,
remendarei as roupas de dia, agradarei aos que chorarem e ralharei com os que
fizerem coisas inconvenientes — tudo igualzinho como mamãe faz lá em casa. Mas
só serei mãe se Peter Pan quiser ser o pai."
Todos bateram palmas, numa grande
alegria. Iam ter mãe afinal. Iam ter quem lhes contasse histórias — que
maravilha!
— "História! História!" —
exclamaram. — "Para começar, conte já uma linda história" — e os
meninos foram entrando para a casinha, em atropelo. Era incrível que lá
coubessem todos, mas couberam. Para isso foi preciso que se arrumassem com a
habilidade e o jeito com que as sardinhas se arrumam dentro das latas.
Logo que todos se acomodaram, Wendy
começou assim: — "Era uma vez uma pobre menina chamada Cinderela" — e
foi por aí além até que o sono tomasse conta de toda a sua filharada.
Tudo dormiu. Dormiu a floresta o seu
sono agitado de morcegos, pios de coruja e uivos de lobo. Dormiu o crocodilo,
lá longe. Dormiram os piratas; e os índios, vendo o inimigo a dormir, deixaram
a perseguição para o dia seguinte e dormiram também.
Só não dormiu Peter Pan. Passou toda,
a noite fora, de espada na mão, montando guarda à casinha da jovem mãe que
havia arranjado para os meninos perdidos.
Dona Benta parou nesse ponto, achando
que o melhor era também irem dormir.
— Chega por hoje. O resto fica para
amanhã. Agora é cada um ir para sua cama sonhar com o Capitão Gancho e o
crocodilo.
— Credo! — exclamou tia Nastácia, erguendo-se. — Eu quero sonhar com Dona
Wendy, que é tão galantinha. Mas com esse canhoto malvado, Deus me livre!
Pedrinho deu um suspiro. Estava
lamentado não haver fugido para a Terra do Nunca tio dia em que nasceu.
Narizinho também suspirou. Quanto não daria para ser Wendy Darling?
Só Emília não suspirou, nem disse
nada. Saiu dali muito quieta e foi mexer na caixa de ferramentas de Pedrinho.
Dona Benta encontrou-a lá, lidando para entortar um prego.
— Que é que está fazendo, Emília?
— Estou vendo se faço uma munheca de
gancho como a do Capitão.
— E para que, bobinha?
— Para assustar tia Nastácia. Quero ganchar aquele beição dela...
CAPÍTULO 3: A LAGOA DAS SEREIAS
Na terceira noite tia Nastácia
apareceu na sala ainda mais desapontada do que na véspera. O que estava
acontecendo com a sua pobre sombra era simplesmente monstruoso.
— Veja, Sinhá — disse ela paxá Dona
Benta, colocando-se entre a parede e o lampião de modo a tornar a sombra bem
visível. — Veja, Sinhá, como está toda rendada a minha sombra. O ladrão, que
ontem me cortou a cabeça dela e um pedaço do ombro, acaba hoje de cortar uma
porção de outros pedacinhos.
Realmente assim era. O resto da sombra
da pobre negra estava todo picado de buracos feitos a tesoura.
— É um mistério que não consigo
decifrar — disse Dona Benta sacudindo a cabeça. — O Visconde, o nosso grande
detetive, bem que podia tomar conta deste caso. Fale com ele.
Tia Nastácia conferenciou com o
Visconde, obtendo do grande detetive a promessa de "investigar."
— Deixe a coisa comigo — disse ele. —
Já resolvi aquele célebre caio do falso gato Félix e posso muito bem resolver
este do ladrão de sombras.
Deixe a coisa comigo.
Liquidado o incidente, Dona Benta
retomou a história de Peter Pan no ponto em que a tinha deixado na véspera.
— Onde estávamos, mesmo? — perguntou
ao sentar-se em sua cadeira de pernas serradas.
— Os meninos perdidos haviam
construído a casinha de Wendy e todos dormiram dentro dela, menos Peter Pan,
que ficou de guarda — lembrou Narizinho.
— Sim, é isso mesmo — confirmou Dona
Benta. — Dormiram na casinha a primeira noite e depois outras. Durante toda uma
semana os meninos não se afastaram dali. Estavam encantados com a mãezinha que
Peter Pan lhes arranjara e Wendy estava igualmente encantada com os seus seis
filhos. A felicidade naquele acampamento seria completa, se não fosse a
tristeza em que havia caído a fada Sininho. Vivia sempre emburrada, escondida
pelos cantos, sem coragem de falar com Peter Pan.
Mas tudo cansa. Ao fim da primeira
semana, Wendy mostrou vontade de sair a passeio pela floresta, ou algum outro
lugar.
— "Podemos ir à Lagoa das
Sereias" — propôs Peter Pan. — "A nossa Terra do Nunca não possui
unicamente coisas terríveis, como os piratas e os lobos famintos. Esse Lago das
Sereias é lindo, lindo!"
A ideia foi recebida com entusiasmo.
Wendy e seus irmãozinhos só conheciam as sereias dos livros de figura. Sereias
de verdade, com cauda de peixe e escamas, bem vivas e perigosas, nunca haviam
visto nenhuma, por não serem criaturas encontráveis no jardim zoológico de
Londres. Havia lá de tudo — hipopótamos, rinocerontes, leões, tigres, girafas,
serpentes, ursos, focas — mas sereia, nenhuma.
— "Vamos, vamos ver as
sereias!" — gritaram todos no maior assanhamento.
Num minuto fizeram-se os necessários
preparativos e lá se foram todos. Depois de longa viagem avistaram o grande
lago verde-mar, em cujo fundo se erguia o palácio encantado das sereias. Às
vezes todas elas vinham à tona para se pentearem ao sol, espalhadas pelos
rochedos. Outras vezes só se via por ali uma ou outra. Quando os meninos
chegaram à beira d’água, só encontraram uma.
— "Que beleza!" — exclamou
Wendy, enlevada. — "Tal qual uma que vem pintada no meu livro de capa
azul. Vejam como as escamas brilham ao sol! Parecem de prata..."
Era na verdade uma das mais lindas
sereias do bando. Tinha os cabelos cor de ouro e bronze misturados, com
reflexos verdes. Estava reclinada sobre um rochedo e enquanto cantava corria um
pente de ouro pelos cabelos maravilhosos.
— E era lindo esse canto? — indagou
Narizinho.
— Oh, nem queira saber! — disse Dona
Benta. Ninguém pode dar ideia da beleza do canto das sereias. Só ouvindo. Tão
diferente do canto das criaturas humanas que é até perigoso para nós. Grandes
desgraças têm acontecido no mar aos marinheiros que ouviram tais cantos.
— É verdade, vovó, que os marinheiros
antigamente entupiam os ouvidos com chumaços de algodão sempre que avistavam
uma sereia? — perguntou Pedrinho.
— Deve ser. Não fazendo isso, esse
canto maravilhoso deixa os marinheiros embriagados e eles erram todas as
manobras do navio, puxam esta corda em vez daquela, botam garrafas de vinho no
anzol em vez de iscas — atrapalham tudo, tudo. Resultado: o navio perde o rumo,
dá com o bico numa pedra e afunda.
Os meninos perdidos tinham muita
vontade de apanhar uma sereia viva, coisa quase impossível por serem espertas
demais. Não há lambari arisco que tenha a ligeireza duma sereia. Eles já haviam
tentado várias vezes e agora iam tentar novamente.
— Como?
— O meio era um só — meterem-se n’água
de jeito que a sereia não os visse e fecharem o cerco. Assim fizeram. Meteram-se
todos n’água e foram nadando sem fazer o menor barulhinho, até que...
— Pegaram? — indagou Narizinho,
ansiosa.
— Pegaram nada! A sereia os percebeu e
soltou um grito agudo: Mortais! mergulhando em seguida.
Ficaram todos desapontadíssimos e
Miguel chegou a fazer cara de choro. Se não chorou de verdade foi porque Bicudo
avistou outra sereia numa rocha mais adiante.
— "Lá está uma sereia-menina, das
fáceis de pegar!" — cochichou ele, apontando. — "Temos que ir com
muitas cautelas."
Era uma sereiazinha das mais lindas
que a gente possa imaginar. Teria aí seus sete anos de idade, já sabia
pentear-se com o seu pentinho de ouro e já começava a cantar as primeiras
cantigas. Tão distraída estava, a seguir os movimentos dum caranguejo na pedra,
que deixou os meninos se aproximarem até bem perto. Miguel, que vinha na
frente, não se conteve e — zás! — deu um pulo em cima dela.
— Pegou? — quis saber Narizinho,
ansiosíssima.
— Desta vez pegou — respondeu Dona
Benta — mas não a segurou bem. As sereias são as criaturas mais lisas que
existem, dez vezes mais que o sabão, de modo que a sereiazinha escorregou das
unhas de Miguel e lá se foi para o fundo, tal qual a primeira.
— Que pena, vovó! — exclamou
Narizinho. — Todas as histórias de sereias acabam sempre assim. Quando chega a
hora de agarrar uma, acontece isto ou aquilo e elas escapam...
— Hei de fazer uma história diferente
— declarou Emília. Uma história onde todas as sereias sejam agarradas e
amarradas e trazidas para a cidade dentro dum caminhão.
— Pois você errará, Emília, se
escrever uma história assim — disse Dona Benta. — Além de ser uma judiação
arrancar do seu elemento criaturas tão lindas, essa pesca e essa trazida para a
cidade em caminhão viria destruir a beleza e o mistério das sereias. Sabe o que
acontecia? Os jornais davam o retrato delas impresso em tinta preta (nos livros
elas aparecem em lindas pinturas de cores macias); os sábios de óculos vinham
estudá-las, isto é, abri-las com as suas facas chamadas bisturis para ver o que
tinham dentro, e mil outros horrores. Não, Emília. É melhor que ninguém nunca
pegue uma sereia — nem você tampouco. Na sua historinha, agarre a sereia, mas
faça que ela escape no momento de entrar para o caminhão. Ficará muito mais
poética a sua historinha, eu garanto.
— Credo! disse tia Nastácia. — Os
homens são tão malvados que até eram capazes de picar as coitadas em pedaços,
para vender nos açougues lombo de sereia, entrecosto de sereia, rabo de sereia,
miolo de sereia...
— Continue, vovó — pediu Pedrinho. — A
sereiazinha escapou e...
— E sumiu-se no fundo d’água, indo
avisar as outras, de modo que naquele dia não houve mais sereias na superfície
do lago.
— E os meninos voltaram para a casinha
de Wendy...
— Não. Em vez de sereia apareceu ao
longe um bote. Os piratas do Capitão Gancho, que haviam ancorado o seu navio a
uns dez ou doze quilômetros daquele ponto, lá vinham vindo de bote para o lado
dos pegadores de sereias.
Como fosse grande o perigo, a meninada
tratou de voltar para a praia quanto antes. O meio era um só — nadar, e pois
lançaram-se à água e nadaram para terra sem sequer volver os olhos para trás.
Só Peter Pan se animou a fazer isso. Olhou e viu que Pantera Branca, a chefa
dos índios Peles-Vermelhas, vinha de pé à proa do bote, amarrada com cordas.
Peter Pan franziu a testa. Fazia assim
sempre que tinha de resolver um problema urgente. Parece que com o tal
franzimento de testa ele espremia o cérebro para que espirrasse alguma boa ideia.
— "Já sei" — murmurou para si mesmo logo depois. — "Os terríveis
piratas derrotaram os índios e aprisionaram Pantera Branca, e agora vão
abandoná-la num rochedo para que morra afogada pela maré."
Peter Pan tinha adivinhado. O bote
dirigia-se para o rochedo onde estivera a sereia grande, com ordem do Capitão
Gancho para largar lá a índia, bem amarrada com grossas cordas.
"Mas isso não pode ser!" —
pensou consigo Peter Pan. "Preciso salvar a pobre criatura, custe o que
custar. Pantera Branca é nossa aliada e nossa amiga." — Franziu de novo a
testa e imediatamente espirrou de dentro do seu cérebro outra ideia muito boa.
— Qual foi? — quis saber Pedrinho.
— Ele não disse, mas pelo que fez a
gente adivinha. Peter Pan esperou atrás dum rochedo que o bote passasse perto,
e em seguida mergulhou na água e foi nadando até ficar bem debaixo da popa.
Botou então a cabeça fora d’água e gritou em voz que imitava perfeitamente a
voz de bêbedo do Capitão Gancho:
— Com seiscentos bilhões de caravelas,
cortem já as cordas dessa índia e soltem-na!"
Os piratas estranharam semelhante
ordem, pois era absurdo soltar, assim sem mais nem menos, uma inimiga que lhes
custara tanto a prender. Mas ordens do Capitão Gancho eram ordens; ninguém as
discutia, sob pena de levar terríveis ganchadas no nariz. Não estavam vendo o
chefe, mas a voz era dele. Nada mais lhes restava senão obedecer — e portanto
cortaram as cordas da índia, dizendo-lhe: — "Está livre. Faça o que
quiser."
— E que é que ela quis? perguntou
Emília.
— Pantera Branca só quis uma coisa:
ver-se bem longe daquela gente, e por conseguinte lançou-se à água e foi
nadando, melhor que um peixe, para onde estavam os meninos, lá na praia. Nisto
Peter Pan notou que alguém vinha se dirigindo a nado para o bote dos piratas.
Era o Capitão Gancho, que havia ficado sozinho no navio para contar um saco de
moedas de ouro. Terminara o serviço e agora nadava a toda velocidade para ter o
gosto de assistir à morte dá pobre
índia.
— Estou imaginando a cara dele ao dar
com o bote vazio!...
— Realmente. Quando chegou e soube do
acontecimento, encheu-se da maior cólera da sua vida e avançou para os piratas
para ganchá-los a todos sem dó nem piedade. Eles, porém, não estiveram por
isso, e atirando-se à água fugiram ainda mais rápidos que a índia.
Sozinho no bote, o Capitão Gancho
tomou os remos e virou a proa para terra, vogando na direção onde via os
meninos e a índia. Sua ideia era recapturar Pantera Branca, aproveitando-se do
extremo cansaço em que, depois de tantos padecimentos, ela devia estar.
Peter Pan, que já havia alcançado a
praia, compreendeu o perigo. A índia exausta mal podia consigo e fatalmente
iria de novo cair nas unhas do chefe dos piratas. O remédio era enfrentar o
Capitão Gancho, atracando-se com ele em luta corpo-a-corpo.
— Gosto dum menino assim! ·— disse
Narizinho entusiasmada. — Não tem medo de coisa nenhuma. Isso é que é.
Pedrinho olhou-a com o rabo dos olhos,
como se tais palavras fossem alguma indireta para ele. Mas não eram.
Dona Benta prosseguiu:
— O pirata chegou àquela praia.
Desembarcou, e imediatamente Peter Pan o atacou. A luta foi medonha. Se o
Capitão tinha mais força que seis Peter Pans reunidos, em compensação Peter Pan
tinha mais agilidade do que seis Ganchos. Essa desigualdade tornava as forças
bem equilibradas.
Lutaram, lutaram muito tempo, ora na
praia, ora dentro d’água, e por fim sobre o rochedo mais próximo. Era luta a
unhadas. Por fim o pirata, já de língua de fora de tão cansado, compreendeu que
era impossível vencer o terrível menino, e sem a menor vergonha fugiu. Saltou
para o bote e fugiu! Era a segunda vez que Peter Pan o derrotava em luta
corpo-a-corpo. Ficou todo arranhadinho mas vitorioso e glorioso.
— "Viva Peter Pan!" — gritou
uma voz no rochedo. O menino voltou-se. Era Wendy. Em vez de seguir os outros,
que tinham corrido para longe dali, ela havia ficado para acompanhar de perto a
luta.
— "Wendy, Wendy!" — gritou
ele aflito. — "Sabe que está correndo o maior dos perigos? A maré já
começa a crescer e como você não tem forças para nadar até à praia, corre o perigo
de morrer afogada."
A situação era sem dúvida das mais
graves. Peter Pan franziu de novo a testa. Precisava descobrir um meio de
salvar a querida mãezinha dos meninos perdidos antes que a maré subisse a ponto
de engolir o rochedo com ela e tudo. Bote não havia. Carregá-la às costas era
perigoso. Que fazer? Olhou para a direita, olhou para esquerda, olhou para
baixo, olhou para cima. Acertou em olhar para cima. Viu um enorme papagaio de
papel que voava lá bem em cima, com um rabo de tira de pano que tocava a
superfície das águas.
Teve uma ideia. Agarrar o rabo do
papagaio e amarrá-lo à cintura da menina. Deu jeito e assim fez. Amarrou o rabo
do papagaio à cintura de Wendy e esperou. Instantes depois o vento cresceu; o
papagaio subiu mais alto, esticou o rabo — Wendy lá se foi pelos ares...
— "Adeus, Wendy! Adeus!" —
gritava Peter Pan enquanto ela subia, subia...
Estava salva a menina. Peter Pan tinha
agora de salvar-se a si próprio. Outro papagaio não havia. Ficar ali por mais
tempo era perigoso, porque a maré já ia bem alta e breve engoliria o rochedo.
Em nadar ele nem pensava, porque o cansaço da luta o tinha posto bambo. Que
fazer? Olhou para todos os lados em procura de salvação. Súbito, viu ao longe
um grande ninho de ave aquática, que fora arrancado pelo vento e lançado à
água. Vinha boiando, como uma barquinha redonda. A ave estava dentro, aninhada
sobre os ovos.
— "Viva!" — exclamou Peter Pan batendo palmas. — "Eu não poderia
ter coisa melhor. Barco e almoço de ovos ao mesmo tempo!..."
Esperou mais um pouco; logo que o,
ninho chegou a algumas braçadas do rochedo, lançou-se à água e com esforço
nadou até ele. Espantou a ave com três berros e lhe tomou o lugar em cima dos
ovos. — Que engraçado! — exclamou Emília. — Vão ver que em vez de comê-los Peter
Pan chocou os ovos e chegou à casinha de Wendy com uma ninhada de pintos
aquáticos!
— Ele não pensou nisso — declarou Dona
Benta. — Tratou mas foi de tirar a camisa e fazer uma vela muito boa. O vento
deu na vela e impeliu a estranha embarcação para o ponto onde estavam os
meninos e a índia. Meia hora depois Peter Pan lá chegava, são e salvo.
Foi recebido com uma gritaria
infernal, de entusiasmo, não só pela surra que dera no Capitão Gancho, como
pela habilidade com que salvara Wendy e também a si próprio.
— "Viva! Viva Peter Pan!" —
gritavam todos, pulando e batendo palmas. — "Viva o menino que não tem
medo de nada!"
Todos abraçaram-se, beijaram-se e
disseram-se mil coisas. Pantera Branca narrou a triste história do combate em
que seus índios foram derrotados pelos piratas. Wendy contou a história do seu
voo amarrada ao rabo do papagaio, e de como conseguira agarrar-se a uma árvore
perto daquele ponto. Os outros nada contaram, porque nada haviam feito.
A grande aventura do Lago das Sereias
tinha acabado muito bem. Só havia neste ou naquele um ou outro arranhão — isto
sem contar os seis riscos de ganchadas que Wendy descobriu nas costas de Peter
Pan.
— "Vamos depressa para casa"
— disse a menina aflita. — "Preciso preparar um remédio para essas machucaduras."
Dona Benta interrompeu a história
nesse ponto, deixando o resto para o dia seguinte.
Começaram os comentários.
— Só não gostei duma coisa — disse
Emília. — Peter Pan não devia ter deixado os ovos no ninho. Se eu fosse ele,
levava-os para chocar na casinha.
— Chocar omeleta? — disse tia
Nastácia. — Aposto que os ovos ficaram numa pasta! Onde já se viu um meninão
como aquele viajar dentro dum ninho sem quebrar os ovos todos? O contador da
história nunca foi cozinheiro e por isso não entende de ovos. Mas eu, que sou
cozinheira, sei muito bem o que aconteceu. Virou tudo omeleta...
O Visconde nada disse. Andava de olhinho aceso, examinando as poeirinhas do chão e "deduzindo." O que ele queria saber era uma coisa só: qual o rato que roía a sombra da negra...
CAPÍTULO 4: A MORADA SUBTERRÂNEA
No outro dia, assim que tia Nastácia
acendeu o lampião da sala de jantar, o caso da sombra veio novamente à
berlinda. A negra colocou-se entre a luz e a parede e todos puderam ver que sua
sombra havia diminuído de mais um bom pedaço.
— Veja, Sinhá — dizia ela com o beiço
pendurado. — Estou só com um toco de sombra. Neste andar acabo sem sombra
nenhuma e vai ser uma grande desgraça...
Dona Benta pôs os óculos e viu que era
isso mesmo.
— O Visconde ainda não descobriu coisa
nenhuma?
— Estou na pista — respondeu o pequeno
sherlock. — Já examinei
cuidadosamente o corte e vi que foi feito com tesoura. Ando agora a examinar o
fio de todas as tesouras existentes nesta casa. Pela comparação hei de
descobrir com qual delas o "rato" anda cortando esta sombra — e
depois...
— E depois o quê? — perguntou Emília
com carinha de santa.
— Depois, veremos.
Emília fez um muxoxo e deu uma
cuspidinha de desprezo.
— Vamos! Comece, vovó — pediu
Narizinho. — Estou ansiosa pelo resto da aventura.
Dona Benta sentou-se na sua cadeira de
pernas serradas e começou:
— Pois muito que bem. Daquela grande
aventura no Lago das Sereias os meninos voltaram com alguns arranhões, que
Wendy tratou de curar como pôde, com um ótimo unguento faz-de-conta. Todos
sararam e a vidinha continuou muito feliz na casa de Wendy e na caverna
subterrânea que a menina arrumara na perfeição.
Essa caverna era uma gruta natural que
as águas haviam escavado na pedra, isso há muitos milhares de anos. Tão velha,
que tinha barbas brancas no teto — ou estalactites.
— Que vem a ser isso? — perguntou
Pedrinho.
Dona Benta explicou que em muitas
cavernas as águas das chuvas se coam através da terra que há em cima e pingam
do teto. Ao atravessarem a camada de terra essas águas dissolvem certos
calcários e, ao pingarem, esses calcários dissolvidos endurecem outra vez. E
com o andar do tempo formam-se compridas estalactites, que são penduricalhos
que descem do teto das cavernas até o chão.
Acontece também se formarem no chão,
nos pontos onde a água pinga, endurecimentos do mesmo gênero, que se chamam
estalagmites. As estalactites descem do teto para o chão e as estalagmites
sobem do chão para o teto, até se encontrarem.
Dada a explicação, Dona Benta
continuou:
— Naquelas estalactites os meninos
penduravam mil coisas — cestas de apanhar peixe, anzóis, varas, porungas e
brinquedos construídos por eles próprios. Bem no centro da caverna existe uma
lareira.
— Que é lareira, vovó? — perguntou
Narizinho.
— Aqui no Brasil temos o clima quente
ou temperado e por isso não se usam lareiras nas casas. Nos países frios,
porém, não existe quem não saiba o que é lareira, porque não existe casa sem
lareira. É o lugar de fazer fogo para o aquecimento da casa. Entre nós, e em
todos os países quentes, fogo só há na cozinha, para cozinhar. Nos países
frios, além desse fogo da cozinha há o fogo para aquecer a casa. Mas isso
unicamente nos países atrasados. Nos países adiantados, em vez da velha lareira
existe um sistema de canos de vapor quente que percorrem todos os quartos e
salas por dentro das paredes e os mantém na temperatura que se deseja.
— Basta, vovó — disse a menina. —
Continue.
Dona Benta continuou:
— Pois é como eu ia dizendo. A
gentilíssima Wendy deixou a caverna um brinco de asseio e ordem. Arranjou para
os meninos uma cama larga onde todos se arrumavam muito bem. Também arranjou um
berço para o Miguel. Miguel não estava mais em idade de berço, mas Wendy era de
opinião que não pode existir casa sem berço, e como fosse ele o mais criança,
teve de representar o papel de bebe. Esse berço não passava duma das cestas de
apanhar peixe, arrumada entre duas estalactites.
Wendy não esqueceu nem sequer da sua
terrível inimiga Sininho. Arranjou-lhe num canto um quarto de boneca, fechado
de cortinas vermelhas e cheio de lindas coisas minúsculas, próprias para uma
fada daquele tamanhinho.
Cadeiras não havia na gruta, mas havia
bancos feitos de chapéu-de-sapo, um para cada menino. Wendy e Peter Pan usavam
uma poltrona especial, feita de duas enormes cabaças recortadas com muito
jeito. Ali se sentavam juntinhos, como fazem os papais e as mamães que se
querem bem.
Certo sábado à noite estavam todos
muito ansiosos à espera de Peter Pan, que saíra pela manhã numa expedição
cinegética.
— Pare aí, vovó! — berrou Pedrinho. —
Essa palavra esquisita me deixou tonto. Que vem a ser isso?
— Coisa das mais simples, meu filho.
Cinegético quer dizer "relativo a caçada". Expedição cinegética
significa o mesmo que caçada.
— Mas se é tão simples dizer caçada,
por que vem a senhora com essa terrível complicação? — observou Pedrinho, que
era inimigo de palavras difíceis.
— Para você perguntar e eu ler ocasião
de ensinar uma palavra nova que ninguém aqui sabe. Neste mundo, Pedrinho,
precisamos conhecer a linguagem das gentes simples e também a linguagem dos
pedantes — se não os pedantes nos embrulham. Você já aprendeu o que é
cinegético e se em qualquer tempo algum sábio da Grécia quiser tapear você com
um cinegético, em vez de abrir a boca, como um bobo, você já pode dar uma
risadinha de sabidão.
— Vou aplicar este cinegético já e já,
— disse o menino, entusiasmado.
Tia Nastácia, que saíra para ferver a
água do chá, vinha entrando.
— Sabe, tia Nastácia, que amanhã vou
fazer uma expedição cinegética?
A palavra tonteou a negra, fazendo-a
piscar três vezes.
— Gine, o quê?
— Gética. Ci-ne-gé-ti-ca
Tia Nastácia arregalou os olhos, sem perceber coisa nenhuma.
Depois, voltando-se para Dona Benta:
— Não deixe ele ir, Sinhá. Não sei o
que isso é, mas coisa boa não há de ser. Não deixe, Sinhá.
Todos riram-se da pobre preta.
— Vê, Pedrinho, como é bom saber? Essa
mesma cara de espanto você faria, se ouvisse tal palavra antes da minha
explicação. Já agora, em vez de ser bobeado, você bobeia os outros. Está compreendendo
a grande vantagem de saber?
— Chega de gramática, vovó! —
protestou a menina. — Vamos à história. Os meninos estavam à espera de Peter
Pan. E depois?
— Pois é. Os meninos estavam à espera
de Peter Pan, que saíra à caça, e em cima da morada subterrânea Pantera Branca
e seus índios montavam guarda.
Súbito, soou um assobio agudo. Era o
sinal de Peter Pan. De longe já ele anunciava a sua chegada com aquele assobio
agudíssimo. Pantera Branca foi ao seu encontro, enquanto os meninos subiam às
árvores para vê-lo chegar.
Cada vez que Peter Pan vinha duma das
suas excursões, era uma festa para a meninada. Como bom pai, trazia sempre
novidades gostosas nos bolsos — frutas do mato, doces, mil coisas. Os meninos o
rodeavam como ratos rodeiam um saco de milho, e cada qual ia enfiando as mãos
nos seus bolsos para pescar o que saísse.
Peter Pan entrou na caverna e
dirigiu-se para o lado de Wendy, naquele momento ocupada em remendar as meias
de Levemente-Estragado. Estava linda no seu vestido cor de outono, com um
galhinho de amora-do-mato nos cabelos.
Narizinho estranhou aquela expressão
"cor de outono."
— Que história é essa, vovó? O outono
é uma das estações do ano, mas não me consta que tenha cor...
Dona Benta riu-se.
— Minha filha, a língua está cheia de
expressões poéticas. São os poetas que inventam essas coisas tão lindinhas para
enfeite da linguagem. O outono é a mais linda de todas as estações nos países
frios onde cai neve. Aqui no Brasil ninguém percebe diferença grande entre o
outono, o verão e o inverno. Na realidade só temos duas estações — a das águas
e a da seca. A vegetação se mostra intensamente verde na estação das águas, e
também verde, essas de um verde mais sujo, mais seco, na estação da seca — que
vai de maio a outubro. Nos países frios não é assim. As quatro estações são
perfeitamente definidas.
— Eu sei! — gritou Pedrinho. — Há a
primavera, o verão, o outono e o inverno...
— Isso mesmo. Na primavera a vegetação
desperta do sono do inverno e brota numa grande alegria de verdes esmeraldinos.
Sabe o que é o verde esmeraldino?
Pedrinho sabia.
— É o verde cor de esmeralda.
— Sim — um verde de broto novo,
delicado, lindo. Nas laranjeiras você vê muito bem o verde-esmeralda nos brotos
novos e vê o verde carregado do verão nas folhas velhas. Pois bem: o verde
esmeraldino é o verde da primavera; de modo que se um poeta disser "cor de
primavera" a gente já sabe que se trata do verde-esmeralda.
— Nesse caso, "cor de verão"
deve ser o verde carregado das copas das laranjeiras — ajuntou Narizinho.
— Perfeitamente, minha filha.
"Cor de verão" só pode ser verde carregado. "E cor de outono..."
Dona Benta parou. Tinha primeiro de
dar uma ideia do que é o outono nos países frios. Pensou um bocado e disse:
— O outono é a mais linda, a mais poética
estação do ano nos países frios. A vegetação inteirinha muda de cor. Tudo que é
verde passa a amarelo ou vermelho.
— Então fica lindo...
— Sim, a natureza toda fica como um
sonho de beleza. Tudo amarelo e vermelho. A gama inteira dos amarelos e vermelhos...
No começo, amarelos e vermelhos muito vivos, novinhos ainda. Depois, mais
murchos; e por fim, uns amarelos e vermelhos mortos, embaçados, sujos, porque
toda a folharada das árvores vai caminhando para o tom pardo, que é o tom da
morte das folhas diante do inverno que se aproxima. Estão entendendo?
— Estamos, vovó — responderam os dois
meninos. — Apesar da sua linguagem elevada estamos entendendo muito bens. E já
percebemos o que é "cor de outono", — acrescentou Narizinho. — o tom
de palha, não é isso mesmo?
Dona Benta abraçou a sua neta.
— Isso mesmo. É o tom da palha, da
folha murcha, já quase sem cor. Emília meteu o bedelho:
— Já sei. É cor de burro quando foge...
Dona Benta riu-se.
— E qual a cor do burro quando foge,
Emília? A diabinha não se atrapalhou:
— É cor de outono... Narizinho,
ansiosa pela continuação da história de Peter Pan, pôs fim naquela dança das
cores.
— Chega de cor, vovó. Continue...
Mas Pedrinho, que gostava muito de
amora-do-mato tinha ficado com água na boca, e falou duma ideia que andava em
sua cabeça: fazer uma plantação no pomar de amoras-do-mato de todas as
qualidades. — E de framboesas também, vovó — não dessa framboesa selvagem que há
aqui nos morros, mas da europeia. Que acha? — Dona Benta achou excelente a ideia,
e ia começando a fazer uma preleção sobre a framboesa; Narizinho a interrompeu:
— “A framboesa agora é a história”. Continue. — E Dona Benta continuou:
— Peter Pan contou as novidades de lá
fora e pediu notícia de tudo quanto havia acontecido na caverna durante a sua
ausência. Depois cantou uma cantiga que Wendy achava a coisa mais linda do
mundo — mas só quando cantada por ele. Se outro qualquer a cantava, perdia
completamente a graça.
Enquanto Peter Pan cantava, os meninos
brincavam de guerra. As armas eram os travesseiros e o campo de batalha era a
cama grande. O resultado da luta foi o mesmo de sempre: penas por toda parte
(os travesseiros eram de pena) e um trabalhão para Wendy no dia seguinte.
O meio de a menina interromper aquelas
lutas destruidoras consistia em anunciar uma história nova. Todos sossegavam
imediatamente, como por encanto. Vinham sentar-se em redor dela, guardando
silêncio profundo, e assim ficavam até que o sono os derrubas- se.
A história daquela noite foi inventada
por Wendy, que já havia esgotado o sortimento das que tinha ouvido de sua
mamãe. Era a história dum casal cujos três filhos resolveram fugir de casa
durante certa noite de inverno. Os pobres pais haviam caído na mais profunda
tristeza e nunca mais fecharam as janelas do quarto dos meninos fujões, na
esperança de que por ali mesmo voltassem um dia.
— "Não, Wendy, não é assim"
— disse Peter Pan com ar de certeza.
— "A janela não está aberta à
espera de que os três meninos voltem. Está fechada porque há um novo bebê lá no
quarto."
Wendy levou.um grande susto. Seria
possível que fosse como Peter Pan estava dizendo?
— "Por que diz isso, Peter?
Esteve lá? Viu alguma coisa?"
— "Não estive, nem vi, mas
imagino, porque foi assim que se deu na casa dos meus pais. Depois que de lá
fugi, fui um dia espiar o meu quarto pela janela. Encontrei-a fechadíssima, e
dentro, talvez no meu próprio berço, chorava um novo bebê..."
Por que foi ele dizer aquilo? Wendy e
os irmãozinhos ficaram na maior inquietação, apavorados com a ideia de novos
bebês dormindo nas suas camas, brincando com os seus brinquedos, ouvindo as
histórias que eles costumavam ouvir e recebendo os beijos que eles costumavam
receber. Oh, isso era horrível!
Wendy resolveu voltar para casa
imediatamente.
Quando declarou essa resolução a
tristeza foi geral. Os meninos perdidos rodearam-na com mil pedidos para que
não os abandonasse. Tinham-se acostumado a ter mãe e não suportariam a antiga
vida de órfãos.
— "Quem está falando em abandonar
vocês?" — respondeu Wendy.
— "Vão todos comigo, está claro,
e toda a vida moraremos juntos lá em casa."
Os meninos perdidos, felizes como
passarinhos, deram saltos de alegria. Que bom! Que bom! Que bom! Iam ter uma
verdadeira mãe, grande e perfeita, como era a Senhora Darling. Iam viver numa
casa linda e andar como todos os meninos da cidade andam.
— "Viva! Viva Wendy!" —
gritaram.
Só Peter Pan resistiu à tentação.
Sentia imensamente perder Wendy e seus irmãozinhos, mas não podia admitir a ideia
de voltar ao mundo de onde fugira logo ao nascer — o horrível mundo onde os
meninos crescem e viram homenzarrões bigodudos e feios. Jamais faria isso.
Jamais desertaria a Terra do Nunca — a terra onde os meninos não crescem. Os
outros que fossem. Ele ficaria sozinho.
Combinado assim, começaram todos a
aprontar-se, na maior balbúrdia e gritaria. Cada qual fez a sua trouxinha,
pondo nela os brinquedos e as lembranças mais queridas. Bicudo levou um morcego
seco, que desejava mostrar para a Senhora Darling.
— Credo! — exclamou tia Nastácia, fazendo
cara de horror. — Essa ideia só mesmo dum Bicudo. Morcego seco, vejam só...
— Antes morcego seco do que morcego
vivo — disse Emília. — Eu tenho medo das coisas vivas porque mordem; mas das
secas, não. E Levemente-Estragado, que é que levou, Dona Benta?
— Não sei. O livro não diz. Mas com
certeza levou uma bobagem do mesmo naipe — um rato seco, por exemplo. Todas as
crianças se impressionam muito com bichos secos. Pedrinho, quando contava
apenas quatro anos de idade, apareceu-me um dia na sala de jantar com um
horrendo gato seco, que empestou a casa inteira. Lembra-se, Pedrinho?
Tia Nastácia lembrava-se muito bem mas
o menino não.
— Continue, vovó — pediu Narizinho.
— Depois de arranjados os presentes
para a Senhora Darling, Wendy despediu-se de Peter Pan. Abraçou-o e disse, com
os olhos úmidos de lágrimas:
— "Minha última recomendação é
que você não deixe de tomar o seu remédio na hora certa. Veja lá, hein?"
Referia-se a um remédio que Peter Pan
estava tomando para curar-se das terríveis ganchadas do Capitão Gancho.
Iam partir. Nisto lhes chegou aos
ouvidos um barulho lá fora, bem em cima da caverna subterrânea. Que seria? Os
meninos ficaram imóveis, à escuta. Barulho de guerra. Ouviam-se distintamente o
choque das armas, o assobio das flechas, o rumor dos tombos, os gritos dos
machucados. Peter Pan compreendeu logo que os piratas haviam assaltado os
índios de surpresa.
— "Se os Peles-Vermelhas saírem
vencedores, não deixarão de tocar o tantã" — disse ele — e ficaram todos
atentos, à espera do toque do tantã, sinal de vitória entre os índios.
A batalha não durou muito tempo. Como
de costume, os Peles-Vermelhas foram completamente derrotados e fugiram como
lebres. Mas dentro do subterrâneo os meninos não podiam saber disso, de modo
que continuaram muito atentos, à espera do tantã.
Afugentados os índios, o Capitão
Gancho resolveu aproveitar-se da oportunidade para dar cabo dos meninos naquele
mesmo dia. Ele tinha estado uma porção de tempo a escutar pelo chapéu-de-sapo
que servia de chaminé (Peter Pan havia construído outro para substituir o que
fora destruído pelo pontapé do pirata), e pôde ouvir uma boa parte da conversa
dos meninos, inclusive o pedaço em que Peter Pan falou do tantã.
— "Muito bem — disse consigo o
chefe dos piratas. Eles estão à espera do toque do tantã, que é o sinal de
triunfo dos índios. Ora, estes fugiram e deixaram o tantã aqui. Que faço eu?
Toco o tantã. Os bobinhos lá dentro pensam que Pantera Branca venceu e saem
pelos ocos — e eu os apanho todos um por um. Ótimo!
O Capitão Gancho, assim pensou e assim
fez. Tocou o tantã — tantã, tantã...
Assim que aquele amado som chegou aos
ouvidos dos meninos, a alegria foi imensa. Puseram-se a pular e a dançar,
porque era a primeira vez que os seus aliados índios venciam os terríveis piratas.
— "Hurra!" — gritaram todos.
— "Os índios venceram, afinal! Podemos sair sem perigo nenhum" — e
cada qual tomou o caminho do seu oco e foi marinhando por ele acima.
O Capitão Gancho havia postado três
piratas na boca de cada oco, de modo que os meninos eram caçados um por um,
logo que punham a cabeça de fora. Agarravam-nos e amordaçavam-nos, para que os
gritos não avisassem os outros. Tão bem feito saiu aquele servicinho que Peter
Pan, lá dentro, de nada desconfiou. Ficou certo de que a meninada já ia a
caminho de Londres, muito em paz, conduzida pela bola de fogo.
Peter Pan estava profundamente triste.
Súbito, lançou-se à cama, com a cara escondida nas mãos. Dizem que chorou, mas
não há certeza disso.
— Ele então não chorava? — perguntou
Narizinho.
— Não, nunca chorou, salvo, talvez,
nesse dia — mas não há certeza. Peter Pan considerava o choro como coisa
própria de mulher.
— Eu queria esfregar cebola nos olhos
dele para ver se chorava ou não — disse Emília. Já notei que cebola
"comove" mais as gentes do que a história mais triste que possa
haver. E depois?
— Depois deixou-se ficar na cama, com a
cara escondida no travesseiro. Enquanto isso o Capitão Gancho, lá em cima,
impacientava-se com a demora dele. Havia apanhado todos os meninos, menos justamente
o principal.
— "Querem ver que ainda desta vez
o raio do tal menino me escapa?" — murmurou consigo.
Por fim, vendo que Peter Pan não saía
mesmo, o chefe dos piratas pensou, pensou, para ver se lhe ocorria uma ideia
que valesse a pena. Estudou a situação. Entrar pelo oco, impossível. As
aberturas eram muito estreitas para um cavalão da sua marca. Porta para ser
arrombada não existia. Que fazer? O Capitão Gancho coçava a cabeça, indeciso.
Lembrou-se de espiar pela chaminé.
Dava jeito. Viu o menino estirado na cama e num caixão à sua cabeceira o vidro
de remédio que Wendy pusera ali.
— "Já sei!" — exclamou o
bandido, iluminado por uma ideia infernal.
— "Derramo umas gotas de veneno
naquele vidro e pronto! Ótima lembrança."
Assim fez. Por meio dum canudinho
enfiado pela chaminé, achou jeito de pingar dentro do vidro de remédio (que
estava desarrolhado) seis gotas do pior veneno que existe. Em seguida
retirou-se, tomando caminho do seu navio, muito contente da vida, a esfregar as
mãos.
— Como? — inquiriu Emília. — Se ele só
tinha uma, como poderia esfregar as mãos?
— Isto é um modo de falar — explicou
Dona Benta. — Quando queremos dizer que Fulano saiu muito contente, costumamos
usar dessa expressão "esfregar as mãos", ainda que o tal Fulano nem mãos
tenha. São modos de dizer:
— Continue, vovó. Não perca tempo com
esta encrenqueira.
— Pois é. O Capitão Gancho envenenou o
remédio de Peter Pan e lá se foi para o seu navio, muito contente da vida. Foi
certo de que o menino tomaria o remédio e morreria a pior das mortes.
Peter Pan, sozinho na caverna
subterrânea, não conseguia dormir. Pensamentos tristes esvoaçavam pela sua
cabeça, como morcegos. Fechava os olhos com toda a força, contava até mil — e
nada. Nada de o sono chegar. De repente, viu uma claridade. Era a fada Sininho
que chegava, mas tão aflita que vinha atrapalhando os tlins-tlins todos.
— "Que há, Sininho?" —
perguntou ele, erguendo-se da cama.
A bola de fogo narrou a grande
desgraça acontecida aos meninos, que estavam naquele momento encerrados no
escuro e sujíssimo porão do navio dos piratas.
Peter Pan, num pulo de tigre, correu
ao rebolo para amolar as suas armas. Deixou a espada que nem navalha e fez no
seu punhal de guerra uma ponta fina como a das agulhas. Estava ocupado nisso quando
notou que a bola de fogo principiava a empalidecer. Assustou-se.
— "Que é que você tem,
Sininho?" — perguntou ele, inquieto — e quase nem pôde ouvir a resposta,
de fracos que soavam os tlins-tlins da pequenina fada.
Sininho estava morrendo. Percebera que
o remédio de Peter Pan tinha sido envenenado e o bebera, com a ideia de o
salvar. Sacrificara-se por ele, a coitadinha:
— Por quê? Não entendo — disse
Narizinho.
— Sininho havia refletido que se o
avisasse de que o remédio estava envenenado, Peter Pan não acreditaria, supondo
que Sininho não queria que ele bebesse o remédio só por ter sido preparado por
Wendy. E resolveu então beber o remédio antes que ele o tomasse.
Ao ver que a sua querida fada ia
morrendo, Peter Pan sentiu uma dor infinita. Perder Sininho era-lhe pior do que
perder a própria vida. Precisava salvá-la, custasse o que custasse. Mas como?
Peter Pan franziu a testa com toda a
força e teve imediatamente uma grande ideia. Subiu pelo oco e lá fora trepou à
árvore mais alta. E bem de cima gritou para o mundo, com toda a força dos
pulmões:
— "Quem acreditar em fadas, que
bata palmas até não poder mais! É esse o único meio de salvar a minha querida
Sininho!..."
Tão sincero e sentido foi aquele
grito, que todas as crianças da terra o ouviram — e milhões e milhões de palmas
ressoaram pelo mundo afora. Uma barulhada de atordoar a gente...
— E o resultado? — perguntou
Narizinho, ansiosa.
— Foi ótimo, um verdadeiro milagre. A
luz de Sininho começou a brilhar de novo e os tlins-tlins tornaram-se ainda
mais fortes do que antes. Sininho estava salva!
Assim que a viu completamente boa,
Peter Pan deu o maior suspiro de alívio de toda a sua vida.
— "Agora, toca a salvar os
outros!" — disse ele, e tomando as armas afiadíssimas lá se foi em companhia
de Sininho ao encontro dos piratas raptores.
— E depois? — indagou Pedrinho.
— Depois, cama. Já são nove horas Para
a cama todos! Amanhã veremos o que aconteceu.
Pedrinho danou.
— É sempre assim. As histórias são
sempre interrompidas nos pontos mais interessantes. Chega até a ser judiação...
CAPÍTULO 5: O NAVIO DOS PIRATAS
No outro dia tia Nastácia apareceu com
beiço ainda mais caído, porque a sua sombra continuava a desaparecer.
Colocou-se entre o lampião e a parede e disse para Dona Benta:
— Veja, Sinhá... Só resta um, tiquinho...
— E o Visconde, que diz a isso?
— O Visconde promete pegar o ladrão de
sombra como pegou o gato, mas ainda está "estudando", como ele diz.
Emília, que andava de ponta com o
Visconde, meteu o bedelho.
— No caso do gato Félix ele descobriu
tudo porque eu ajudei. Se eu não tivesse arrancado aquele fio do bigode do gato
ladrão, queria ver! Esses tais de detetives são uns grandes palermas...
— Sonso ele é — disse tia Nastácia. —
Mas a cabecinha dele pensa tão certo que até dá inveja na gente. Vocês vão ver
como ele descobre o ladrão.
O Visconde, que estava escondido
debaixo da mesa, tudo ouvindo e observando, notou o torcimento de nariz da
Emília. E desde esse instante começou a desconfiar que a criminosa fosse ela.
Dona Benta sentou-se e dispôs-se a
continuar a história.
— Onde ficamos ontem? — perguntou.
— Peter Pan havia saído da caverna
para salvar os outros — lembrou Pedrinho.
— Sim, é isso. Peter Pan encaminhou-se
para o navio dos piratas. Oh, era horrendamente feio esse navio! Feio e velho,
de velas sujas e cordas sebentas, com um mau cheiro horrível. Chamava-se a Hiena dos Mares — e era mesmo uma hiena
em forma de navio. Hiena vocês sabem o que é.
— Sei — disse Pedrinho. — É um animal
da família das Hienideas, muito feio, cabeçudo, peludo, que só anda de noite e
come carniça. Animal da África e da Ásia. O urubu das feras.
Dona Benta aprovou a ciência do menino
e prosseguiu.
— Pois tinha esse nome o navio do
Capitão Gancho. No mastro principal flutuava uma bandeira vermelha, com uma
caveira negra sobre dois ossos cruzados em forma de X.
Para esse horrível navio tinham sido
levados os pequenos prisioneiros, e chegados lá foram arremessados com toda a
brutalidade ao porão, onde havia mais ratos nojentos do que há estrelas no céu.
Enquanto os coitadinhos tremiam de pavor no porão escuro, o chefe dos piratas
passeava pelo tombadilho, muito satisfeito consigo mesmo por haver derrotado os
índios e aprisionado os garotos. De repente parou para perguntar a Capacete:
— "Estão os prisioneiros bem
acorrentados, de modo que não possam fugir?"
— "Sim, Capitão."
— "Nesse caso, traga-os cá para
cima" — ordenou ele, tomando assento numa velha cadeira de braços que lhe
servia de trono.
Os meninos foram conduzidos à sua presença,
acorrentados dois a dois. O Capitão Gancho encarou-os com ar feroz e declarou
que seis deles iam ser lançados ao mar com uma pedra ao pescoço, e que dois
ficariam no navio como grumetes, a fim de virarem piratas.
— "Você aí do centro!" —
disse referindo-se a João Napoleão. — "Você tem bom peito para grumete.
Que tal a ideia de ficar comigo neste navio?"
João, que havia lido muitas histórias
de pirataria e gostava de aventuras no mar, ficou logo seduzido pela ideia
Adiantou-se e disse:
— "Se eu ficar você me dá o nome
de Jack o Mão Peluda?" O Capitão Gancho riu-se da lembrança e respondeu
que sim.
— "Nesse caso, fico!" —
declarou João Napoleão, com os olhos a faiscarem de entusiasmo.
O chefe dos piratas fez a mesma
pergunta a Miguel, o qual, em vez de responder, aproximou-se dele e, sem medo
nenhum, bateu-lhe no ombro, dizendo:
— "Depende do nome que você me
der."
— "Joe o Barbanegra! Gosta?"
Miguel gostou e declarou que ficava.
Mas quando Miguel e João Napoleão souberam que para ser pirata a primeira coisa
que tinham a fazer seria jurar guerra e ódio ao rei, gritando: — "Abaixo o
rei da Inglaterra!" — ambos desistiram de tudo. Como bons inglesinhos,
conservavam-se leais ao seu soberano.
O Capitão Gancho ficou furioso e
declarou que nesse caso teriam de morrer como os demais, afogados com pedras ao
pescoço. Em seguida ordenou que trouxessem à sua presença a mãe daqueles
meninos.
Wendy foi trazida de rastos e deixada
sozinha em frente do terrível chefe de piratas. Apesar do terror que esse monstro
lhe inspirava, a menina soube dominar-se e não fazer má figura. O Capitão
Gancho perguntou-lhe se tinha alguma recomendação a fazer aos filhos, dos quais
ia separar-se para sempre. Wendy voltou-se para os meninos e falou deste modo:
— "Já que vocês têm de morrer nas mãos destes bandidos, que morram como
verdadeiros heróis. É isto que as suas
verdadeiras mães diriam se estivessem no meu lugar. Viva o rei da
Inglaterra!"
— "Viva! Viva!" — gritaram
todos os meninos, como se fossem um só.
Dar vivas ao rei da Inglaterra nas
fuças do Capitão Gancho era o maior atrevimento do século. O chefe dos piratas
espumou de cólera, e ordenou que amarrassem Wendy ao mastro grande, de onde
teria de assistir à morte de todos os meninos, um por um. Assim foi feito e a
corajosa menina lá ficou, que nem uma Joana d'Arc, no seu vestidinho cor de
ouro velho e de xale ao pescoço.
Ia começar a matança. Os piratas
trouxeram as pedras de afogar prisioneiros. O Capitão Gancho sorria
deliciadamente. Para aquele monstro, o maior prazer da vida era ver afogar
prisioneiros.
Súbito, o seu sorriso diabólico
transformou-se em careta de terror.
Um famoso tique-taque, muito seu conhecido, soara perto.
— "O crocodilo!" — exclamou
ele, dando um pulo e indo esconder-se no fim do navio, atrás duma pilha de
cordas. Os demais piratas para lá também correram, cercando o chefe com uma
muralha de corpos. Os meninos, de respiração suspensa, ficaram à espera de ver
o crocodilo surgir.
Mas não surgiu crocodilo nenhum. Em
vez da fera apareceu na beira do navio a carinha de Peter Pan. Fez aos meninos
sinal de bico calado e entrou à moda dos índios, agachado, de jeito que os
piratas nada vissem. Trazia atravessado na boca o seu terrível punhal e na mão
direita, um despertador. O tique-taque
que tanto apavorava o Capitão Gancho não era do crocodilo...
Peter Pan esgueirou-se pelo chão,
feito cobra, e penetrou numa cabina, trancando-se lá dentro.
Tendo cessado de ouvir o tique-taque o Capitão Gancho virou
valente outra vez. Voltou ao trono e deu ordem para a matança dos prisioneiros.
— "Vamos, comecem!" —
gritou.
A resposta foi um coricocó de galo dentro da cabina. O chefe dos piratas empalideceu.
Não podia compreender o que fosse aquilo, pois nunca existira galo nenhum a
bordo da Hiena dos Mares.
— "Capacete, vá ver o que há na
cabina" — ordenou.
Capacete foi. Entrou na cabina e não
saiu mais. Vendo que Capacete não reaparecia, o Capitão Gancho, muito pálido,
ordenou que outro pirata fosse ver o que era. Esse segundo pirata, porém,
tomou-se de tanto medo que em vez de obedecer lançou-se ao mar e foi nadando
para terra.
— "Covardes!" — berrou o
Capitão Gancho. — "Têm medo? Pois vou eu mesmo, para mostrar o que é
coragem", e tomando uma lanterna dirigiu-se para a misteriosa cabina.
Entrou, mas incontinenti voltou atrás,
dum salto.
— "Uma coisa assoprou e apagou a
minha lanterna! Deve ser uma abantesma, ou qualquer monstro dessa laia. O
melhor é lançarmos contra ela os prisioneiros. Serão devorados e nós
economizaremos as nossas pedras de afogar. Vamos! Empurrem a meninada para a
cabina da abantesma!"
Era justamente o que os meninos
queriam; mas não deram sinal disso, bem ao contrário — resistiram, fingindo
grande medo, e só entraram na cabina à força.
Os piratas são em regra muito
supersticiosos. Acreditam em quanta bobagem há. Uma das suas crendices é que
mulher trás desgraça para navio. Por isso juntaram-se em conferência para
resolver o que fariam de Wendy. Enquanto conferenciavam na popa, Peter Pan saiu
da cabina sem ser visto, foi ao mastro, soltou a menina e colocou-se em seu
lugar, bem disfarçado com o xalinho ao pescoço.
Depois de muito discutirem, os piratas
resolveram lançar ao mar a mulherzinha que estava atrapalhando a vida de bordo.
— "Muito bem!" — exclamou o
Capitão Gancho, fechando a discussão. — "Assim seja. Lancem-na ao mar!
Acabem logo com a vida dessa criatura que nos está trazendo desgraças."
Vários piratas dirigiram-se para o
mastro a fim de cumprir a ordem do chefe. E parando diante daquele vultinho
meio embuçado no xale, disseram, com voz de escárnio
— "Chegou sua hora, menina. Nada
no mundo poderá salvá-la."
— "É o que parece!" — gritou
Peter Pan, arrancando o xale e espetando a espada no peito do pirata mais
próximo. Depois soltou um grito de guerra: — "Por Wendy e pelo Rei! Avança,
meninada!"
Foi uma coisa espantosa. Os meninos
saíram da cabina armados com as melhores armas existentes no navio, e caíram em
cima dos piratas como um bando de vespas coléricas. Os pobres piratas não
sabiam o que pensar, pois estavam certos de que a abantesma já os havia
devorado a todos. Foram tomados de pânico. Uns jogavam-se ao mar, outros
tapavam os olhos com a mão; outros, mais corajosos, resistiam.
— "Ninguém ataque o Capitão
Gancho!" — berrava Peter Pan. — "Esse é meu só."
Travou-se medonha luta. Embora fossem
mais fortes que os meninos, os piratas eram vencidos pela agilidade deles — e
um a um foram sendo postos fora de combate, ou forçados a se jogarem ao mar. Ao
cabo de alguns minutos só ficou em campo o Capitão Gancho, sempre atracado com
Peter Pan.
Foi a luta mais bonita que ainda se
viu no mundo. Peter Pan parecia um demônio. Saltava como gato selvagem e
dançava na frente do pirata, fazendo-o errar todos os botes da sua mão de
gancho. E enquanto isso, tome lá um pontapé na barriga, tome lá uma cutucada no
nariz, tome lá mais um galo na testa!
A agilidade de Peter Pan fazia que ele
não perdesse um só golpe e evitasse todos os golpes arremessados pelo pirata. O
Capitão Gancho estava já de língua de fora, como cachorro cansado. Suava em bicas,
um suor muito fedorento. Tinha mais arranhões pelo corpo e galos pela testa do
que cabelos na cabeça. Em certo momento deteve-se, apavorado, e gritou:
— "Será que estou lutando contra
um demônio? Peter Pan, diga-me quem é você?"
Peter Pan, como um galinho novo que
sacode as asas ao nascer do sol — respondeu com um grito de atroar os ares:
— "Eu sou a Juventude! Sou a
alegria da vida! Sou eterno e invencível!"
E
zás, zás, zás,
apertou o velho capitão numa tal roda de golpes que ele foi recuando, recuando,
recuando até que chegou à beiradinha do navio e...
— Tchibum!
Caiu n’água — completou Emília.
— Não. Caiu mas foi bem dentro da
goela do crocodilo. O paciente animal tinha ouvido o barulho da luta e
aproximara-se de mansinho, ficando rente ao navio, de boca aberta, à espera do
resto da mão. E desse modo devorou o famoso chefe dos piratas, com gancho e
tudo...
— Bravos! — exclamou Pedrinho. Eu
sabia que ia suceder isso. Menino protegido pelas fadas acaba sempre vencendo...
Tia Nastácia arregalou os olhos.
— Credo! Imaginem um menino desses
aqui no sítio! Era capaz até de serrar o chifre do Quindim...
CAPÍTULO 6: A VOLTA
No dia seguinte, à hora de acender o
lampião, o Visconde apareceu todo cheio de si e disse:
— Descobri tudo. Descobri o ladrão da
sombra de tia Nastácia. Aposto que ela está hoje sem sombra nenhuma.
— Quem é? Quem foi? — indagaram todos.
O Visconde olhou para Emília, que
estava de lábios apertados e olhinhos duros. Quis dizer que era ela, mas não
teve coragem. Por fim, como Dona Benta insistisse, não teve remédio.
— É a senhora Dona Emília a ladrona da
sombra! — declarou o Visconde corajosamente.
Foi um espanto geral. Todos se
voltaram para a boneca, que apenas sorriu com superioridade e respondeu com uma
pergunta.
— Dona Benta — disse ela — explique ao
Visconde o que é roubar.
— Roubar é tirar uma coisa que
pertence a outra pessoa sem autorização dessa pessoa — ensinou Dona Benta.
— Muito bem — exclamou Emília — Mas se
a coisa roubada continua no poder da dona, alguém pode afirmar que houve roubo?
— Não, está claro que não. Mas que tem
isso com o caso?
— Muita coisa — replicou Emília — e
voltando-se para tia Nastácia:
— Acenda o lampião e veja se está
mesmo roubada.
Tia Nastácia acendeu o lampião e, com
grande surpresa, viu que sua sombra se projetava inteirinha na parede, como
antigamente.
Todos arregalaram os olhos.
— Vejam que sherlock das dúzias é o tal Senhor Visconde! — gritou Emília, dando
uma risada irônica. — Acusou-me de ter furtado uma coisa que não foi furtada! A
sombra de tia Nastácia está direitinha como sempre foi.
Era a pura verdade. Todos se
aproximaram da parede para examinar o estranho caso. Viram que de fato a sombra
fora cortada em numerosos pedaços, mas que havia sido remendada de novo. As costuras
estavam visíveis.
— Bom — disse Dona Benta. — Desde que
a sombra voltou, não vale a pena insistirmos nisso, mas Emília que não repita a
brincadeira. A sombra grudou muito bem. Mas se não grudasse? Se a pobre tia
Nastácia ficasse aleijada por toda a vida? Não e não. Basta de tais reinações.
Com sombra a gente não brinca.
Em seguida tomou assento em sua
cadeira de pernas serradas e anunciou o fim da história de Peter Pan e Wendy.
— Depois da derrota do Capitão Gancho
— disse ela — os outros piratas levaram a breca, isto é, morreram afogados. Só
se salvaram dois, um de nome Smee e outro de nome Starkey.
Smee era um pirata irlandês, não tão
ruim como os outros; conseguiu nadar até à praia, salvou-se e acabou marinheiro
muito bem comportado, num navio de guerra inglês.
— E Starkey? — Starkey nunca havia
derramado sangue humano, apesar de ser um grande patife. A sorte o poupou. Foi
aprisionado pelos Peles-Vermelhas e posto lá na tribo como ama-seca dos
indiozinhos. Para pirata não podia haver castigo maior.
— E na casa dos pais dos meninos?
— Lá foi uma tristeza sem conta, como
vocês podem imaginar. O Senhor Darling, como castigo de não ter posto mais
tento nos meninos, resolveu viver na casinha da cachorra Nana, como se fosse
cachorro. Todos os dias, depois de voltar do escritório, ia deitar-se lá e até
fazia au! au! Era um homem muito
esquisito — ou "excêntrico", como dizem os ingleses.
— Excêntrico quer dizer esquisito? —
indagou Pedrinho.
— Excêntrico quer dizer fora do
centro. Aplicado às pessoas quer dizer uma criatura um tanto fora do comum, um
tanto diferente das outras. Os ingleses são muito diferentes de nós, por isso
nós os consideramos excêntricos.
— E a Senhora Darling? — quis saber a
menina.
— A Senhora Darling vivia no
desespero. Já se haviam passado várias semanas sem que os meninos dessem sinal
de si. Os jornais trouxeram artigos sobre o curioso acontecimento e publicaram
o retrato dos três, com promessa duma boa recompensa para quem lhes indicasse o
paradeiro. Tudo inútil.
Certa tarde a infeliz senhora estava
ao pé da lareira, muito triste e desanimada, pensando nos filhos perdidos dum
modo tão misterioso, quando ouviu um rumor de voo na rua — um rumor que não era
de voo de coruja, nem de avião. Parecia voo humano. Mas não deu importância
àquilo e continuou na sua tristeza. Logo depois ouviu uma voz no quarto das
crianças, que dizia: — "Mamãe!"
— "Que será isto, Deus do céu?"
— exclamou ela. — "Estarei sonhando?"
Levantou-se precipitadamente e correu
ao quarto... e viu os três meninos nas suas caminhas, exatamente como outrora.
Certa de que era sonho, esfregou os olhos com toda a força. Olhou outra vez. Lá
continuavam eles. Não era sonho não. Os seus três filhinhos em carne e osso ali
estavam novamente...
Ninguém pode descrever a felicidade da
boa mãe. Abraçava um, beijava outro chorava, ria. Uma perfeita doida. Levou
tempo assim e só sossegou quando Wendy pôs-se a contar tudo quanto havia
acontecido na maravilhosa Terra do Nunca, e a feiura; a ruindade do Capitão
Gancho, e a valentia de Peter Pais, e o amor que os meninos perdidos tinham por
ela.
— "E onde estão esses
meninos?" — perguntou a Senhora Darling.
— "Aí na rua, perto da
janela."
A boa senhora os fez entrar e sabendo
que· não tinham mãe declarou que dali por diante ela seria a mãe de todos. A
casa não era muito espaçosa, mas havia de dar jeito de acomodá-los muito bem.
A única dificuldade foi com Peter Pan.
Embora tivesse gostado muito da Senhora Darling, o estranho menino de modo
nenhum se resignou à ideia de ficar morando num mundo onde as crianças crescem
e viram desenxabidíssimas gentes grandes.
— "Não posso ficar" — disse
ele. — "Não acho graça em crescer. Vou voltar para minha querida Terra do
Nunca, onde viverei sozinho com as fadas."
E depois:
— "Mas ficarei muito contente se
Wendy e os meninos forem todos os anos passar comigo uma semana da primavera. A
senhora consente?"
A Senhora Darling vacilou; mas como a
meninada batesse palmas e fizesse uma enorme gritaria, exigindo o seu sim, ela
não teve remédio — consentiu.
— "Muito bem" — disse. —
"Fica assentado isso. Todos os anos, pela primavera, Wendy e os meninos
irão passar uma semana inteira na Terra do Nunca. Está satisfeito?"
Começaram as despedidas. Peter Pan fez
uma recomendação a cada qual dos seus antigos companheiros e beijou Wendy na
testa. Depois, prrrr!... lá se foi pelos ares. Ia triste e alegre ao mesmo
tempo. Triste, por ter perdido a companhia de Wendy, e alegre por ter resistido
à tentação de virar um menino como qualquer outro — dos que crescem, criam buço
e depois bigode, e acabam "adultos", ou gente grande. Não, não e não.
Havia de conservar-se menino sempre.
— E que aconteceu depois? — quis saber
Narizinho.
— A Senhora Darling a primeira coisa
que fez foi vestir decentemente os meninos perdidos. Estavam todos enfiados em
roupas dos piratas e ainda com cheiro da Hiena
dos Mares. Lavou-os, penteou-os, mandou cortar-lhes o cabelo e por fim os
pôs na escola.
— Eles se acostumaram com a nova vida?
— Custou um pouco. No fim da primeira
semana já estavam arrependidos e com saudades de Peter Pan. A Senhora Darling
percebeu isso, e com medo que fugissem pôs a Nana no quarto, a tomar conta
deles. Cada vez que faziam menção de voar, Nana latia. Por fim, como fossem
perdendo aquele poder de voar, não pensaram mais em fugir. Certa vez em que
Assobio trepou à cama, ergueu os braços e experimentou voar, esborrachou-se no
tapete, tal qual Miguel no primeiro dia.
— Bem feito! — exclamou Emília. — Quem
manda...
— Quem manda o que, Emília? Você
parece idiota...
— Quem manda trocar a mais linda das
terras, terra de piratas, de lobos famintos, de índios que fogem como lebres,
de sereias de casca de prata, por essa sem gracice que deve ser Londres? Bem
feito. Bem feitíssimo.
— Eu também penso assim — disse Pedrinho.
— No dia em que me pilhar na Terra do Nunca, será para sempre. Ando enjoado
deste mundo.
— E tinha coragem de deixar aqui a sua
vovó? — perguntou Dona Benta.
— Isso, não. Levava a senhora também.
Levava todos. Mudava o sítio para lá...
— Continue, vovó — pediu a menina. —
Que aconteceu depois?
— Depois? Nada. Isto é, nada durante
um ano. Quando no outro ano chegou a primavera, Peter Pan apareceu para levar
Wendy e os meninos à Terra do Nunca. Encontrou-os já bastante crescidos, como
era natural. Só ele se conservava do mesmo tamanhinho.
Wendy estava ansiosa de recordar as
passadas aventuras, mas Peter Pan fingia não lembrar-se de nada e só falava de
novas proezas, que a menina desconhecia. Quando ela se referiu ao Capitão
Gancho, Peter Pan fez cara de ponto de interrogação.
— "Quem é esse Gancho?" —
perguntou franzindo a testa.
— "Não se recorda?" —
exclamou Wendy muito admirada. — "Aquele pirata que você mesmo matou a
bordo da Hiena dos Mares..."
— "Eu esqueço sempre os meus
inimigos, depois de vencê-los e matá-los. Não sei mais quem é esse tal Capitão
Gancho."
Depois Wendy falou na fada Sininho e
Peter Pan veio com a mesma coisa.
— "Fada Sininho? Que vem a ser
isso? Não me lembro..."
— "Oh, Peter!" — murmurou
Wendy, profundamente chocada. — "Então não se lembra daquela bola de fogo
que nos servia de guia nos voos e que tinha tanto ciúme de mim? Será possível
que você haja esquecido quem salvou sua vida, Peter?"
Peter Pan tentou lembrar-se mas não
conseguiu.
— "Há tantas fadas na Terra do Nunca!"
— disse ele. — "Com certeza essa tal já morreu. As fadas têm as vidinhas
muito curtas. Umas vivem um minuto; outras vivem uma hora; outra, um ano. Não
me lembro de nenhuma Sininho..."
— Era prosa dele — observou tia
Nastácia. — Lembrava, sim, mas estava fingindo, para atrapalhar Dona Wendy.
Esses meninos mágicos são levadinhos da carepa.
— E depois, vovó?
— Wendy, muito desapontada, chegou à
casinha e lá dormiu. No dia seguinte, porém, Peter Pan não apareceu, nem
durante a semana inteira.
— Tinha esquecido dela, com certeza. É
o cúmulo! — murmurou Narizinho, danada com a má memória de Peter Pan. E depois?
— Wendy ficou sem saber o que pensar.
— "Quem sabe se ele está
doente?" — advertiu Miguel.
— "Não pode ser" — disse a menina.
— "Peter Pan nunca fica doente."
Miguel refletiu e disse:
— "Quem sabe se ele não existe,
Wendy? Quem sabe se não é sonho nosso?"
Wendy quase chorou a essa ideia; por
fim voltou para casa, muito triste.
Mais um ano se passou e ao chegar de
novo a primavera, nada de Peter Pan aparecer. E assim durante vários anos.
— Por que seria que ele abandonou
Wendy?
— Porque ela estava crescendo. Peter
Pan só queria saber de gentinha da sua idade e tamanho, mas como as crianças
crescem, ele vivia mudando de amigos — e esquecia completamente os velhos.
— E depois?
— Passaram-se anos. Wendy cresceu,
ficou uma jovem encantadora e casou-se.
— Com quem? — berrou Emília.
— Não importa com quem. Casou-se com
um homem e teve uma linda filhinha que recebeu o nome de Lillian.
Certo dia de primavera, quando tinha
seis anos de idade estava Lillian em sua nursery
quando Peter Pan apareceu do mesmo jeitinho que muitos anos atrás havia
aparecido para Wendy e do mesmo tamanhinho.
Foi um acontecimento. Lillian já sabia
a história dele porque a senhora Wendy todas as noites lhe contava um pedaço.
Por isso não se assustou. Ao contrário, ergueu-se da cama com muita
naturalidade e teve com ele a mesma conversa que já contei no começo desta
história. Por fim Peter Pan convidou Lillian para voar, e Lillian voou e foi
parar na Terra do Nunca — e se eu fosse contar tudo o que aconteceu daria outra
história ainda maior do que esta.
— E depois?
— Depois Lillian voltou e cresceu e
casou-se e nunca mais soube de Peter Pari, até que teve unia filhinha que
recebeu o nome de Jane. E um belo dia de primavera Jane viu Peter Pan aparecer
em sua nursery, tudo igualzinho como
havia acontecido com sua mãe e sua avó. Peter Pan levou-a para a Terra do Nunca
e também lá tudo se repetiu como dantes. Depois...
— Já sei — berrou Emília. — Depois
Jane cresceu e casou com um homem e teve uma filha de nome Margaret, que, etcetera
e tal. Mas que significa isso, afinal de contas?
— Significa — disse Dona Benta — que
Peter Pan é eterno, mas só existe num momento da vida de cada criatura.
— Em que momento?
— No momento em que batemos palmas
quando alguém nos pergunta se existem fadas.
— E que momento é esse?
— É o momento em que somos do
tamanhinho dele. Mas depois a idade vem e nos faz crescer... e Peter Pan,
então, nunca mais nos procura...
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