Os
dois cegos, moços ainda, porém escaveirados pela miséria, trêmulos de fraqueza
pelos longos dias de fome, andrajosos, sujos, repugnantes mesmo, e que de mãos
dadas percorriam as poeirentas estradas e os arraiais, tinham sua história.
Contarei
essa história, assim como ouvida da boca do povo. Pobre história duns
pobres-diabos, tão rústica e singela quanto eles.
Quando
Adão se casou o primeiro cuidado foi abrir um roçado pra plantar um punhado de
milho, e levantar um ranchinho onde se metesse com siá Teresa, porque isto de
morar em casa de sogro não tinha jeito.
Quem
casa quer casa, diz o ditado, e diz muito bem. Nada há como a gente debaixo de
seu sapê, comendo sossegado o que Deus lhe dá. Casa alheia brasa no seio.
Assim,
uma semana depois do enlace matrimonial, Adão escolheu um bom pedaço de terra
roxa, própria a toda a cultura, e numa segunda-feira se dirigiu até lá armado
de foice e machado. O acompanhava a mulher, carregada com o caldeirão pra lá
mesmo cozinhar a feijoada.
O
trabalho de foice era pequeno: O mato estava limpo, as árvores, tendo crescido
muito e formado grandes copas, mataram, pela falta de luz e de calor, os
arbustos e as plantas rasteiras.
Por
isso, depois de cortadas algumas touceiras de cipó, que se enredavam nesta ou
naquela fronde, Adão cuspiu nas mãos, pra não as aquecer muito, e vibrou,
decidido, o machado no madeirame grosso. Dali a pouco era cavaco a todo o lado,
e depois duma centena de golpes a árvore, cavada na cepa, estremeceu, tornou a
estremecer, e em seguida tombou, gemendo surdamente e espalhando no chão a
basta galhada.
Todas
as vezes que um pau caía, Adão, satisfeito, acompanhava o despenhar da árvore
com um grito prolongado — Ê! Ê!, e siá Teresa respondia com uma trova, cantada
com voz fina e bem modelada:
Dei um grito de alevante
E dei um de alevantá
Dei outro mais pequenino
Que torceu o maricá
Corre a onça, corre o porco
Caringa o tamanduá
Nas abas daquela serra
Vai respondê meu cantá.
E os
paus caíam um a um. A lomba da serra se desnudava pouco a pouco da verde-negra
cabeleira. Adão limpava o suor que escorria em baga do rosto, siá Teresa
atiçava o fogo sob a panela e, sorrindo ao marido, cantava em tom brejeiro:
Segunda-feira passada
Fui abrir meu roçado
Guariba levou a foice
Macaco trouxe o machado
Xauim por mais pequenino
Foi capinando de enxada.
Quando
o sol começou a entrar já havia no mato uma abertura considerável.
Adão,
muito contente da vida, lavou o rosto e as mãos num regato próximo, e a dizer
umas tantas ternuras a siá Teresa, se abeirou do fogo, com excelente apetite
ingeriu uma cuia atacada de feijão bem gordo, carne-seca e angu.
Fora
um dia cheio. No sábado estaria pronto o roçado. Mandasse depois Deus nosso
senhor uns quinze dias de sol, pra esturrar o mato, e estaria terminada a
canseira.
Adão
pôs no ombro o machado e a foice. Siá Teresa suspendeu o caldeirão, e lá se
foram até casa, cansados porém alegres, muito animados pra vida.
***
No dia
seguinte, quando o sol ainda vinha em casa de Nosso Senhor Jesus Cristo, já siá
Teresa xororocava no coador o gostoso café temperado com rapadura, e Adão
amolava a foice e o machado numa pedra do terreiro. Naquele dia daria uma
entrada bonita no mato.
Feito
o café, cada um tomou seu caneco acompanhado duma batata-doce, depois rebatido
por um coitezinho de aguardente e foram ao roçado. Adão na frente, com o
machado e a foice no ombro, siá Teresa atrás, com a saia um tanto arregaçada,
pra não a ensopar no orvalho, depositado nas vassouras da estrada, e
suspendendo o caldeirão da feijoada.
Iam
tão satisfeitos os dois!. Se queriam muito, e depois as coisas pareciam ir tão
de feição! Como, pois, não estariam contentes?
Quando
chegaram ao lugar do roçado, o sol vinha rompendo lá em baixo na planície
extensa, a espancar a neblina que se acumulara durante a noite no vale.
Adão
pousou a foice e o machado no chão, siá Teresa descansou o caldeirão, e ambos
olharam o roçado, a fim de contemplar o trabalho da véspera.
Mas o
que era aquilo, Deus do Céu? O que viam os dois?
As
árvores, cortadas na véspera pelo machado do caipira, estavam outra vez em pé,
e nem sinal apresentavam de terem sido tocadas pelo ferro! Lá estavam todas,
eretas como outrora, firmes na base de catana{36} e sólidas raízes, ostentando
a umbela gigantesca da copa verde-negra.
— Ué!
— Disse Adão, abrindo a boca e esbugalhando os olhos — Estou dormindo ou
acordado?! Me falte a luz na hora da morte se ontem não derrubei esta
panzaria!
— Pois
antonces não derrubou?! — Disse siá
Teresa, ainda mais admirada que o marido — Derrubou, tanto como haver Deus no
Céu e Diabo no Inferno!
— Mas
como é que elas estão outra vez de pé? — Adão disse, afinal, depois dum momento
de muda observação.
— Não
sei, Adão. Aqui anda coisa!
E
ficaram os dois se olhando mutuamente, aturdidos, apalermados, confundidos por
aquele fato tão singular, tão desviado da marcha normal da natureza.
Assim
se conservaram durante um quarto de hora, sem que atinassem com a decifração do
mistério, nem saber o que deviam fazer. Até que, enfim, se arrancando o Adão da
atonia em que jazia, exclamou:
— Tem
nada! Se a derruba de novo.
E,
tomando o machado, entrou a escavacar de novo os mesmos paus que na véspera
deram tanto a fazer.
Nesse
dia o Adão não gritou mais: Ê! Ê! quando as árvores tombavam. Siá Teresa não
fez ouvir em canções sertanejas sua voz fina e bem modulada.
No
entanto, na tarde havia no mato a mesma abertura da véspera, e o casal
regressou a casa, porém um tanto triste, e pouco expansivo. Que coisa mais
singular aquela?! Até parecia que ali andava metido o Diabo!
Como
todos os matutos, porém, Adão e siá Teresa eram muito resignados. Assim, apesar
do que lhes acontecera, adormeceram logo que pousaram a cabeça no travesseiro.
Se era
Deus quem determinava aquela coisa, o que se faria?
***
Na
manhã, bem cedo, retornaram ao roçado. Iam calados e pensativos, cheios de
receio, mas sem comunicar um ao outro a triste apreensão. É coisa sabida que o
que não se diz o Diabo não se lembra. Por isso iam silenciosos. Coitados! Os
esperaria um novo desgosto?
Adão
ia na frente com a ferramenta ao ombro, siá Teresa atrás, com uma das mãos
gordinhas colhia a saia de chita, pra não se encharcar na orvalhada, mostrando
assim as canelas bem torneadas, e com a outra carregando o caldeirão da
feijoada.
Foram
andando, e logo que dobraram o caminho ficaram diante do sítio do roçado. Mas
ó!, tentação! As árvores, já cortadas duas vezes, lá estavam outra vez em pé,
altaneiras. Em sua folhagem verde-escura rumorejava a brisa fresca da manhã.
Que
diabo seria aquilo? Adão não disse palavra. Pegou do machado e começou a o
vibrar nas frondes, encasmurrado, de sobrancelhas fechadas. Parecia tão
entediado. Se diria que estava fazendo aquilo como quem cumpre um fadário
penoso.
Siá
Teresa estava igualmente abatida. Atiçava o fogo sob o caldeirão, ensaboava no
regato umas roupinhas que trouxera, mas não cantava, nem coragem tinha pra
levantar os olhos ao marido.
Na
tarde estava de novo a lombada do morro despojada de sua coma vegetal. Adão e
siá Teresa voltaram a casa muito tristes. Adão chupava um cigarro de palha e
tinha a fronte ensombrada pelo desgosto, e siá Teresa vinha de cabeça baixa,
lábios franzidos pela mágoa.
***
No
entanto o decidido casal de caipiras ainda não esmorecera. Na quarta-feira
muito cedo lá estava ele outra vez em caminho do roçado: Adão, adiante, de
calça arregaçada até os joelhos, japona no ombro e sobre ela a ferramenta de
derruba. Siá Teresa atrás, molhando as pernas roliças na ervagem orvalhada do
caminho, e sempre carregando o mesmo caldeirão da feijoada.
Quando
se aproximavam do sítio do roçado, começaram a caminhar mais lentamente, como
se tivessem medo de encontrar as árvores outra vez em pé, querendo prolongar
mais tempo a incerteza.
Mas
tudo tem fim, e o caminho do roçado estava nessa condição, por mais devagar que
caminhassem. Afinal chegaram ao ponto da derruba, e, o que é mais triste, o que
tanto receavam, se repetira. As árvores, três vezes lançadas a terra pelo
vigoroso machado de Adão, ficaram outra vez em pé, firmes, inabaláveis, como
insultando a paciência do resignado roceiro. Siá Teresa exclamou, consternada:
—
Outra vez!?
Adão
não pôde conter a raiva que subiu à cabeça naquele momento e, desesperado,
quase louco, deu com o machado junto dele. Queria quebrar a ferramenta, e nunca
mais, pegar nela, nem mesmo pra fazer uma acha de lenha.
Apenas
o machado feriu a pedra, esta se partiu em duas metades, e da brecha saltou um
moleque, muito preto e esquisito de feições, capenga duma perna e com uma
carapuça vermelha na cabeça. Exclamou siá Teresa, recuando, assombrada:
—
Virgem mãe de Deus! É o Saci! Fujas!, meu marido.
Adão,
no entanto, tomado do maior espanto, não teve força pra se mover do lugar, e o
fantástico moleque fazendo careta e saltando num pé, num abrir e fechar de
olhos sumiu se atirando de pau a pau, com a agilidade dum macaco.
Agora
se explicava ao espírito de Adão e de siá Teresa o anormal fato da anulação do
trabalho da derruba. Era o Saci o autor de toda aquela malandragem.
Nesse
dia o inditoso Adão não trabalhou. De que lhe servia se matar cortando árvore?
Não estava ali o Saci pràs aprumar durante a noite? Melhor seria se aconselhar
com pessoa entendida.
***
Dito e
feito. Adão pôs no ombro a foice e o machado, siá Teresa tornou a suspender o
caldeirão, e lá se foram a casa, onde deixaram a ferramenta e a panela, em
seguida o desconsolado casal indo ao rancho de tia Genoveva. Era ela a pessoa
com quem resolveram se aconselhar.
Se ela
não desse algum remédio, quem mais poderia dar? Assim pensavam, talvez com
razão.
Tia
Genoveva era uma crioula que habitava sozinha um ranchinho situado na beira dum
velho cafezal.
Ela
mesmo plantava sua rocinha de milho, abóbora, e inhame, e, com seu produto e
algumas galinhas, ia vivendo.
No
entanto tia Genoveva não gozava de boa reputação. A tinham como feiticeira e a
temiam, por ser deitadeira de mau-olhado. Se era certo não sabemos. O que é
verdade, porém, é que foi com ela que Adão e siá Teresa entenderam dever se
aconselhar.
Tia
Genoveva ouviu atentamente a história fantástica do nosso Adão, e bem assim as
observações de siá Teresa, e depois de alguns momentos de contrição falou:
— Nhô
Adão, tudo isso lhe aconteceu porque vosmecê agravou o saci, que morava naquele
mato e vosmecê, sem saber, foi
derrubar. O que quer? O bicho se ofendeu por terem vosmecês tirado a sombra, então se vingou levantando as árvores.
Quando a gente sabe o levar, o saci não faz mal, e até ajuda uma pessoa em seus
arranjos. Mas não o molestem, porque, então, ele não deixa mais um cristão
sossegado. Por que vosmecê não faz
roçado noutro lugar? Há tanta terra devoluta.
— Bem
sei que há muita terra devoluta, tia Genoveva, — observou Adão, — mas aquela me
convinha por muitas vantajas.
— E
pro modo a aguada vosmecê sabe que a
água ali é um tanto escassa. No entanto ali é o que há de bom. Vosmecê conhece bem o lugar.
—
Olhe, tia Genoveva, não sou home de
muitos prometimentos, mas se vosmecê for capaz de me arrancar aquele
excomungado dali, eu bem lhe prometo uma leitoa gorda para vosmecê comer no Natal.
— Nhô
Adão, eu não faço essas coisas por interesse. Guardarei a leitoa que vosmecê quiser me dar, mas só como
lembrança. Como, porém, vosmecê e tua
muié sempre foram bons pra esta tua preta-véia, eu vou dizer o que vosmecês devem fazer.
— E
ficamos muito agradecidos. — Disse siá Teresa, comovida.
—
Olhem. Vosmecês amanhã estejam no
roçado antes do sol nascer, e na árvore mais alta e mais grossa que lá houver
procurem bem que hão de encontrar pendurada uma cabacinha. Essa cabacinha tem
dentro a milonga do Saci. Nhô Adão que trepe na árvore e tire a milonga, e
fujam logo a bom fugir, porque o saci vos perseguirá. Mas não façam caso. Se
ele estiver quase pra alcançar, teçam umas rodilhas de cipó-una, e vão as
jogando a trás, pois o saci assim que vê rodilha se arrelia logo, começa a
destrançar. Enquanto isso dura, vosmecês
estão andando. Levem, então, a milonga a bem longe, a enterrem, e vosmecê, nhá Teresa, te agache por cima
da cova e mije três vezes nela, dizendo de cada vez estas palavras: — Eu te
enterro e eu te mijo, milonga endemoniada, por Barecos e por Barrocos, ninguém
te encontrará. — Estas palavras e a catinga do mijo farão desnortear o saci, e
ele nunca mais dará com a cabacinha da milonga. — Então vosmecês poderão fazer o roçado, que nada mais vos acontecerá.
O
saci, sempre procurando sua milonga, é obrigado a mudar de terra.
O
casal de caipiras, muito animado com essas instruções e com as esperanças que
tia Genoveva lhe incutia, se despediu da preta-velha, a enchendo de
agradecimento, e se retirou.
— Á!
ladrão! Então nada mais havia além de desmanchar o trabalho dos outros?
***
No dia
seguinte, antes do sol nascer, já Adão e siá Teresa estavam no sítio escolhido
pro roçado.
Iam em
demanda à milonga do Saci e tal qual lhes dissera tia Genoveva, estava ela
pendurada da galhada dum frondoso ipê-tabaco que lá havia, a mais alta e grossa
árvore daquele pedaço de mato.
— Siá
Teresa, vá você preparando as rodilhas de cipó-una, enquanto eu trepo no pau e
tiro a cabacinha.
Cipó-una
não faltava ali, e siá Teresa ficou logo trançando umas rodilhas bem enredadas
pra dar bastante quê fazer ao bicho. Durante esse tempo, Adão trepou no
ipê-tabaco acima e arrancou a cabacinha.
—
Fujamos agora! — Disse ele ao saltar no chão — Estamos aqui com o Coisa-ruim
atrás de nós.
E os
dois correram. Adão na frente, com a milonga do saci, e siá Teresa atrás,
sobraçando as rodilhas de cipó-una.
Mal
percorreram uns 50 passos ouviram um guincho muito Adão e siá Teresa davam com
as mãos e com as pernas. Se espojavam no chão e gritavam de modo que causava
horror! E os bichos sempre agarrados aos infelizes, a zumbirem e a lhes
enterrarem em todo o corpo seu envenenado ferrão! Esse flagelo durou
seguramente cinco minutos, até que os maribondos todos duma vez largaram os
dois e suspenderam o voo.
O
casal ficara estendido em terra e em lastimoso estado. De toda parte do corpo
porejava sangue: Mãos, pés, rosto, ventre, peito. Tudo ficou
extraordinariamente intumescido. A pele se lhes rendara como um crivo, tão
próximos eram os sinais das terríveis ferroadas. Ficaram em lastimoso estado
mas o mais grave foi que as mangangás lhe vazaram os olhos.
Adão e
siá Teresa estavam cegos, coitados! Assim se vingara o perverso saci do furto
de sua milonga.
***
Doravante
passaram os tristinhos a viver da caridade pública. E a desolada existência
lhes decorria nos arraiais e estradas, escaveirados pela miséria, rotos,
esfrangalhados, sujos, mendigando o pão humilhante da esmola.
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