Nesse
dia dona Maria Umbelina, respeitável senhora de 70 janeiros bem puxados, se
levantara mais cedo que de costume e logo pusera em pé todas as pessoas da
casa.
—
Ponde hoje mesmo fora de casa o maldito Turco. Não pude dormir durante toda a
santíssima noite. Já não bastam minhas dores? Ainda aparece agora aquele
agouro! Sei que estou velha. Não devo durar muito. Mas não preciso daquele
demônio me avisando sobre minha morte. Andes, Jacinto, ponhas uma corrente e
leves a Rio Comprido, à casa de minha filha Maria da Glória. Digas pra o
conservar lá. Ora, se viu que coisa, um azar daqueles, abreviar os poucos dias
duma pessoa! Não preciso saber o dia quando tenho de morrer! Andes, Jacinto.
Leves a Rio Comprido.
E
enquanto dona Maria Ursulina não viu Jacinto sair puxando o Turco, um magnífico
Terra-Nova, de olhar inteligente e pelo negro, sedoso e luzidio, não ficou
tranquila.
E
ainda depois da partida do cão falou muito sobre o uivo do bicho, que
considerava funesto presságio pra sua vida.
—
Então o uivo do cão é mau agouro?, dona Maria. — Disse eu, desejoso de ouvir a
velha discorrer sobre aquele assunto, pois sabia que ela era muito versada em
matéria de crendice.
— De
certo que é. Hoje, com o tal progresso que só serve pra introduzir coisas más
nos costumes, a tudo dizem que é superstição, e riem. Em nada se acredita. Mas
morrerei nas crenças em que fui criada. Que o uivo do cão é mau agouro foi
coisa que sempre ouvi dizer, desde menina. Quando o cão uiva é porque vê passar
o anjo da morte que espera a vida das criaturas aqui ou ali. Nós, por causa de
nossos pecados, que são muitos, não podemos ver o anjo, porém o cachorro,
apesar de ser um bruto, Deus acha nele merecimento pra poder ver o anjo
terrível, que cumpre suas ordens. Assim, prestes bem atenção: Quando ouvir um
cachorro uivar, dali a alguns meses há morte na casa do dono ou em qualquer
pessoa da vizinhança. Não falha.
— Mas
não podemos ver o anjo da morte?
— Não
senhor. Contudo algumas pessoas, porém raríssimas vezes, o têm visto, quando
porém tal acontece a pessoa pode mandar fazer o caixão. Nunca me há de esquecer
o que aconteceu com meu compadre João Barbosa, a quem Deus tenha em sua
santíssima guarda. Foi um fato presenciado por muita gente que não era tola.
— O
que sucedeu com teu compadre?, dona Maria. — Perguntei abelhudamente.
O
fraco da estimável senhora era contar coisas passadas com ela ou sobre as quais
tinha notícia. Foi, pois, com a maior satisfação que acolheu minha curiosidade.
—
Contarei sobre o que sucedeu. Já se passaram 40 anos mas ainda me lembro como
se fosse ontem.
E
dizendo isso se acomodou numa poltrona, onde passava quase todo o dia, e assim
começou a extraordinária história sobre os uivos do cão quando vê passar o anjo
da morte:
***
Meu
compadre João Barbosa era um homem muito bem disposto e que gozava a mais
robusta saúde: Alto, cheio de corpo, rosado, comendo bem, dormindo melhor,
espírito alegre, atividade pro negócio. Tudo nele revelava a mais decidida
disposição.
Era um
dos maiores negociantes de ferragem da rua do Sabão mas morava em Laranjeiras,
quase ao chegar a Águas Férreas, numa bonita chácara com um grande jardim na
frente, e tendo nos fundos um pitoresco bosquinho de laranjeira, que ele
próprio tratava com muito esmero, podava, enxertava, etc.
Um dia
meu compadre chegou à casa se queixando de dor de cabeça e moleza no corpo, e
recusando jantar. Entrou ao quarto, se pôs à fresca e se deitou.
Não
obstante ser compadre Barbosa homem cujas moléstias se contavam, a comadre não
deu muita importância ao sofrimento, pois, segundo o próprio marido dizia,
aquilo se atribuiria a ter apanhado muito sol naquele dia, andando a negócio
nas ruas da cidade.
Efetivamente
assim pareceu, pois às 9h, ao se servir o chá, já João Barbosa dizia não sentir
mais nada e tomou uma boa xícara, comendo, com apetite, biscoito de polvilho.
Assim
se dissipara aquela indisposição, sem maior novidade, e às 10h da noite todos
estavam acomodados.
***
Todavia
o compadre não adormeceu logo. Tendo dormido na tarde lhe faltou o sono e se
distraía conversando com a comadre.
Estavam,
pois, os dois acordados ainda, quando cerca da meia noite um cão de fila que
possuíam e de grande estimação do compadre, Urutau, começou a uivar
danadamente, e de modo tão lúgubre, exalando gemidos tão lancinantes, tão
angustiados, tão dolorosamente tremidos, que causavam pavor, e ao mesmo tempo
doíam na alma da gente. Parecia que o cão, uivando, fazia um esforço superior
pra falar, contar alguma coisa de terrível ou de assombroso que estava
presenciando.
— Ora,
você já viu pra quê havia de dar Urutau? — Disse o compadre.
— E
que uivo tão medonho! Até mete medo à gente! — Observou comadre Mariana.
— É
verdade. — Tornou João Barbosa. — Irei à janela, pra gritar consigo. Talvez se
cale.
E
dizendo isto João Barbosa desceu da cama e, se embrulhando num cobertor, abriu
a janela do quarto, que dava ao bosquinho de laranjeira, de cujas flores
subiram logo um perfume ativo, e olhou a fora.
O
Urutau lá estava ao canto do muro, deitado, e a uivar tristemente.
No fim
de alguns minutos João Barbosa exclamou:
—
Mariana, venhas!
A comadre
se levantou e ao chegar à janela o marido disse:
—
Olhes ali, Mariana, o corador que fica ao lado das laranjeiras.
—
Estou olhando.
— E
nada vês?
—
Nada.
— Não
vês ali um vulto, semelhante ao duma mulher, todo envolto em crepe negro?
— Nada
vejo, João.
— Ó!
senhora! Lá está e bem iluminado pelo luar. Veja agora, parece um anjo, pois
tem asas tão compridas que chegam a se arrastar na grama do corador.
— Pois
é como te digo. Nada vejo. Apenas percebo Urutau uivando perto do muro. Mais
nada!
— Pois
vejo bem distintamente. — Disse, um tanto impressionado pelo fato da comadre
nada ver. — Tão claro como te estar vendo. É um anjo. Tem longas asas e está
envolto em gaze negra, muito fina, que a aragem faz mover em todos os sentidos.
Até percebo a feição: Duma moça muito pálida. Parece de cera.
E
dizendo isso, João Barbalho, nervoso, chamou um escravo que dormia num aposento
térreo, e ordenou percorrer o quintal a fim de verificar se entrara pessoa
estranha.
O
escravo percorreu o quintal em todos os sentidos e nada encontrou. Afinal o
compadre, muito incomodado com o que vira, fechou a janela do quarto, e tornou
a se deitar, porém foi só quando os galos começaram a amiudar que conseguiu
adormecer.
—
Seria, talvez, algum patife que viesse atrás de qualquer das mulatas e tomou
aquele disfarce. — Disse a comadre.
— Não
é possível. — Observou João Barbosa — Se fosse um homem estranho que penetrasse
no quintal, Urutau não uivaria. Ladrava e investiria. Sabes que é uma fera e
ainda hoje está na enfermaria da detenção, por causa das suas dentadas, aquele
tratante que nos queria limpar o galinheiro. Queres que te diga uma coisa? Me
lembrei agora do que dizia minha mãe quando ouvia um cão uivar. Sabes? O que vi
foi o anjo da morte. Sobre quem virá estender as negras asas nesta casa?
— Não
penses nisso, João. — Disse a comadre, espantada. — Que horror!
— É o
anjo da morte, Mariana. Estou certo disso. Quando os cães uivam é porque o
pressentem, bem dizia minha defunta mãe. E sei que o coração me diz que serei a
vítima.
— Ó! Meu-deus!
Que pensamento horrível.
— Sim,
deve ser isso. Por que não pudeste ver, quando eu distinguia até a feição?
No
outro dia João Barbosa amanheceu com febre e não se levantou da cama.
Todos
em casa ficaram muito assustados com a narração que fazia dos acontecimentos da
noite, e mais ainda com o triste pressentimento que o assaltara.
João
Barbosa afirmava com a maior segurança que vira um anjo, exatamente quando
Urutau uivava, e ninguém podia duvidar de sua palavra, pois meu compadre era
homem muito verdadeiro, e além disso dizia aquilo com a maior seriedade.
Comadre
Mariana, principalmente, ficou muito aflita, e logo mandou chamar um médico,
que receitou ao compadre uma beberagem e um pó branco que devia ser tomado no
café amargo.
Todavia
a febre não aumentara. Assim, sem maior novidade, se passara aquele dia.
Chegada a noite, porém, e pouco mais ou menos na meia-noite, Urutau começou a
uivar de novo. Era um inferno aquilo!
João
Barbosa, assim que o ouviu, ficou logo em grande agitação, e, sem que a comadre
o pudesse impedir, saltou repentinamente do leito, e foi à janela.
—
Andes, Mariana. Venhas ver. Lá está o anjo outra vez.
A
comadre se ergueu imediatamente e se acercou ao marido. João Barbosa disse, um
tanto nervoso:
— O
vês passear no corador? Urutau o acompanha de longe e uiva.
— Nada
vejo, João. Te retires da janela, pois o sereno pode te fazer muito mal. Estás
com febre.
Mas
João Barbosa não a atendeu.
Debruçado
sobre a janela e com os olhos fitos no ponto indicado, seguia sua assombrosa visão.
— É o
anjo da morte!, Mariana. É o anjo, o sinistro anjo que, por ordem do eterno,
nos corta o fio da existência.
—
Deixes disso, João. Venhas te deitar.
— Bem
dizia minha mãe que o uivo do cão assinala a passagem do anjo da morte. E é pra
mim que ele aqui aparece, pois sou o único a o ver.
E em
seguida, sem ter verdadeira consciência do que estava fazendo, João Barbosa se
afastou e tornou a se deitar.
No
outro dia a febre de meu compadre aumentou consideravelmente. Chamado outra vez
o médico declarou que o enfermo estava em estado grave, o que afligiu
imensamente comadre Mariana, a quem parecia que o pressentimento do marido se
justificava.
O
médico receitou e prometeu voltar na tarde. Andavam todos numa roda viva, e se
angustiaram pela enfermidade do dono da casa.
Durante
quase todo o dia João Barbosa esteve prostrado em contínua sonolência, e logo
que foi caindo a tarde começou a delirar.
O
médico, ao chegar à boca-da-noite, ficou assustado com os sintomas que o doente
apresentava. Pela fisionomia se conhecia que começava a o invadir o desânimo de
salvar o enfermo, pois a moléstia marchava aceleradamente, e zombava de seus
cuidados profissionais.
O
doutor resolveu passar a noite junto à cabeceira do doente. Empregaria o último
esforço, pois além de ser um moço muito cioso de sua reputação de clínico, era
amigo íntimo de João Barbosa, a quem devia alguns favores.
Cerca
das 11 horas, meu compadre tornou a cair em prostração. Todos se retiraram nos
bicos dos pés a uma sala contígua e o deixaram sossegado.
Quando,
porém, no relógio da sala de jantar soaram as doze badaladas da meia-noite,
Urutau começou a uivar de novo, e de modo ainda mais lancinante, mais pungente,
mais estertorado que nas outras vezes.
João
Barbosa saiu logo do estado comatoso e começou a gritar, gemer, se torcer na
cama e a proferir palavras incoerentes.
— Dona
Mariana, — Disse o médico, entrando ao quarto, acompanhado das pessoas da
família — Mandes já fazer calar aquele maldito. O uivo superexcita o doente.
Saiu
um dos escravos a cumprir a ordem do doutor, e Urutau dali a pouco se calou.
No
entanto João Barbosa continuava agitadíssimo. No fim de alguns minutos
exclamou, todo convulso e apontando a janela do quarto:
— Eis!
Eis que entra na janela do quarto! Meu Deus! É o anjo da morte que vem me levar
à sepultura! Me acudam!
Todos
o cercaram. O médico disse à comadre:
— Não
te assustes, dona Mariana. É uma crise de delírio provocada pelos uivos do cão.
Passará daqui a pouco.
Mas,
qual! João Barbosa ofegava. Todo o corpo tremia, o rosto descorava a olhos
vistos e se percebia que fazia esforço sobre-humano pra escapar dum fantasma
horrendo.
— O
anjo me mata! O tirai de cima de meu peito! Me sufoca com as asas! Mariana!
Doutor! Morro! O anjo me mata! Morro!
E não
pôde dizer mais. A cabeça caiu a um lado, os braços penderam, inertes. Disse o
médico:
—
Passou a crise.
Ao
tomar o pulso, exclamou, entre horrorizado e desapontado:
— Mas
está morto!
E
assim era. João Barbosa estava morto e bem morto. O anjo da morte o sufocara
com as negras asas. Dona Maria terminou:
Muita
gente presenciou esse fato. Doutor Pachequinho, o médico que tratou de meu
compadre, ainda está vivo e pode confirmar o que estou dizendo.
Depois
dessa noite Urutau nunca mais uivou.
Agora,
pra rematar esta verídica história, precisamos dizer ao leitor que Turco, o cão
que dona Maria Ursulina exilara à casa da filha, em Rio Comprido, conseguira se
evadir, durante a noite, e viera de novo atormentar a boa velhinha, com os
uivos agourentos. E dona Maria, muito apreensiva, o deu de presente a um
fazendeiro.
Turco
se fora ao interior, porém dona Maria Ursulina, emocionada mais do que o
permitia a avançada idade e antigos padecimentos, caíra de cama, e dali a uma
semana baixou o corpo à sepultura, concorrendo, assim, esse fato pra se afirmar
a crença de que o cão uiva quando vê passar o funéreo e inexorável anjo da
morte.
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