sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

O Poco do Visconde (Livro Completo), de Monteiro Lobato

 

O POÇO DO VISCONDE

Ao receber o jornal, Pedrinho sentou-se na varanda com os pés em cima da grade. Narizinho, que estava virando a máquina de costura de Dona Benta, disse:

— Vovó, eu acho uma grande falta de educação essa mania que Pedrinho pegou dos americanos, de sentar-se com os pés na cara da gente. Olhe o jeito dele...

Dona Benta suspendeu os óculos para a testa e olhou.

Certos sábios afirmam, minha filha, que quando uma pessoa se senta com as extremidades niveladas, a circulação do sangue agradece, e a cabeça pensa melhor. E por esse motivo, que os homens de negócios da América costumam nivelar as extremidades, sempre que têm de resolver um assunto importante. A coisa fica mais bem resolvida — dizem eles.

E é verdade?

Os negócios de lá prosperam melhor que os de qualquer outro país; se o tal nivelamento dos pés com a cabeça contribui para isso, não sei. Ê problema para os fisiologistas resolverem.

Que é fisiologista?

Os fisiologistas são os sábios que estudam o funcionamento do nosso corpo. Aquele livro que estou lendo, Man the Unknown, foi escrito por um grande fisiologista, Alex Carrel.

Depois que Pedrinho soube da opinião de Dona Benta, nunca mais deixou de ler sem botar os pés para cima, costume que Emília e o Visconde adotaram imediatamente — Emília por espírito de imitação e o Visconde por ordem de Emília. — "Vossa Excelência fica proibido de ler com as extremidades desniveladas" — ordenou ela. — "É por ler de pé, ou sentado, que está velhinho e ainda nem entrou para a Academia Brasileira." — E o pobre Visconde, apesar dos reumatismos, teve de continuar a leitura da sua geologia dobrado que nem um V.

Geologia? Pois o Visconde andava a estudar geologia?

Verdade, sim. O Visconde descobrira entre os livros de Dona Benta um tratado dessa ciência e pusera-se a estudá-la — a ciência que conta a história da terra, não da terra-mundo, mas da terra-terra, da terra-chão. E de tanto estudar, ficou com um permanente sorriso de superioridade nos lábios — sorriso de dó da ignorância dos outros. "Ele já entende de terra mais que tatu", dizia a boneca.

Mas, como íamos contando, naquele dia Pedrinho começou a ler o jornal à moda americana, com os pés em cima da grade. Em certo momento interrompeu a leitura para dizer em voz alta falando consigo mesmo:

— Bolas! Todos os dias os jornais falam em petróleo e nada do petróleo aparecer. Estou vendo que se nós aqui no sítio não resolvermos o problema o Brasil ficará toda a vida sem petróleo. Com um sábio da marca do Visconde para nos guiar, com as ideias da Emília e com uma força bruta como a do Quindim, é bem provável que possamos abrir no pasto um formidável poço de petróleo. Por que não? Disse e ficou pensando no assunto com os olhos nas andorinhas que desenhavam "riscos de velocidade" no céu azul. Depois chamou o geólogo e disse:

— O amigo Visconde já deve estar afiadíssimo em geologia de tanto que lê esse tratado. Pode portanto dar parecer num problema que me preocupa. Acha que poderemos tirar petróleo aqui no sítio?

O Visconde respondeu depois de cofiar as palhinhas do pescoço:

Ê possível, sim. Com base nos meus estudos estamos em terreno francamente oleífero.

Lá vem! Lá vem o pedante com os tais termos arrevesados! Que quer dizer oleífero?

Oleífero, quer dizer produtor de óleo. Frutífero, produtor de frutas; argentífero, produtor de prata...

Milhífero, produtor de milho — gritou a boneca, aparecendo e metendo o bedelho na conversa. Em vez de tanta ciência, eu preferia que o Senhor Visconde produzisse grãozinhos de milho de pipoca. Há um mês que tia Nastácia não rebenta nenhuma, porque o milho acabou. Se este sabugo de cartola produzisse pipocas em vez de ciência, seria muito melhor.

Não encrenque, Emília — ralhou Pedrinho. — Estamos a tratar dum assunto muito sério: o petróleo. Que acha de abrirmos um poço de petróleo aqui no sítio?

Emília arregalou os olhos. A lembrança pareceu-lhe de primeiríssima.

Ótimo, Pedrinho! Até parece ideia minha. E tenho um plano maravilhoso para conseguir uma perfuração bem redonda e profunda.

Qual é?

O tatu! Amarra-se um tatu pela cauda e pendura-se ele de cabeça para baixo, no ponto onde queremos abrir o poço. Na fúria de fugir, o tatu vai furando, furando até chegar no petróleo...

E aí?

Aí espirra — e a gente fica sabendo que deu no petróleo.

Pedrinho tocou Emília da varanda e continuou na discussão com o Visconde.

Primeiro — disse o grande sábio — temos de abrir um curso de geologia. Sem que todos saibam alguma coisa da história da terra, não podemos pensar em poço. Como já li esta Geologia inteira, proponho-me a ser o professor.

Ótimo! — exclamou Pedrinho levantando-se. Vou avisar o pessoal que as aulas começam hoje mesmo. Otimíssimo...

Foi assim que começou o petróleo no Brasil.


CAPÍTULO 1: O PRIMEIRO SERÃO

Pedrinho arrumou a sala como um anfiteatro de escola superior. Um tamborete em cima da mesa ficou sendo a cátedra do mestre. Na primeira fila de cadeiras sentaram-se Narizinho, Emília e ele. Na segunda, Dona Benta e tia Nastácia. Pedrinho fez questão de que a pobre negra também se formasse em geologia.

Naquela noite, logo que todos se reuniram, Pedrinho plantou o geólogo na cátedra.

— Nivele as extremidades e comece, Senhor Visconde.

O sábio assim fez; depois de apoiar os pés na geologia, erguendo-os ao nível da cartolinha, cuspiu o pigarro e começou:

— A Geologia é a história da Terra. Tudo que aconteceu desde o nascimento deste nosso Planeta se acha escrito nas rochas que o formam. A terra é uma rocha, uma bola de pedra.

Como nasceu? Temos de adivinhar, porque nenhum de nós assistiu a isso. Uns imaginam que foi dum jeito. Outros imaginam que foi de outro jeito. Vou contar como nós, sábios, imaginamos o nascimento da terra.

Em certo instante do Tempo Infinito, destacou-se do Sol um pedaço da massa de fogo que ele é e ficou regirando no espaço. A Terra, portanto, começou sendo uma bolota de fogo no espaço...

— Espécie de bomba de pistolão! — gritou Emília.

— Sim. Tal qual bomba de pistolão. Mas as bombas de pistolão descrevem uma curva e caem. A bolinha de fogo de nome Terra, em vez de cair, ficou toda a vida a regirar em torno do canudo do pistolão, que era o Sol. E foi se resfriando. Quando eu digo bola de fogo, é um modo de dizer. Era uma bola de minerais derretidos, ou pedra derretida. Dessa massa candente escapou mais tarde o espirro que formou a Lua.

— E por que motivo a Terra foi se esfriando? — perguntou Narizinho.

— Porque a tendência do calor é espalhar-se. Tudo que é quente esfria porque o calor se espalha — sai do corpo quente espalha-se pelo espaço. O calor irradia-se, como dizem os sábios. De modo que o calor da bola de minerais derretidos que chamamos Terra foi se irradiando — e até hoje está se irradiando.

— Como isso? Pois então já não está totalmente fria a Terra?

— Não. Já que esfria de fora para dentro, só está fria na crosta, ou na casca onde nós, e todos os animais e plantas, vivemos. Mas à medida que vamos afundando dentro da terra, o calor cresce.

— Como sabe disso?

— Em qualquer perfuração profunda observa-se muito bem esse fato. O termômetro, que é o instrumento de medir a temperatura, sobe de um grau a cada 25 metros de descida. Nessa marcha a dois ou três quilômetros de fundo temos a temperatura da água em ebulição; e a trinta ou quarenta quilômetros temos a temperatura em que os metais se derretem.

— Que horror! Quer dizer então que lá bem no centro da terra o calor é de nem se fazei ideia?...

— Exatamente. Não podemos fazer ideia dele. Além desse aumento do calor com a fundura, ainda existem muitas outras provas do calor central da terra.

— Os vulcões! — gritou Emília.

— Sim os vulcões. São aberturas por onde o fogo interno jorra. Hoje há muito poucos vulcões, uns 250; mas no começo a superfície inteira da crosta era coalhadinha de vulcões.

— Como sabe?

— Porque pela superfície inteira da terra vemos sinais de vulcões extintos — as rochas derretidas que saíram deles, as rochas ígneas, ou eruptivas, como se diz em geologia. Temos, ainda, os gêiseres, que são repuxos de água quente. Se a água sai quente, de alguma parte recebe o calor.

— Mas como nós não sentimos esse calor aqui em cima?

— Porque já há uma espessa camada de rochas quase fria, entre nós e as zonas de calor ainda forte. Essa camada constitui a crosta da Terra. Resfriou-se; as rochas derretidas que a compunham solidificaram-se — e como são más condutoras do calor, evitam que morramos assados aqui em cima.

Nos vulcões ativos podemos ter uma prova de como a coisa é. A lava que escorre desses vulcões, sai candente, derretida, em forma de pasta mole; o calor é tanto que nem olhar para aquilo de perto a gente pode. Cega os olhos. Mas logo que se afasta da cratera, a lava começa a resfriar-se, muda de cor; perde o fulgor cegante e fica vermelha, depois vermelho-escuro e por fim preta. A massa endurece por cima e esfria a ponto de podermos passear sobre ela; mas dentro o calor continua bravo.

— Muito bem, Visconde — disse Narizinho. Chega de calor. Já estou suando. Fale das rochas.

O Visconde falou.

— Chamamos rocha a essa massa de minerais derretidos que se esfriaram e solidificaram. São compostas duma mistura de minerais simples, verdadeira salada. Existem nelas sílica, quartzo, mica, feldspato, ferro e todos os minerais que conhecemos.

A terra, portanto, aos resfriar-se, ficou uma bola com casca de pedra dura, ou de rochas ígneas, também chamadas eruptivas ou plutônicas.

— Que quer dizer ígnea? — indagou Pedrinho. — Ígneo significa neste caso produzido pelo fogo. Essa bola de pedra dura regirava no espaço envolvida por uma camada de ar e uma imensa nuvem de vapores. Esses vapores, compostos de hidrogênio e oxigênio, formavam uma combinação de nome água, interessante por mil razões, entre as quais a de ser a nossa mãe — a mãe de todos os seres vivos, animais e plantas.

— Que engraçado! Nunca pensei nisso.

— Pois é. A água é a mãe da vida — e o pai é o calor. Sem água e calor não há vida possível. Mas no começo, não havia água. Só havia vapor de água, ou água em estado gasoso. O oxigênio e o hidrogênio quando se combinam ficam rebeldes ao calor excessivo. Por essa razão, em vez de permanecerem incorporados na massa candente da terra, fugiram, ficando suspensos no ar sob forma de grande nuvem a envolver a bola.

Assim, porém, que a crosta da terra entrou a resfriar-se e a consolidar-se, a água passou do estado gasoso para o estado líquido — e desceu sob forma de chuva para irrigar a crosta. A água acumulada nas partes mais baixas deu origem aos oceanos, mares e lagos. A que caiu nas partes mais altas deu origem aos rios. Ainda hoje a água sofre a ação do calor do sol e evapora-se, para cair de novo sob forma de chuva; mas daqui a milhões de anos o calor do sol não dará para evaporar a água e ela então ficará unicamente em estado líquido.

— Ou sólido — ajuntou Pedrinho.

— Perfeitamente. Quando por cima de toda a crosta da terra o calor do sol for tão pouco como já é hoje nas regiões polares, então toda a água do mundo se congelará. Os rios secarão, porque não havendo chuvas que os alimentem não pode haver rios — e os lagos e os mares se transformarão em imensas planícies de gelo.

— Que ótimo! — exclamou Emília. Poderemos ir daqui à Europa numa volada de patins.

— Ótimo, nada! — contestou Pedrinho. Nesse tempo estará extinta a vida na terra, como já se extinguiu nos polos. Até me arrepio de pensar nisso...

— Muito bem — continuou o Visconde. Estávamos já com a crosta da terra endurecida e a água formando os mares, os lagos e rios. Neste ponto começou a dar-se um fenômeno muito interessante. A água, de tanto lidar com o Calor e o Ar, fez com eles um trato. "Está muito feia a terra, assim reduzida a uma crosta de rocha dura", disse a Água. "Precisamos combinar umas modificações que permitam o aparecimento da vida. Quero ver a terra cheia de verdura e de bichos que andem, corram e se ataquem uns aos outros."

— E urrem, e zurrem, e piem — acrescentou Emília.

— "E para isso, que fazer?" — perguntou o Calor.

— "Aliar-nos os três e atacarmos as rochas ígneas, transformando-as em rochas sedimentárias" — respondeu a Água.

— "De que modo?" — perguntou ainda o Calor, que era bem burrinho.

— "Isso veremos na hora do trabalho. Tenho que experimentar. No momento basta que vocês jurem aliança comigo."

O Calor e o Ar aceitaram a proposta e desde então o trabalho da Água, do Calor e do Ar na transformação da crosta da terra não parou um só minuto. Para atacar as rochas ígneas os três inventaram uma picareta invisível, chamada Erosão. A Erosão ataca todas as pedras dum modo contínuo, e as vai rachando, lascando, esfarelando, até reduzi-las a pó finíssimo.

— Que negócio é esse? — perguntou Pedrinho.

— Muito simples. Para atacar uma grande massa de rocha, o calor primeiro a aquece. Vem depois a água, sob forma de chuva, e a resfria bruscamente. Como o calor dilata os corpos e o frio os contrai, começou na crosta da terra um terrível rachamento de pedras. Pedra aquecida e resfriada de brusco, racha, parte-se. As grandes massas de rochas foram sendo divididas em pedaços cada vez menores. E quando esses pedaços, por ficarem muitos pequenos, puderam resistir ao processo do rachamento, a Erosão veio com processos novos. A água, nas grandes chuvas, criava as enxurradas, as torrentes. Os blocos de pedra eram arrastados por essas torrentes, chocando-se uns nos outros, desgastando-se. Quem examina um fundo de ribeirão vê milhares de pedras de todas as cores, que de tão esfregadas entre si ficaram roliças, com todas as arestas destruídas. Também o Ar entra em cena, e sob forma de Vento ajuda a Erosão. O quebra-quebra, o esfrega-esfrega, o bate-bate e o rola-rola acabam transformando tudo em pedregulho, e depois transformando o pedregulho em areia e pó finíssimo de pedra — ou argila. E como as enxurradas correm para os ribeirões, e os ribeirões correm para os rios, e os rios correm para o mar, todas as rochas destruídas pela Erosão acabam despejadas no mar.

— Mas, se é assim, os mares já deviam estar completamente entupidos — observou Narizinho.

— E que disse que os primeiros mares não foram todos entupidos? Os mares de hoje não estão onde estavam os mares de milhões de anos atrás. Temos mil provas disso. Os continentes modernos já foram mares. Por toda parte, até nas mais altas montanhas, vemos sinais de mar, o que quer dizer que também as montanhas já foram fundos de mar. As neves eternas do Himalaia, que é a mais alta montanha do mundo, repousam sobre camadas de calcário — e o calcário, como vocês devem saber, é uma rocha sedimentária formada no fundo do mar. Rocha sedimentária quer dizer rocha que se sedimentou.

— E que é sedimentar?

— Sedimentar é ser depositado no fundo da água. Se num copo você mistura areia com água e sacode, logo a areia se deposita no fundo, isto é, se sedimenta. Pois foi o que aconteceu na crosta da terra. O material das rochas ígneas, desagregado pela Erosão, era arrastado para os mares e depositava-se no fundo deles — e isso se deu em tamanhas proporções que na superfície da terra há hoje muito mais rochas sedimentárias do que ígneas. Estas foram na maior parte destruídas — ou transformadas. Só restam as que estão no fundo, livres do contato da água e do ar.

— Mas se é assim — disse Pedrinho — a crosta da terra devia estar toda reduzida a areia e pó — e não está.

— Não está porque a Erosão tem três inimigos que invertem a sua obra de pulverizamento.

— Quais são eles?

— A Pressão, a Cimentação e o Metamorfismo. Logo que se forma um sedimento no fundo das águas, estes três inimigos entram em cena para ligar de novo as partículas de rocha que a Erosão desagregou. Eles ligam essas partículas, cimentam-nas, soldam-nas. Surgem então as massas de rochas sedimentárias: os conglomerados compostos de pedregulhos ou fragmentos de rocha cimentados entre si: os arenitos, que não passam de grãos de areia também cimentados entre si; os xistos, que são pó de argila consolidado; e as chamadas rochas orgânicas, formadas de resíduos de conchas e ossos de peixe e também de vegetais.

— Que luta é a vida! — exclamou Narizinho. Um faz e outro desfaz. Nada tem sossego...

O Visconde enxugou o suorzinho da testa e continuou:

— Essa briga entre a Erosão e os seus três inimigos faz que realmente as rochas não tenham sossego. A erosão as esfarela; os outros as recompõe — e será assim eternamente.

— E as tais rochas orgânicas?

— São rochas sedimentárias constituídas pelos restos mortais dos animálculos e das plantas. Quando uma floresta é soterrada, todas as árvores nela existentes se transformam numa rocha de nome hulha, ou carvão de pedra. Nos brejos as plantas aquáticas que morrem e afundam formam uma rocha de nome turfa. E nos mares, quando se sedimentam casquinhas de numerosos animálculos e esqueletos de peixe, formam-se conglomerados de rocha calcária. São essas as rochas orgânicas.

— E o tal Metamorfismo? — quis saber a menina.

— Bom. O metamorfismo dá-se quando as rochas sedimentárias são muito comprimidas pela pressão ou atacadas pelo calor. Prestem atenção: sempre que lá no fundo da terra um jato de rocha derretida sobe e intromete-se por entre as camadas de rocha sedimentária, o tremendo calor da rocha derretida derrete a rocha sedimentária com que ficou em contato — salda as partículas, redu-las quase a rocha ígnea outra vez. A pressão excessiva, junto com o calor, também as modifica. B as rochas sedimentárias que sofrem esses calores e essas pressões são conhecidas pelos geólogos como rochas metamórficas.

— Que quer dizer metamórfico?

— Quer dizer que sofreu uma metamorfose. Metamorfose é a passagem dum estado para outro. Emília, por exemplo, metamorfoseou-se em gente, isto é, passou de boneca de pano a gente. As borboletas são produtos duma interessantíssima metamorfose. Começam lagartas, esses bichos cabeludos que andam por aí a se arrastarem, comendo folhas de plantas; um dia as lagartas param de comer, encolhem-se num galhinho e sofrem uma metamorfose; viram casulos. O casulo passa uma porção de tempo dormindo, e um belo dia sai dele a borboleta. Tudo são metamorfoses.

— Outra metamorfose interessante — disse Dona Benta — é a do pensamento lógico que temos durante o dia nessa coisa misteriosa que chamamos sonho. E como o relógio vai bater nove horas, acho que é tempo de irmos para a cama metamorfosear nossos pensamentos em sonhos. Basta por hoje, Visconde. Gostei da sua liçãozinha. Está certa. Deixe o resto para amanhã.

Todos concordaram que a lição do Visconde fora boa, exceto tia Nastácia. A negra dormira o tempo inteiro. E quando Narizinho a censurou por causa disso, respondeu com a maior sinceridade:

— Pra que ouvir, menina? Não entendo nada mesmo...

 

CAPÍTULO 2: SEGUNDO SERÃO

No serão seguinte reuniram-se mais cedo. A curiosidade aumentava. Pedrinho plantou novamente o geólogo em cima da mesa e cada qual se sentou na cadeira da véspera. Tia Nastácia também veio, mas nem esperou o começo. Tratou logo de tirar uma boa soneca.

Depois de cuspir o pigarrinho, o Visconde deu começo à lição.

— Vimos ontem — disse ele — que a terra principiou uma bola de pedra feita duma mistura de minerais. Quer dizer que por aqui só havia minerais — nada de animal ou vegetal. Mas a Água, o Ar e o Calor se ligaram para criar as primeiras vidas, todas vegetais. Fizeram surgir no mar umas coisinhas mínimas, fabricadas de minerais, mas que já não eram minerais eram vegetais. Logo, o vegetal é filho do mineral; é o próprio mineral sob forma diferente. E o que caracteriza esse vegetal é aparecer sob forma organizada, ou com órgãos. Organizado é uma coisa que tem órgãos.

— E órgãos, que é? — quis saber Narizinho.

— Órgão é um aparelho que desempenha uma função, isto é, que faz qualquer coisa. Os minerais não têm órgão; por isso são parados. Os vegetais têm. As vidinhas vegetais que surgiram foram se desenvolvendo, ficando cada vez mais complicadas e aperfeiçoadas, até darem os vegetais que temos hoje — as árvores, os capins, tudo. Se analisarmos a matéria que compõe um vegetal, veremos que é toda mineral. Por isso digo que o vegetal é filho do mineral. É o mineral com órgãos. Em certo momento da vida da terra alguns desses vegetais começaram a modificar-se lentissimamente, porque tudo na natureza é terrivelmente lento. Pressa não é com ela — não passa de invenção dos homens. Começaram a modificar-se num sentido diferente do resto — e foi assim que surgiram os primeiros animaizinhos. Ainda hoje existem seres minúsculos que não são bem vegetais nem bem animais.

— Que são então?

— São vegetais e animais ao mesmo tempo. Isto mostra que naqueles começos de vida na terra, houve um tempo em que o animal estava ainda meio lá meio cá, meio planta meio futuro animal. A natureza que vive experimentando coisas, depois de criar a vida vegetal resolvera experimentar uma novidade: a vida animal. O processo da natureza é o da experiência e erro. Experimenta, erra; experimenta, erra; súbito, experimenta e acerta — e então fixa ou conserva aquele acerto, e toca para diante com outras experiências.

— E acertou com o animal?

— Tanto acertou que aqui estamos nós, animais aperfeiçoadíssimos.

Emília cochichou ao ouvido de Narizinho: "Olha a pretensão dele! Nós, animais! Um vegetalíssimo sabugo a considerar-se animal! Tem graça..."

O Visconde continuou:

— Por fim o animal destacou-se definitivamente do vegetal, criando órgãos novos; mas não passa dum filho direto do vegetal.

— Neto, portanto, do mineral — acrescentou Pedrinho.

— Exatamente, neto do mineral. Se analisarmos a matéria que compõe um animal veremos que é todinha formada de minerais. Logo, o animal é a terceira forma do mineral. Mais tarde, com o desenvolvimento dos animais, surgiu neles uma coisa nova: o Pensamento.

— Bisneto do mineral! — gritou Pedrinho.

— Para mim é isso mesmo — concordou o Visconde. Não sei se para os outros sábios também será...

Mas como eu ia dizendo, a base de tudo, inclusive da vida, o mineral, que temos na natureza, sob forma das rochas, onde está escrita toda a história da terra. A história do homem, muito curtinha, pois não vai além de 7.000 anos, nos é contada pelos documentos ou restos humanos que resistiram à destruição do tempo — múmias de egípcios, inscrições em monumentos, as pirâmides e outras coisas assim. Mas a história da terra, contada pelas rochas, alcança milhões de anos. Apesar disso, um geólogo como eu lê tão claramente numa rocha como Pedrinho lê num livro.

— Lê que coisas?

— Lê a idade dessa rocha, lê como ela se formou, o que sofreu nas suas lutas com a erosão; lê, portanto, a história da formação da terra, do nascimento das plantas, do aparecimento dos animais, tudo.

— De que modo a rocha fala das plantas e dos animais? — quis saber Narizinho.

— As rochas são túmulos de vidas passadas. Nelas encontramos fósseis de plantas e animais que levam os geólogos a mil conclusões sobre a história da terra. Esses restos mortais, revelam inúmeras formas de vida que já se extinguiram. Mostram plantas esquisitas, avós de muitas plantas de hoje. E vemos animais esquisitíssimos, também avós dos animais de hoje. E outros ainda mais esquisitos, que desapareceram sem deixar descendência. Mais tarde havemos de estudar a paleontologia, que é a ciência dos fósseis. Por enquanto só falaremos dos que se relacionarem com o petróleo. Nas escavações para petróleo os geólogos encontram restos fósseis de animálculos e de plantículas marinhas — como as diatomáceas, algas de células revestidas duma película de sílica.

— Que é sílica?

— Um mineral dos mais abundantes na natureza. Depois do oxigênio é o que aparece em maior quantidade. As areias são formadas de sílica. Mas, como ia dizendo, essas plantinhas possuem células com capa de sílica, de modo que quando morrem e desaparece o que há dentro das células, fica só a casquinha. Ao lado das diatomáceas encontram-se também muitos fósseis de radiolários, foraminíferos, ostras, etc.

— Radiolário?... Foraminífero? Que é isso?

— Animálculos com esqueletinhos de sílica que também chegaram até nós em estado fóssil e fornecem aos sábios preciosa instrução sobre o estado da terra há milhões e milhões de anos. Em certos pontos essas formas de vida se acumularam em tremendas quantidades. Encontramos hoje extensões enormes atulhadas com os seus esqueletinhos. E surge a pergunta: Para onde foi a substância que enchia as casquinhas? Para onde foi o protoplasma de que eram formados esses pequenos seres?

— Pro-to-plas-ma — repetiu Emília. Explique o que é. Eu não finjo que sei as coisas.

— Protoplasma — explicou o Visconde — é o caldo, o mingau desses serezinhos. É a substância da vida. A vida começa sendo protoplasma. O princípio de tudo que é orgânico está no protoplasma.

— Viva o protoplasma! — gritou Emília.

— Diante desses enormes amontoados de fósseis, os sábios perguntam: "Onde está o gato?" Isto é: "Onde está o protoplasma que os enchia?" Os sábios sabem que na natureza nada se perde; uma coisa não desaparece, apenas se transforma em outra. Se não está aqui, está ali. Se não está sob esta forma, está sob outra forma. Os sábios fazem essa pergunta e eles mesmos respondem, porque a função dos sábios é perguntar e responder a si próprios.

— E que respondem?

— Respondem uma porção de coisas; esse protoplasma, ou essa matéria orgânica dos animálculos, muda-se numa porção de coisas que neste momento não nos interessam — e mudam-se também no que mais nos interessa: em petróleo. Esses bichinhos eram seres marinhos e por isso se multiplicavam tanto. O grande reservatório da vida sempre foi o mar. Na terra a vida só é possível na superfície e até a poucos palmos de fundo, onde moram as minhocas. Já no mar a vida é possível até nas maiores profundidades. Mal comparando, a vida na terra é uma folha de papel; e a vida no mar é uma pilha de folhas de papel que vai desde a superfície das ondas até lá no fundo. Num pedaço de terra do tamanho desta sala, quanta vida cabe?

— Pouca — respondeu Pedrinho. Uns animais grandes, umas plantas, uns bichinhos e os micróbios. Só.

— Exatamente. Mas num pedaço de mar do tamanho desta sala cabe um colosso de vida, porque esse pedaço de mar pode descer até 9.000 metros de fundo, como no Mar do Japão, e está cheio de vida desde cima até embaixo. Por esse motivo a fauna e a flora do mar são imensas, muitíssimo mais ricas que a fauna e a flora da terra. Os cetáceos e os peixes representam as formas graúdas de vida marinha — as baleias, os tubarões, os espadartes, os atuns, os salmões, os arenques. Mas muito mais que isso são as formas da vida miudinha, que em vez de nadar boia na imensa massa líquida. Se a flora e fauna miúda fossem juntadas num bloco, dariam uma montanha muito maior que a formada de todos os peixes. Ora, toda essa vidalhada está nascendo e morrendo sem parar — e o que morre afunda. Em virtude disso há no mar uma perpétua chuva de organismos mortos, que vão caindo e se acumulando no fundo, onde formam uma camada de lodo negro, ou um sedimento. Tudo que se deposita é um sedimento, como já mostrei.

— Bolas! — exclamou Emília. Então o dinheiro que Dona Benta depositou no banco é um sedimento?

O Visconde coçou a cabeça. Emília atrapalhava-o com aquelas objeções de bobagem. Mas continuou, sem dar-lhe resposta:

— Esses sedimentos de animálculos e vegetais mortos cobrem o fundo dos mares, de modo que aquilo não passa dum imenso cemitério de matéria orgânica.

— Que quer dizer matéria orgânica?

— É a matéria que compõe os vegetais e os animais, isto é, as coisas dotadas de órgãos. Orgânico vem de órgão. Só têm órgãos as coisas que têm vida. A matéria que forma os minerais chama-se matéria inorgânica.

O Visconde tossiu — cuspiu e prosseguiu:

— Bem. Nas regiões marinhas próximas das terras, sobretudo nos golfos, parte desse lodo negro do fundo do mar foi recoberto, há milhões de anos, pelas areias e argilas que os rios despejam no mar. Como já vimos, a erosão desagrega as rochas e por meio dos rios as conduz para o mar. Por isso os continentes estão sempre a diminuir de volume e o fundo do mar está sempre a crescer de altura. Os sábios calculam, por exemplo, que cada mil toneladas de material pulverizado extraído do continente, de modo que em cada dez mil anos o tal golfo fica mais raso um metro. No fim de 7 milhões de anos estará completamente aterrado. Aqui no Brasil temos o Amazonas que, segundo os cálculos de Euclides da Cunha, leva para o mar 3 milhões de metros cúbicos de detritos por dia, ou sejam quase dois quilômetros cúbicos por ano. Mas esses detritos não se acumulam logo adiante do despejo do Amazonas, por causa da velocidade da correnteza na foz. São levados mar adentro até alcançarem a célebre corrente do Golfo do México, e no fundo deste golfo se depositam, de mistura com os detritos do Mississipi.

— Quer dizer então que o Brasil também fornece aterro para o Golfo do México?

— Sim, e em boa quantidade. Manda para lá quase dois quilômetros cúbicos de terra amazônica por ano.

— Mas assim a região amazônica vai se abaixando e acabará invadida pelo mar...

— Muito possível. Essa região já foi mar, antes do enrugamento da terra que criou a Cordilheira dos Andes. Era um mar que ligava o Atlântico ao Pacífico. Hoje é um aguaçal doce, de tanto rio que há lá; e como esses rios não param de desmontar as terras, acabarão baixando-as tanto que a água do mar cobrirá novamente a bacia amazônica, formando o futuro Golfo do Amazonas. Por esse tempo o Golfo do México estará aterrado.

— Bonito! — protestou Pedrinho. Então os Estados Unidos aumentarão de território à nossa custa, mandando para cá o golfo que há lá?

— Claro. Os dois maiores rios do mundo, o Amazonas e o Mississipi, estão empenhados nessa tarefa de aterrar o Golfo do México e abrir o Golfo Amazonense.

— Sim, senhor! — disse Narizinho. Vejo que a água é mesmo uma danadinha. Muda tudo na terra, com a sua mania de não parar nunca. É a leva-e-traz, é a sobe-e-desce, é a saúva carregadeira.

— Realmente é assim. Os sábios sabem que há uns poucos milhões de anos o Golfo do México tinha uma extensão o dobro da de hoje. O mesmo acontece com o Golfo da Califórnia, que já foi muito maior. Está em grande parte aterrado pelo despejo dos rios — e é nessa parte aterrada que os americanos extraem maior quantidade de petróleo.

— Quer dizer que o petróleo se forma nesse lodo enterrado?

— Justamente. A matéria orgânica acumulada nos sedimentos gera o petróleo — pelo menos na opinião de muitos sábios. Mas para isso é preciso que nessa matéria orgânica haja hidrocarbonetos.

— Que bicho esquisito é esse?

— Hidrocarboneto é o nome que os químicos dão às combinações de hidrogênio e carbono. Esses dois corpos mostram-se muito amigos, gostam de andar juntos, de braços dados. Os átomos de um se ligam aos átomos de outro, ora nesta, ora naquela proporção — e conforme é essa proporção, surgem os hidrocarbonetos chamados metana, butana, propana, acetileno, benzina, etc. que são gases ou líquidos voláteis, todos eles inflamáveis.

— Que quer dizer líquido volátil?

— Quer dizer um líquido que se transforma em gás assim que é exposto ao ar. Conserva-se líquido, enquanto preso. Se o soltam, adeus! vira gás. Mas, como eu ia dizendo, para que se forme petróleo é preciso que nos tais sedimentos haja hidrocarbonetos. Nos sedimentos sem hidrocarbonetos, só de fósseis secos, tais como os sedimentos calcários, não se forma o petróleo.

— Bom — disse Emília — estou vendo que o tal petróleo não passa de azeite de defunto. Cadáveres de foraminíferos, peixe podre, cemitérios de caramujo — até já estou ficando com o estômago enjoado...

— Por isso é que é tão fedorento — ajuntou Narizinho.

— O Visconde falou no aterro dos golfos do México e da Califórnia — disse Pedrinho. E aqui no Brasil? Não teremos algum aterro assim?

— Como não? Há, por exemplo, o Pantanal de Mato Grosso, um dos maiores aterros que o mundo conhece.

— Explique isso, Visconde.

— O Pantanal de Mato Grosso e o Chaco do Paraguai e da Bolívia formam uma imensa depressão duns 700 quilômetros de comprimento. Essa região já foi um mar interno, ou mediterrâneo, como se vê das inúmeras lagoas de água salgada ainda existentes. Chamava-se o Mar de Xaraés. Também inúmeros fósseis marinhos atestam o antigo mar que secou — ou que está secando, porque as lagoas salgadas ainda são restos do mar.

— E quem aterrou esse Mar de Xaraés?

— Está claro que foi a Erosão, com a terra tirada da Cordilheira dos Andes, dum lado, e das montanhas do Brasil, de outro. Ainda hoje vemos no meio do pantanal algumas montanhas baixas, como a Serra de Maracaju e a da Bodoquena. Essas serras são ruínas de montanhas. Deviam ter sido altíssimas, mas foram rebaixadas pela erosão. Com as areias e argilas tiradas delas, dos Andes e das outras montanhas do Brasil, é que se aterrou o velho Mar de Xaraés.

— Deve haver muito petróleo no Pantanal — observou Pedrinho.

— Claro que deve. Reúnem-se ali todos os requisitos para a formação do petróleo, além de que em muitos pontos há sinais evidentes de petróleo. Bem possível até que o Pantanal seja a maior região petrolífera do mundo.

— Que beleza! — exclamou Pedrinho pensativamente.

Nesse momento o relógio da parede bateu nove horas.

— Basta por hoje, Visconde — disse Dona Benta levantando-se. — Ouvi com a maior atenção a sua geologia e acho que está certo. Mas basta. Temos de alternar ciência com sono — e chegou a hora de recolher.

Depois, voltando-se para tia Nastácia, que cochilara o tempo inteiro:

— Que tal está achando a geologia do Visconde? — perguntou.

Tia Nastácia abriu uma enormíssima boca vermelha e respondeu bocejando:

— Ele só fala em peixe podre, Sinhá. Peixe há de ser fresquinho. Quanto mais fresco, melhor. E se vem ainda vivo, como aquele surubi que o Coronel Teodorico mandou outro dia, então ainda melhor...

 

CAPÍTULO 3: COMO SE FORMA O PETRÓLEO

No terceiro serão o Visconde começou sem a clássica tossidinha do costume. Emília reclamou:

 

— Esqueceu-se de limpar o pigarro, Visconde.

A fim de contentá-la, o grande geólogo teve de fingir um pigarro que não existia — mas para castigo principiou a aula com esta pergunta:

— Senhora Emília, explique-me o que é hidrocarboneto.

A atrapalhadeira não se atrapalhou e respondeu:

— São misturinhas de uma coisa chamada hidrogênio com outra coisa chamada carbono. Os carocinhos de um se ligam aos carocinho de outro e formam metanas e butanas e propanas e benzinas e outras coisas gasosas ou voláteis que pegam fogo.

— Isso mesmo. Só que esses carocinhos têm o nome científico de átomos. E onde se encontram esses hidrocarbonetos, Pedrinho?

— Nos sedimentos marinhos, sobretudo rente às costas, em terras que já foram mares, ou dentro dos continentes, em terras que também já foram mares.

— Muito bem. Os tais sedimentos orgânicos, os tais cemitérios de animálculos e plantículas, geram os tais hidrocarbonetos que pegam fogo; mas isso só quando se reúnem umas tantas condições favoráveis. Esses cemitérios de matéria orgânica devem ser cobertos um pouco depressa pelos tais aterros dos rios. Têm que ficar incubados, como ovos na incubadeira, sob tais e tais condições; do contrário não saem os pintos do petróleo.

— Que condições são essas? — perguntou Pedrinho.

— Uma delas é ficarem isolados das águas. Esse isolamento livra a matéria orgânica de ser devorada por certos seres viventes, os urubuzinhos do mundo pequeno. E também a livra da fome insaciável do maior urubu que existe na Natureza, o tal Senhor Oxigênio. Este freguês tem um apetite de cabra. Come tudo quanto encontra, isto é, oxida tudo quanto encontra, como dizem os químicos. O oxigênio existe na água e no ar; por isso a matéria orgânica que cai na água, ou está exposta ao ar, estraga-se depressa, desaparece, oxida-se — é devorada, em suma, pelo terrível urubu.

— Ahn! — exclamou Pedrinho. — Então é por esse motivo que não se forma petróleo na matéria orgânica de cima da terra. Está exposta ao ar, entregue à fúria do oxigênio...

— Isto mesmo. O oxigênio é uma espécie de guarda da natureza, com a missão de conservar as coisas num certo estado de equilíbrio. Vemos isso com o ferro. Esse metal não existe na natureza no estado livre de ferro puro. Existe sob forma do óxido de ferro, isto é, misturado ou combinado, com o oxigênio. Os minérios de ferro, ou as pedras de ferro, como o povo diz, não passam dessa combinação — são óxidos de ferro. Mas vai o homem e derrete a pedra e fabrica o ferro metálico de que se utiliza para fazer mil coisas — facas, arame, pregos, vergalhões, chapas, trilhos...

— Ferros de engomar, alfinetes — ajuntou Emília.

—... tudo enfim que é máquina, instrumento ou material de construção. Mas o Senhor Oxigênio, que não concorda com a mudança, trata logo de desfazer a obra do homem — e enferruja o ferro. Sabem o que é a ferrugem?

— É o ruge do ferro — disse Emília.

— Ferrugem é óxido de ferro. É o oxigênio que se liga ao ferro para restabelecer o que a natureza criou e o homem alterou. Vai lentamente trabalhando nisso, sem parar nunca, e força o homem a fabricar muito ferro novo para substituir o ferro velho que volta a ser ferrugem, ou óxido.

— Que bisca o tal oxigênio! — exclamou Emília.

— Também com a matéria orgânica o oxigênio faz a mesma coisa. Oxida-a, enferruja-a, combina--se com o carbono que há nela e solta o hidrogênio. Mas quando a matéria orgânica fica enterrada, e portanto fora de contato com o oxigênio da água ou do ar, podem acontecer coisas diferentes — como essa de formar-se o petróleo.

— Mas se é assim — disse Pedrinho — então o homem pode, se quiser, fabricar petróleo...

— Pode e já fabricou. Um sábio alemão, de nome Engler, provou que as graxas de origem vegetal ou animal se transformam em petróleo, quando aquecidas a uma temperatura de mais ou menos 400 graus a uma pressão de a 25 atmosferas.

— Que história de pressão atmosférica é essa?

— Pressão atmosférica é o peso que o ar exerce sobre um corpo.

— O ar então tem peso?

— Claro que tem. Todos os corpos têm peso.

— Parece tão leve...

— Leve é, não há dúvida; levíssimo até, mas tem peso. Um litro de ar pesa um bocadinho mais de um grama. E como a atmosfera é a camada gasosa que vai desde o nível do mar até lá em cima onde o ar acaba, essa camada atmosférica está sempre fazendo peso sobre tudo que existe na terra, inclusive nós, gente. Uma coluna de ar de um centímetro quadrado de base pesa 1.033 gramas, ou quilo e 33 gramas.

— Puxa! — exclamou Emília. — Mais de um quilo para cada centímetro quadrado, que é uma isca de espaço!... Não entendo! Se é assim, então o peso do ar sobre a cartolinha do Visconde deve ser duns dez quilos, porque a cartolinha, com as abas, terá uns dez centímetros quadrados de superfície. E com tamanho peso não achata a cartolinha?

 

— Porque essa pressão se exerce de todos os lados e também debaixo para cima e de dentro para fora, de modo que se anula. Mas se a gente extrair o ar que há dentro da cartolinha, fazendo o vácuo, ela se achatará imediatamente.

— Bom, Visconde. Basta de ar e pressões atmosféricas.. Volte ao petróleo — reclamou Pedrinho.

— Esta digressão...

— Que é digressão, Visconde?

— É sair do assunto principal, como nós saímos. Esta digressão, digo eu foi para explicar por que motivo não se forma petróleo nas matérias orgânicas expostas à água ou ao ar. Para que se forme petróleo é necessário que a matéria orgânica fique isolada pelos aterros que os rios fazem com os materiais trazidos pela correnteza. No começo há mistura do aterro com a matéria orgânica; depois não se mistura mais, fica aterro puro — o qual aterro puro forma uma capa, uma camada isoladora que livra a massa de matéria orgânica do contato com a água, com o oxigênio e os outros urubuzinhos comedores de matéria orgânica. Quando isso acontece, a massa sossega e vai lentamente fabricando o petróleo.

— Interessante! — exclamou Pedrinho, e o Visconde continuou:

— As jazidas de petróleo mais importantes que o homem conhece encontram-se, como já contei, perto das costas e nos extintos mares interiores, ou mediterrâneos, como foi o nosso Mar de Xaraés. Os riquíssimos campos de petróleo de Bacu, rente ao Mar Cáspio, estão nessas condições. O mesmo direi dos campos petrolíferos da Mesopotâmia, rente ao Golfo Pérsico. Aqui na América do Sul temos os campos petrolíferos de Comodoro Rivadávia, na Argentina, rente ao Golfo de S. Jorge. Esse golfo já foi muito maior. Os aterros é que o reduziram ao tamanho atual. Na parte aterrada os argentinos abriram mais de 3.000 poços de petróleo.

— Então é fácil saber onde está o petróleo — disse Pedrinho. — Basta determinar se uma terra é formada de aterro do mar.

— É o que os argentinos estão fazendo. Por meio de estudos geológicos e geofísicos, eles procuram determinar as terras de aterro para nelas abrirem as perfurações.

— Está tudo muito bem, Visconde — disse Pedrinho. — Mas eu queria saber como a tal matéria orgânica vira petróleo.

— Ah — exclamou o Visconde — isso é uma história bastante comprida. São precisos milhões de anos de paciência. A natureza é uma lesma nos seus processos, como já observei. Primeiro há a mistura dos sedimentos orgânicos com as areias que os rios trazem; depois acaba a mistura e começa o aterro puro. Esse aterro puro deve ser de materiais que permitam a formação duma camada impermeável, uma casca, uma capa que defenda o sossego da matéria orgânica aprisionada no fundo. Quando, em terra, uma vegetação fica por muito tempo recoberta e, por consequência, livre de contato com o ar, os vegetais, em vez de apodrecerem, transformam-se em turfa, ou em carvão de pedra. E quando, no mar, a matéria orgânica composta das gorduras e dos caldinhos dos animálculos do lodo marinho fica isolada do oxigênio, ela vai se convertendo numa série de matérias betuminosas.

— Que é isso?

— Matérias betuminosas são as que contêm hidrocarbonetos; o asfalto, o petróleo bruto e certos xistos são matérias betuminosas. O homem refina essas matérias para extrair os hidrocarbonetos puros empregados na indústria.

— Mas eu quero saber como se faz a passagem do tal lodo de matérias orgânicas para petróleo — reclamou Narizinho.

— No laboratório os químicos sabem fazer essa passagem. Já contei a experiência de Engler. Calor de 400 graus e pressão de 20 a 25 atmosferas.

— Espere, Visconde. Vossa Excelência esqueceu de explicar o que é uma atmosfera. Só falou na atmosfera em geral.

O Visconde tomou fôlego e explicou:

— Em física, a palavra "atmosfera" quer dizer uma medida de pressão, como o metro quer dizer uma medida de comprimento. Atmosfera, neste sentido de medida, equivale ao peso de 1.033 gramas por centímetro quadrado. A pressão de 20 a 25 atmosferas usada por Engler corresponde, pois, a um peso de 20 a 25 quilos por centímetro quadrado. Mas no laboratório a formação do petróleo se faz imediatamente, com a pressa com que os homens querem todas as coisas. Na natureza, não. O petróleo leva milhares de séculos se formando — e os sábios não se entendem nesse ponto. Não sabem qual é a marcha do processo de transformação.

O Visconde passou o lencinho pelo rosto e prosseguiu:

— Muito bem. Creio que quanto à formação do petróleo basta ficarmos nisto. Meu curso não é para formar especialistas, sim para dar uma ideia geral da coisa. Temos agora de ver quais as condições que tornam esses depósitos de petróleo exploráveis. Este ponto é da maior importância para o mundo. Se o petróleo fosse inexplorável, de nada valeria para nós. É preciso não esquecer que a formação das camadas de sedimento se deu há milhões e milhões de anos, num tempo em que o globo era ainda uma fruta fresca e roliça. Depois o coitado foi murchando até ficar a passa que é hoje.

— Que história de fruta fresca e passa é essa, Visconde?

— Uma comparação para que vocês me entendam melhor.

— Comparações dessa ordem só servem para nos fazer vir água à boca — disse Narizinho. — Passas! Quem me dera ter aqui um pacotinho daquelas sem caroço — seedless, que vêm da Califórnia...

— Pois uma passa é uma fruta murcha e ressecada, como aquele maracujá que Pedrinho descobriu atrás do armário, todo enrugadinho, cheio de montanhas e vales. Com a terra aconteceu o mesmo. Começou a esfriar e a murchar, e foi se encolhendo, e se enchendo das rugas que hoje formam as montanhas e os vales. A Cordilheira dos Andes é uma das maiores rugas desse tipo; segue através de toda a América do Sul e continua nos Estados Unidos com o nome de Montanhas Rochosas.

— E que tem isso com o petróleo?

— Tem que no começo as camadas de sedimento depositadas no fundo dos mares eram horizontais, ou mais ou menos horizontais. Com o enrugamento, ou o murchamento da crosta da terra, essas camadas horizontais perderam a sua horizontalidade, tornando-se por assim dizer montanhosas, ou onduladas. Ainda existem no globo zonas onde a crosta está como era nos primeiros tempos. As grandes planícies dos pampas da América do Sul e das estepes da Rússia foram planícies no começo e continuaram planícies até hoje. Não enrugaram. Mas isso é raro. No geral a crosta se enrugou, formando as montanhas e os vales. Nesse enrugamento houve muita ruptura de camadas, com escorregamentos duma sobre outra, torcimentos, penetração duma camada em outra, etc. Mil acidentes aconteceram. Vou desenhar na pedra um desses pregueamentos dos mais simples, para mostrar onde se acomoda o petróleo.

O Visconde berrou para tia Nastácia que lhe trouxesse o quadro-negro e o giz.

A preta saiu, estonteada de sono (o quadro--negro morava no quarto de Pedrinho), e voltou resmungando:

— Peixe, peixe podre, peixe seco, esqueleto de peixe... Para que serve esse lixo? Bobagem...

O quadro-negro foi arrumado de jeito que o Visconde de pé na sua cadeirinha, pudesse desenhar uma figura assim:

 

 

 

— Isto é um corte da terra no estado em que ela se achava antes do enrugamento. Temos uma camada sedimentária com o petróleo já formado. Notem que o petróleo fica em nível plano e em cima da água.

 

— Por que em cima? — quis saber Narizinho.

— Porque na massa de lodo aprisionado pela capa do aterro havia também água — água do mar, água salgada. E como é mais leve que a água, o petróleo, à medida que se forma, vai subindo e se colocando em cima da água. E o gás que também se forma fica em cima do petróleo, porque o gás é mais leve que o petróleo. A ordem de colocação, pois, é, primeiro água, depois petróleo, depois gás.

Dona Benta piscou para tia Nastácia, como quem diz: "Que danadinho, hein?" O Visconde continuou:

— Muito bem. Mas um petróleo que se acha disposto dessa maneira de nada serve ao homem. Não há jeito de recolhê-lo. Para que o petróleo sirva é necessário que se aglomere num certo ponto — o que se dá quando as camadas sofrem o tal enrugamento. Vamos fazer outro desenho, com estas mesmas camadas já enrugadas. Teremos isto: — As camadas enrugaram — explicou o Visconde — ficaram onduladas que nem montanha russa. E que aconteceu com o petróleo já formado e acumulado por igual em cima dos sedimentos?

 

 

 

— Subiu para a parte mais alta por ser mais leve que a água — respondeu Pedrinho.

— Exatamente. O petróleo subiu e ficou entalado entre o gás, em cima, e a água, embaixo. Essas rugas têm o nome de anticlinais, quando são para cima e em forma de montanhas; e têm o nome de sinclinais quando são para baixo, em forma de vale. O petróleo nunca está no topo do anticlinal, sim nas encostas. Se abrirmos um poço bem no pico do anticlinal, não sai petróleo, sai gás. Se abrimos um poço muito no pé das encostas, sai água. Mas se abrimos um poço bem na encosta, sai petróleo.

— Então é facílimo tirar petróleo — observou Pedrinho.

— Seria, se nós aqui de cima pudéssemos ver com os nossos olhos essas dobras lá dentro da terra. Infelizmente nossos olhos não penetram fundo assim.

— E como fazer, então?

— Por meio de observações geológicas, isto é, de estudos da terra na superfície, os homens conseguem, muitas vezes, localizar esses anticlinais. Ultimamente apareceu uma ciência nova que tem ajudado muito: a Geofísica. Graças aos processos geofísicos é possível determinar com muita precisão os anticlinais e os sinclinais, e, portanto, marcar os melhores pontos para as perfurações.

— Emília antigamente tinha uns olhinhos de ver através dos corpos opacos — disse a menina olhando para a boneca. — Quem sabe se com esses olhinhos podemos determinar algum anticlinal de petróleo aqui no sítio de vovó?

Emília remexeu-se toda.

— Ainda não fiz a experiência, mas acho possibilíssimo. Hei de verificar esse ponto.

Tia Nastácia arregalou os olhos, murmurando:

— Credo! — e como o relógio marcasse nove horas, foi se levantando.

— Basta por hoje — disse Dona Benta, erguendo-se também. — Continuo a aprovar a ciência do Visconde. Tudo quanto ele disse está de acordo com o que os geólogos ensinam. Ele é um sábio de verdade, mas... cama, cama, criançada!

Meia hora depois todos dormiam, sonhando com anticlinais, matérias orgânicas, hidrocarbonetos e peixinhos fósseis. Emília sonhou com uma baleia imensa, que esguichava petróleo.

 

CAPÍTULO 4: PETRÓLEO! PETRÓLEO!

No serão seguinte, antes de o Visconde começar a aula, cada um contou o sonho geológico que teve. O de Emília, como sempre, foi o mais complicado. Tinha-lhe aparecido uma "baleia petrolífera", com várias torneiras pelo corpo imenso; uma que dava gasolina; outra, querosene; outra, óleo combustível; outra, óleo lubrificante...

— Pare, Emília! — gritou Narizinho quando a boneca chegou nesse ponto. — Vovó fala de 300 produtos extraídos do petróleo. Quer dizer que a sua baleia vai ter 300 torneiras pelo menos — e se você começa a encarreirar todas, o Visconde fica sem tempo de dar a lição de hoje.

— Além disso — ajuntou Pedrinho — eu desconfio muito dos sonhos da Emília. São bem arranjados demais. Essa tal baleia com torneiras petrolíferas está me cheirando a tapeação...

Emília pôs-lhe a língua, mas "guardou" a baleia, deixando que o Visconde abrisse a boca.

— Muito que bem — começou ele. — Vimos ontem como se formam os lençóis de petróleo, e vimos que esses lençóis devem estar protegidos por uma capa impermeável que prenda os gases e o óleo. Vimos também que é preciso que os lençóis se enruguem e o petróleo se acumule na parte superior das dobras. Se a capa se rompe, o gás e o óleo escapam e perdem-se.

— Perdem-se como? — quis saber Pedrinho.

— Quando você pinga um pingo de azeite num papel, que acontece? — propôs o Visconde.

— Acontece que o azeite vai se espalhando até tomar conta do papel inteiro.

— Isso mesmo. Espalha-se, vai caminhando. O mesmo se dá com o petróleo lá do fundo, quando a capa impermeável se rompe. Vai se espalhando, vai subindo, até chegar à superfície da terra. Em muitos pontos do Brasil vemos os tais xistos e arenitos betuminosos, que não passam de materiais impregnados do petróleo que veio subindo do fundo. No Vale do Paraíba, aqui em São Paulo, no Riacho Doce, em Alagoas, em São Gabriel, no Rio Grande do Sul e em muitos outros pontos existem grandes quantidades de xistos betuminosos. Esse betume é sinal de petróleo do fundo que subiu até em cima.

— Antes de mais nada, Visconde, explique o que é xisto.

— Xisto é uma argila compacta que aparece em lâminas, ou camadinhas; e arenito já ensinei: é areia com os grãozinhos cimentados entre si, formando uma espécie de pedra meio dura.

— Nesse caso, quando há em cima da terra xisto ou arenito betuminoso não deve haver petróleo no fundo. Se o petróleo chega até em cima, então não está mais acumulado lá onde se formou.

— É e não é assim — respondeu o Visconde. — O petróleo existente na camada subterrânea pode ter-se derramado todo ou em parte. Por uma fenda, ou racha na capa impermeável, pode subir uma parte do petróleo, ficando o resto no fundo.

— Tome fôlego, Visconde. Não temos pressa.

O Visconde encheu de ar os pulmões e continuou:

— Muito bem. Já sabemos ser indispensável que a capa do petróleo seja impermeável e inteiriça, sem fendas ou portas por onde o óleo fuja. Temos agora de saber mais uma coisa: os lençóis de petróleo não são compostos de petróleo solto, líquido; ele está sempre misturado com areia, formando uma papa. Os geólogos dizem, na sua linguagem técnica, que "a camada portadora de petróleo tem de ser de rocha porosa", isto é, composta de grãozinhos com espaços entre si. Nesses espaços é que o petróleo se acumula.

— Então nas camadas de argilas não pode haver petróleo — observou Pedrinho.

— Não pode. Os grãozinhos de argilas cimentam-se de tal modo que não fica entre eles nenhum espaço em que o petróleo se acomode. Essas camadas de argila servem de capa, isso sim.

— Bem — continuou o Visconde depois de uma pausa. — Estamos na capa impermeável. Com o enrugamento da terra, a capa, no alto dos anticlinais, fica muito perto da superfície do solo; e, portanto, está mais arriscada a romper-se.

— Por quê?

— Sempre por artes da Senhora Erosão. Não sua mania de corroer tudo, ele vai rebaixando o solo, afundando-o até que alcança o alto da capa impermeável e a ataca. O anticlinal é uma montanha enterrada — e a Erosão tem ódio às montanhas, como já vimos. Não admite nenhuma. Quer arrasá-las todas para deixar a terra uma planície sem fim.

— Como é democrática! — exclamou Narizinho.

— Sim a Erosão é inimiga das grandezas. O Himalaia, por exemplo, que é a montanha mais alta do mundo, já foi muito mais alta. A erosão vai raspando, vai roendo, vai destruindo essa orgulhosa montanha, até que um dia dê cabo dela.

— Que dia?

— Um dia lá no futuro, daqui a 100 ou 200 milhões de anos. Nesse dia a terra toda estará lisinha, sem nenhuma das rugas que se formaram quando houve o tal enrugamento.

— Que bom para as geografias dessa época! — exclamou Emília.

— Por quê?

— Porque com o desaparecimento das montanhas desaparece das geografias a parte mais pesada, justamente as montanhas. Que gosto estudar geografia lá para o ano 20000000037!

— Ficarão mas é muito sem graça — disse Narizinho. — Acho as montanhas a coisa mais linda do mundo. Os Andes! O Himalaia! O Monte Branco, na Suíça! As neves que há nas montanhas, as águias, os condores, a edelvais — tudo isso desaparecerá...

— Sim, tudo desaparecerá porque a Erosão não para nunca. Rói sem cessar, para fazer aterros na água.

— Boba! — exclamou a Emitia. — Desde que não pode destruir a água, o mais que consegue é que a água se mude dum ponto para outro. Quem aterra um mar não destrói a água desse mar — obriga-a a mudar-se, só.

— Isso mesmo — concordou o Visconde. — E essas mudanças são contínuas. Tudo está mudando, sem que a gente o perceba. Os mares estão virando continentes; e os continentes, virando mares. E a incansável operária dessa eterna mudança é sempre a Senhora Erosão. No caso do petróleo, a Erosão vai roendo a crosta por cima dos anticlinais, roendo, roendo, roendo, baixando cada vez mais o nível da superfície até que toca na capa do petróleo. Começa a afinar essa capa, e por fim a rompe no ponto mais alto. O petróleo então escapa — ou aflora, como dizem os geólogos.

— Que é aflorar?

— É aparecer à flor da terra.

— Terra tem flor? — disse Emília, arregalando os olhos.

O Visconde coçou a cabeça.

— Flor, Emília, não é só esse mimo colorido e perfumado que as plantas produzem. A palavra flor também significa superfície. Quando a gente diz: À flor da pele, está dizendo: na superfície da pele. Aparecer à flor da terra quer dizer aparecer na superfície da terra. Logo, quando uma coisa aparece à flor da terra, aflora. Aflorar é isso; é aparecer na superfície. Entendeu?

Emília fez um focinhinho de lebre, sinal de que tinha entendido. O Visconde continuou:

 

 

 

— O petróleo aflora, escapa, escorre, põe-se em contato com o oxigênio do ar — e o oxigênio o oxida, transformando-o em asfalto. Há pelo mundo numerosos depósitos desses restos do petróleo vasado pelos anticlinais roídos pela erosão. Nesses casos, procurar petróleo ali é tolice. Se ele se derramou, como há de estar lá dentro?

— Mas pode estar perto, em outro anticlinal que ainda não fosse alcançado pela Erosão — observou Pedrinho.

— Perfeitamente. Perto ou embaixo do anticlinal esvaziado. As camadas, ou os horizontes, ou os lençóis de petróleo aparecem muitas vezes em série, superpostos, uns em cima de outros. Se o primeiro lençol está a 800 metros; outro estará a 1.000; outro estará a 1.500 — e assim por diante. É por isso que os petroleiros de hoje cuidam muito de perfurações profundas; e em pontos onde já tiraram petróleo a 800 metros, estão agora a tirá-lo a 1.000, 1.500 e até 3.000 metros.

— Muito bem, Visconde — disse Pedrinho. — Pelo que o senhor diz, a Erosão tirou petróleo muito antes de o homem se ocupar disso. Logo, a grande petroleira é a Erosão.

— Perfeitamente. Quem começou a lidar com o petróleo no mundo foi a Erosão; e observando o trabalho dela é que o homem resolveu fazer o mesmo. Em vez de esperar milhões de anos para que a Erosão rompa a capa impermeável dos anticlinais, o homem vai e fura nesses anticlinais — e passa a perna na Erosão. O homem antecipa-se à Erosão, mas para alcançar e soltar o petróleo faz o mesmo que ela: vai erodindo a terra. Uma perfuração para petróleo é uma erosão vertical, feita num espaço pequeno, num círculo de dois ou três palmos de diâmetros, em linha reta que desce da superfície até o lençol de petróleo. A Erosão natural não faz buraquinhos retos assim: rói por igual e horizontalmente toda a superfície do campo petrolífero; por esse motivo é que leva tanto tempo. Gasta milhares de anos para alcançar um anticlinal que o homem, com as suas máquinas de furar, alcança em poucas semanas de trabalho — e até em dias. Em certas zonas os petroleiros abrem um poço numa semana.

— Numa semana? — exclamou Pedrinho.

— Sim, numa semana. Tudo depende das rochas formadoras da terra naquele ponto. Se são rochas moles, como as argilas e os xistos, tudo corre a galope. Mas se os perfuradores encontram uma peste chamada diábase, rocha de extraordinária dureza, babau! Aí só à força de paciência de santo. No Poço do Araquá, furado aqui em São Paulo no Município de São Pedro, os perfuradores deram numa camada de diábase duríssima. Tão dura que a perfuração, que estava caminhando com a marcha de 7 metros por dia, passou a caminhar centímetros por dia — cinco centímetros, dez, quinze, para cada 24 horas de trabalho ininterrupto. Um horror!

— E quem foi que teve a ideia de lograr a Erosão e chegar aos depósitos de petróleo antes dela?

— Foi o Coronel Drake, nos Estados Unidos. No ano de 1859 esse coronel entendeu de abrir um poço em Titusville, no Estado da Pensilvânia — e tanto lidou que o abriu, apesar das ferramentas de que dispunha serem das mais rudimentares. Esse poço virou o pai de todos os poços abertos naquele país.

— Quantos filhos teve? — perguntou Narizinho.

— Mais de 900 mil. Já há mais de 900 mil poços de petróleo abertos nos Estados Unidos. Os americanos são umas feras. E como fazem tudo em ponto grande, tornaram-se o povo mais adiantado e rico do mundo.

— E nós, no Brasil, quantos poços abrimos?

— Que desse petróleo, nenhum. Até hoje foram abertos no território brasileiro apenas sessenta e poucos poços, na maioria rasos demais para atingirem alguma camada petrolífera.

— Que vergonha! E a Argentina?

— A Argentina já abriu mais de 4.000, quase todos produtivos. Por essa razão está hoje extraindo 16 milhões de barris de petróleo por ano.

— E os outros países da América?

— Todos estão cheios de poços de petróleo, donde tiram milhões e milhões de barris. A Venezuela conseguiu tornar-se o terceiro produtor do mundo, com mais de 140 milhões de barris por ano. O Peru extrai milhões de barris. A Colômbia extrai outros milhões. O Equador extrai outros milhões. A Bolívia, idem. Todos os vizinhos do Brasil são grandes produtores de petróleo, exceto o Uruguai e o Paraguai.

— E por que o Brasil também não produz milhões e milhões de barris? Será que não existe petróleo aqui?

— Não existem perfurações, isso sim. Petróleo o Brasil tem para abastecer o mundo inteiro durante séculos. Há sinais de petróleo por toda parte — em Alagoas, no Maranhão, em toda a costa nordestina, no Amazonas, no Pará, em São Paulo, no Paraná, em Santa Catarina, no Rio Grande, em Mato Grosso, em Goiás. A superfície de todos esses Estados está cheia dos mesmos indícios de petróleo que levaram as repúblicas vizinhas a perfurar e a tirá-lo aos milhões de barris. Os mesmíssimos sinais...

— Então por que não se perfura no Brasil?

— Porque as companhias estrangeiras que nos vendem petróleo não têm interesse nisso. E como não têm interesse nisso foram convencendo o brasileiro de que aqui, neste enorme território, não havia petróleo. E os brasileiros bobamente se deixaram convencer...

— Que araras! — exclamou Emília. — Mas não estão vendo petróleo sair em todos os países vizinhos do nosso?

— Estão, sim, mas que quer você? Quando um povo embirra em não arregalar os olhos não há quem o faça ver. As tais companhias pregaram as pálpebras dos brasileiros com alfinetes. Ninguém vê nada, nada, nada...

E cada ano o Brasil gasta mais de meio milhão de contos na compra do petróleo que as companhias espertalhonas nos vendem.

— Meio milhão de contos! — exclamou Pedrinho.

— Mil trezentos e tantos contos por dia! Quarenta e três contos por hora! Que doença cara é a cegueira...

— E a profundidade, Visconde! — perguntou Narizinho. — A que profundidade vão os poços abertos pelos homens?

— Varia. Há poços de 200 metros; outros de 500; outros de 800, outros de 1.000, de 1.500, de 2.000 etc. O mais profundo parece-me que é um de 3.468 metros, no Estado da Califórnia. Na Argentina há um com 2.500 metros, na Província de Mendonza. Mas ficam muito caros esses poços profundos. Os de preço comercial nunca vão a mais de 2.000 metros.

— E depois que o furo alcança o depósito de petróleo, que acontece?

— Quando o poço alcança um anticlinal intato, isto é com a capa impermeável perfeitamente fechadinha, encontra lá, petróleo preso, submetido a pressões muito fortes, de 150, 200 ou mais atmosferas. Assim que o furo rompe a capa impermeável, essa pressão faz que o petróleo suba por ele acima e jorre. Às vezes, quando a pressão é muito forte, o petróleo esguicha com tamanha fúria que escangalha com a torre de sondagem, arremessando as ferramentas a grande distância. No México foi aberto o célebre poço de Cerro Azul, que jorrou com uma vazão de 300 mil barris por dia. O esguicho do petróleo subiu a 180 metros de altura!...

— Que maravilha! — exclamou Pedrinho. — E a torre de sondagem, com certeza, foi para o inferno...

— Sim, foi tudo arremessado a dezenas de metros de distância.

— E como fizeram para domar o monstro?

— Uma trabalheira horrível. Mas quem pode com o bicho-homem? No fim de alguns dias o Cerro Azul estava domado — estava de freio na boca, isto é, com um registro, que é uma imensa torneira adaptada à boca do cano. Esse poço produziu milhões e mais milhões de barris de petróleo, permanecendo até hoje o campeão mundial.

— Ah, se nós descobríssemos um Cerro Azul aqui no sítio de vovó! — suspirou Narizinho. — Eu só queria ver a cara de assombro de tia Nastácia...

— Quem sabe?! Tudo é possível neste mundo — disse o Visconde. — Mas temos de perfurar. Sem perfurar não aparecem Cerros Azuis, nem Verdes, nem Amarelos. Quem quer ter petróleo, perfura. Esperar que ele apareça por si, é bobagem.

— E que se faz para prevenir que o jorro de petróleo escangalhe com tudo?

— Os petroleiros tomam todas as precauções para evitar isso, em virtude dos muitos desastres do começo. Colocam na boca do poço as tais torneiras fortíssimas, que são fechadas assim que o petróleo começa a subir. Por falta dessa precaução, certa companhia americana levou a breca.

— Como?

— Estava a abrir um poço e descuidou-se de colocar o torneirão. Subitamente o petróleo jorrou com enorme violência, varrendo com a sonda e arrancando os tubos de aço do encanamento. Não houve jeito de estancar o repuxo. O petróleo inundou tudo, formou uma lagoa em redor, invadiu os riachos próximos — uma verdadeira calamidade! As indenizações que os vizinhos exigiram da pobre companhia arrastaram-na à falência.

— Que engraçado! Uma companhia que quebra por ter tirado petróleo demais!...

— De fato foi assim. Pagou bem caro o descuido, e para evitar desastres dessa ordem os petroleiros tomam o máximo cuidado para "sossegar o leão" do petróleo quando ele começa a jorrar.

— E essa tal pressão que há lá no fundo dos depósitos de petróleo, donde vem?

— São pressões dos gases do próprio petróleo. O petróleo está ao mesmo tempo em estado líquido e em estado gasoso. Como os gases ficam muito comprimidos pela capa impermeável, eles exercem grande pressão; e assim que o furo rompe a capa, essa pressão força o petróleo a sair. Os gases são da maior importância para os petroleiros; por isso evitam que eles se escapem pelo furo; se o gás se escapa, lá se vai a pressão e o petróleo não subirá por si mesmo; terá de ser puxado por meio de bombas aspirantes. Depois de rasgado o primeiro furo na capa impermeável da jazida de petróleo, abrem-se outros perto; a capa vai ficando toda furadinha e por todos os furos sai o petróleo. Desse modo os petroleiros aumentam a produção do campo. Se um poço dá 1.000 barris por dia, abrindo outro eles obtêm 2.000; e assim por diante, até que a pressão dos gases diminua e a saída do petróleo esmoreça. O poço mais violento é sempre o primeiro; os abertos nas proximidades já encontram o leão sossegado, porque a pressão do gás diminuiu com a abertura do primeiro.

— E como os poços acabam? — quis saber Pedrinho.

— Acabam como tudo na vida — e até como as aulas — respondeu o Visconde com os olhos no relógio. Eram quase 9 horas.

Todos se levantaram. Tia Nastácia, que dormira o tempo inteiro, ainda estava nos peixes; e certa de que o Visconde só falara de peixes fósseis, retirou-se resmungando:

— Peixe, peixe seco, peixe podre. Para que serve isso? Peixe há de ser pescado ali na horinha. Bobagem...

 

CAPÍTULO 5: MAIS PETRÓLEO

— Onde ficamos ontem? — perguntou no serão seguinte o grande geólogo.

— Estávamos no esgotamento dos poços — lembrou Pedrinho.

— Sim. Tudo se acaba neste mundo. Os poços de petróleo, por muito que produzam, em dado momento começam a morrer. Vão dando menos, menos, e por fim têm que ser abandonados; o óleo que sai já não compensa o trabalho de bombear. Mas o fato de os poços secarem não quer dizer que o campo petrolífero esteja extinto. Quer dizer apenas que saiu todo o petróleo que podia sair na vertical. A experiência demonstra que o petróleo vazado pelos poços corresponde de 15 a 35 por cento do que existe armazenado na jazida.

— Só? — exclamou Pedrinho. — Então a maior parte fica no fundo?

— Fica. No fundo ficam de 65 a 85 por cento do petróleo existente.

— E o homem nada faz para conseguir esse petróleo?

— No começo ninguém cuidava disso. Abriam novos campos petrolíferos, depois de abandonar os velhos. Mas a Alemanha teve ideia de furar galerias como as usadas nas minas de carvão-de-pedra, para arrancar o petróleo que se recusa a sair pelos poços. Durante a Guerra Mundial a escassez do petróleo fez que os alemães recorressem a esse processo na Alsácia — e o caso foi que conseguiram extrair bastante petróleo. Também os argentinos andam querendo empregar o processo de galerias em Comodoro Rivadávia, onde os poços produzem cada vez menos. Só depois de usadas as galerias que se pode dizer que um campo de petróleo está esgotado.

— E quanto tempo dura um poço?

— Varia muito. Cada poço tem a sua duração determinada pela quantidade de petróleo que há embaixo, pela pressão dos gases e pela quantidade extraída. Há poços que produzem durante dias apenas. Outros, durante semanas. Outros, durante meses. Outros, durante anos. Um poço que dura dez anos já é de primeira ordem, embora haja poços até de quarenta anos.

— E quanto produz um poço, em média? — quis saber Pedrinho.

— Também varia muito. Uns começam produzindo apenas litros por dia; outros jorram milhares de toneladas por dia. Em 1934 os russos abriram em Lok Batan, perto de Bacu, um que rompeu com mais de 20 mil toneladas por dia! Mas esses poços muito ricos são exceções. Poços que começam com 15 barris diários já recebem grau 10, e poços de 100 barris são excelentes. É só pegar num papel e fazer a conta de quanto rende um simples poço de 100 barris por dia.

— Rende 3 mil por mês ou 36 mil barris por ano — gritou Narizinho, a campeã do cálculo mental. — E qual o preço do petróleo bruto, como sai do poço?

— Pode botar aí uns 30 cruzeiros — respondeu o Visconde — e Narizinho imediatamente "cantou":

— Um milhão e oitenta mil cruzeiros por ano. Ótimo. Eu com um pocinho assim já virava baronesa do petróleo.

— Pois se me aparecesse um poço só de 100 barris por dia eu nem ligava — gritou Emília. — Só quero saber de poços de 10 mil para cima. Não me sujo com petrolinhos vagabundos...

Todos riram-se duma coitada que nunca soube nem como gastar o tostão novo que tinha nos seus guardados.

— E quanto petróleo se produz hoje no mundo, Visconde? — indagou Pedrinho.

— Muito. Um colosso. Só os Estados Unidos produzem um bilhão de barris por ano.

— Um bilhão? Puxa! Mil milhões! Mil pilhas de um milhão de barris cada uma! E tudo isso em consequência do tal pocinho do Coronel Drake...

— Sim. Foi desse pocinho que brotaram todas essas pilhas de milhões; como será do primeiro pocinho aberto no Brasil que vai brotar o milhão de poços que teremos um dia. Por que não? O Brasil tem o mesmo tamanho dos Estados Unidos. Se ainda está dormindo, um dia há de acordar — e então...

Emília bateu palmas.

— Viva! Viva! Vamos acordar o Brasil! Rompemos aqui o primeiro poço e pronto — está acordado o Brasil. Viva! Viva!...

— O Brasil poderá suceder aos Estados Unidos na produção do petróleo — disse o Visconde, que apesar de simples sabugo, raciocinava melhor que os milhões de rabanetes bípedes que andam por aí negando o petróleo. — Teremos o poço nº 1 aqui no sítio e o nº 2 no Riacho Doce, em Alagoas, onde os trabalhos estão muito adiantados. E a seguir teremos lá mesmo mais outros, mais dez, mais cem — quinhentos poços! E a febre do petróleo pegará no Brasil inteiro, que nem gripe, e começarão a aparecer poços por toda parte. Surgirão os de Mato Grosso, tremendos, de dezenas de milhares de barris por dia, como no México. E surgirão os poços de Goiás. E os de São Paulo. E os do Paraná. E os da Bahia. E os do Espírito Santo. E os do Rio Grande do Sul. E os de Minas... Tudo depende da abertura do primeiro.

— Coçar e tirar petróleo vai só do começar — sentenciou Emília.

— Sim. Nos Estados Unidos o Coronel Drake abriu o primeiro poço na Pensilvânia — e os rabanetes de lá disseram que só na Pensilvânia havia petróleo. Mas como novos Drakes furaram em outros pontos, aqueles país está hoje a tirar petróleo nos Estados do Texas, da Califórnia, do Arkansas, do Colorado, de Illinois, de Indiana, de Kansas, do Kentucky, de Montana, de Michigan, de Nova Iorque, do Ohio, de Oklahoma, da Virgínia e do Wyoming. E com a continuação dos trabalhos, ainda acabam descobrindo petróleo em muitos outros Estados. Tudo, por quê? Porque o Coronel Drake teve a coragem de começar.

— Eu por mim começava a nossa perfuração amanhã mesmo — disse Pedrinho, já aflito por ver o petróleo jorrar.

— Inda é cedo — respondeu o Visconde. — Por enquanto vocês só sabem um pedacinho do petróleo — têm que aprender muito mais.

— Que mais?

— Oh, tanta coisa... Têm de aprender que as reservas do petróleo dos Estados Unidos começam a aproximar-se do fim. O consumo é tremendo. Isso de extrair da terra um bilhão de barris por ano tem limite. Por maiores que as reservas sejam, um dia se acabam — e as reservas americanas estão se acabando. Há lá um Instituto do Petróleo que só trata de estudos petrolíferos. Esse instituto publicou há pouco tempo um cálculo, provando que as reservas americanas conhecidas não passam de 12 bilhões e 177 milhões de barris. Ora, para um país que extrai um bilhão por ano isso quer dizer petróleo para doze anos.

— Reservas "conhecidas"... — observou Pedrinho.

— Sim, haverá as desconhecidas, as que ainda serão descobertas — mas serão descobertas? Haverá ainda por lá grandes reservas ignoradas? Ninguém pode responder. O que se sabe é que as "reservas conhecidas" estão no fim — e quando se acabarem, os Estados Unidos terão de comprar petróleo fora, como hoje compram café e borracha. O Brasil, pois, deve ir se preparando para fornecer petróleo para os Estados Unidos, depois de abastecer-se a si próprio.

— Que colosso!

— Realmente. No dia em que tal acontecer e o Brasil passar de comprador a vendedor de petróleo, então deixaremos de ver essa coisa tristíssima de hoje — milhões de brasileiros descalços, analfabetos, andrajosos

— na miséria. O Brasil tem todos os elementos para tornar-se um país riquíssimo — mas riquíssimo de verdade, e não, como hoje, apenas rico de "possibilidades" — ou de "garganta."

— Bravos, Visconde! — exclamou Dona Benta. — Nem parece que é um sabuguinho que está falando.

— Pudera! — gritou Emília. — Num país onde até os ministros não pensam em petróleo, ou quando falam nele é para negar, só mesmo dando a palavra a um sabugo. Viva o Senhor Visconde do Poço Fundo!

O sabugo geológico agradeceu as homenagens e continuou. Apesar de brotado de um pé de milho, ele amava a terra que produziu esse pé de milho.

— Sim, havemos de crescer e aparecer. Havemos de tirar petróleo aos milhões de barris. Havemos de exportar petróleo para todos os países, e de queimá-lo aqui em quantidades tremendas, para matar a nossa maior inimiga, que é a Distância. Abaixo a Distância! Viva o matador da Distância!

— Viva! Viva! — berraram todos.

— Visconde — advertiu Narizinho — petróleo é combustível e Vossa Excelência está pegando fogo. Sossegue um pouco e continue com a lição. Diga-me quantos litros de petróleo tem um barril. O Visconde tomou fôlego, serenou o ânimo e respondeu calmamente:

— Barril é a medida de petróleo que os americanos adotaram desde o começo. Equivale a 42 galões.

— E quantos litros têm esses galos grandes? — perguntou Emília.

— Um galão tem 3 litros e 785 centímetros cúbicos. Logo, um barril tem isso multiplicado por 42 — ou sejam 159 litros. Aqui no Brasil precisamos nos acostumar desde já a medir o petróleo decimalmente — aos litros, aos metros cúbicos, como fazem os argentinos. Isso de barril e galão e tantas outras medidas populares dos países que não seguem o sistema métrico decimal, que é, Emília?

— É besteira! — gritou a boneca.

— Emília, as professoras e os pedagogos vivem condenando esse seu modo de falar, que tanto estraga os livros do Lobato. Já por vezes tenho pedido a você que seja mais educada na linguagem.

— Dona Benta, a senhora me perdoe, mas quem torto nasce, tarde ou nunca se endireita. Nasci torta. Sou uma besteirinha da natureza — ou dessa negra beiçuda que me fez. E, portanto, ou falo como quero ou calo-me. Isso de falar como as professoras mandam, que fique para Narizinho. Pão para mim é pão; besteira é besteira — nem que venha da Inglaterra ou dos Estados Unidos. Cá comigo é ali na batata.

Dona Benta suspirou. Impossível domar aquela pequena selvagem...

— Continue, Visconde — disse ela em tom resignado.

— O petróleo é muito novo — prosseguiu o geólogo. — Não tem um século de vida, pois praticamente começou em 1859 com o poço do Coronel Drake. Quando o petróleo apareceu em cena, o grande combustível era o carvão-de-pedra. E talvez que quando o petróleo acabe tenhamos de voltar ao carvão-de-pedra, muito mais abundante na natureza. Mas a culpa do petróleo acabar depressa vai caber aos americanos. Tiram petróleo demais; gastam-no demais. Quantos milhões de anos não levou a natureza para fabricar cada bilhão de barris que eles extraem anualmente? Nem tem conta. O petróleo é filho do sol, como também o carvão-de-pedra. O sol é a fonte da vida e, portanto, a fonte da matéria orgânica que gera o petróleo. Logo, o petróleo é sol — são os raios dum sol de milhões de anos atrás que ficaram entesourados no seio da terra. Os homens, esses engenhosos bichinhos, furam o chão e desenterram os raios de sol líquido. E os reduzem a gasolina, a querosene, a óleo combustível, a óleo lubrificante, a parafina, a supergás, a quase 300 produtos diferentes. Até perfumes eles tiram do petróleo bruto. E com esses ingredientes operam-se prodígios — sobretudo em matéria de transportes. Continuamente, pelo mundo inteiro, milhões de baratinhas metálicas, chamadas automóveis, percorrem os caminhos e as ruas em todas as direções. Cada vez mais o céu se enche das gigantescas aves mecânicas, chamadas aviões. Por cima dos mares correm aos milheiros os navios tocados a petróleo. Pelo seio das águas sulcam os submarinos movidos a petróleo. Por toda parte fábricas e mais fábricas rodam sem parar, graças à força do petróleo. O petróleo transformou-se no motor do mundo.

— Por quê?

— Porque não passa de energia mecânica sob forma líquida, facilmente transportável para todos os pontos da terra. Que é uma caixa de gasolina? São milhares de calorias enlatadas. Cada litro de petróleo, quando queimado, produz 12 mil calorias — muito mais que o carvão-de-pedra, a lenha e todas as coisas de queimar. Colocado num motor, esse petróleo se transforma em energia mecânica, a serviço de todos os trabalhos do homem — para puxar carros, para mover navios ou aviões, para levantar pesos nos guindastes, para movimentar as mil máquinas das fábricas, para tudo quanto o homem faz com o fogo ou com as pequeninas explosões dos gases. Vale, portanto, muito mais que a força elétrica.

— Por quê?

— Por que a força elétrica só é utilizável nas redondezas da usina que a produz; e a força mecânica do petróleo fica presa dentro das latas e pode ser transportada para qualquer ponto do mundo — até aos polos. E lá é só abrir a lata e pronto — está ali uma forte quantidade de energia a serviço do homem. Como fazer isso com a eletricidade? De nada nos vale aqui no sítio a força elétrica do Niágara, mas no entanto até petróleo de Bacu Dona Benta já tem consumido neste lampião da sala.

O raio de ação da eletricidade é de poucos quilômetros; o raio de ação do petróleo não tem limites.

— Viva o petróleo! — berrou a Emília. O Visconde continuou.

— O grande valor do petróleo é aliar-se ao ferro para aumento da eficiência do homem.

— Que história de eficiência é essa? — quis saber Narizinho.

— Muito simples. O homem começou sua vida na terra dispondo só duma força — a força dos seus músculos — como ainda acontece com todos os outros animais. À medida, porém, que foi aprendendo a utilizar-se de outras energias da natureza (como os músculos do cavalo e do boi, as quedas de água, a força do vento, a força do vapor, a força da eletricidade, a força do petróleo), o homem foi aumentando a sua eficiência, isto é, a sua capacidade de fazer coisas. Ajudado apenas dos seus músculos, um homem pode pouco. Para ir daqui até à venda do Elias Turco tem de dar seis mil passos, gastando nisso uma hora — se houver caminho bom. Aumentado com as quatro pernas dum cavalo, já esse mesmo homem faz o percurso em vinte minutos.

— Isso, na andadura — disse Pedrinho. — No galope eu vou até lá em muito menos. São só três quilômetros.

— E se em vez de ter a sua eficiência aumentada pelas quatro pernas do cavalo, você a tiver aumentada pelas quatro rodas dum automóvel? — perguntou o Visconde.

— Nesse caso vou até lá em três minutos sem chispar muito.

— E se a sua eficiência for aumentada pelas asas dum avião?

— Ah, num avião eu chego até o Elias em segundos.

— Pois aí está o que é eficiência. Graças ao concurso do cavalo, do automóvel ou do avião, o homem, que a pé vai daqui até lá numa hora, passa a ir em vinte minutos, em três minutos ou em segundos. Mas note que é o petróleo o que mais aumenta a eficiência do homem, em matéria de velocidade — o petróleo conjugado ao ferro. O mundo ficou pequeno depois que o petróleo veio mover as máquinas que o homem constrói com o ferro. Por isso vivo dizendo que sem produzir ferro e tirar e queimar petróleo em grandes quantidades, como os Estados Unidos, o Brasil não ganhará impulso — não sairá do buraco da opilação econômica em que se atolou. O brasileiro está com a sua eficiência muito reduzida porque quase que só dispõe da força dos seus músculos, dos do boi e do cavalo. Por toda essa vastidão de território o meio de transporte mais comum é ainda o carro de boi e as tropas de burros. Ora, tudo na vida é transporte, logo, enquanto não aumentarmos a nossa eficiência por meio de máquinas, não resolveremos o nosso problema do transporte rápido e barato; e, pois, permaneceremos um país encarangado.

— Lá isso é verdade — disse Pedrinho. — Para mandar à cidade o seu café o Coronel Teodorico usa o carro de boi; cada carrada só leva 40 arrobas e gasta um dia inteiro para chegar lá e outro para voltar. Com um caminhão-automóvel ele levaria 200 arrobas em duas horas de viagem...

— Isso mesmo! Eu, se pudesse, pegava num martelo e embutia na cabeça de todos os brasileiros estas palavras: O ferro é a matéria-prima da máquina, e o petróleo é a matéria-prima da melhor energia que move a máquina. E como só a máquina aumenta a eficiência do homem, o problema do Brasil é um só: produzir ferro e petróleo para com eles ter a máquina que aumentará a eficiência do brasileiro. Tudo mais é bobagem.

— Mas muitos acham que com uma nova revolução as coisas endireitam — disse Narizinho. — Com uma nova forma de governo...

— Bobagem. Uma nova forma de governo, seja qual for, não passa duma nova distribuição das coisas existentes. Mas as coisas existentes são escassas demais. Nada adianta tirar o prato de feijão de A para dá-lo a B; pois B, que estava morrendo de fome, enche a barriga, mas A, que estava com a barriga cheia, começa a passar fome. Para o país é indiferente que A ou B seja o condenado a passar fome. O que o país precisa é que nem A nem B passem fome — e o meio, portanto, não é mudar de forma de governo: é aumentar a comida da gamela, de modo que A e B possam encher a barriga. É aumentar a riqueza — coisa que só conseguiremos aumentando a eficiência do homem por meio de ferro, matéria-prima da máquina, e do petróleo, matéria-prima da melhor energia que move a máquina.

— Pois vamos tirar o petróleo, Visconde! — gritou Pedrinho entusiasmadíssimo. — Pegue numa picareta e me acompanhe.

O Visconde riu-se.

— Bobinho! Como quer tirar petróleo, se, ainda nem sabe como se escolhe o ponto onde abrir um poço?

— Então conte logo isso, que estou ardendo por abrir lá perto da porteira um poço de mil barris por dia.

— Mil barris!... — exclamou Emília com focinho de pouco caso — e deu uma cuspidinha de desprezo.

— Vou contar, sim — continuou o Visconde — e esta parte é muito importante. Saber onde se deve abrir um poço é meio caminho andado para tirar petróleo. Se o poço for aberto em lugar mal escolhido, não dá coisa nenhuma — e os petroleiros ficam de cara à banda, a olharem-se uns para os outros, muito desapontados. Um poço, meu caro Pedrinho, custa grande trabalho e bom dinheiro. Saiba disso.

Pedrinho, que nunca havia pensado na parte financeira do negócio, abarroceu-se. Maçada! A pior coisa da vida é o tal negócio do dinheiro. Tudo custa dinheiro, tudo exige dinheiro — e onde o dinheiro? Dona Benta vivia a cabo curto, sem dinheiro para nada — e as demais pessoas do sítio ainda tinham menos que ela. Pedrinho só possuía dez cruzeiros no cofre. Narizinho, uma nota de cinco. Emília, apenas aquele célebre tostão novo. E o Visconde, apesar de visconde, era o fidalgo mais pobre do mundo. Nunca chegou nem a ver a cara dum vintém furado.

— Como vai ser? — perguntou Pedrinho voltando-se para Narizinho. — Como iremos abrir o nosso poço, se estamos completamente limpos de capitais?

— Isso é lá com você que é homem — respondeu a menina. — Dinheiro é assunto masculino — arrume-se.

Pedrinho começou a pensar — e estaria até agora pensando, se Emília não resolvesse o problema com a maior facilidade.

— Ora a grande coisa! — disse ela. — Nada mais simples. Aplica-se o "faz-de-conta" e logo aparece tudo quanto precisarmos — sondas, verrumas de perfurar, tubos de encanamentos, tatus perfuradores — e até petróleo! Você bem sabe que não há o que resista ao faz-de-conta...

Pedrinho suspirou murmurando:

— É. Só assim...

— Pois vamos lá, senhor geólogo. Continue.

— Amanhã — respondeu o sábio. — Lá vem vindo tia Nastácia com as pipocas — essas inimigas das aulas...

Era verdade. Tia Nastácia vinha entrando com uma peneira de pipocas.

— Vivam as pipocas geológicas de tia Nastácia! — berrou Emília.

— Deixe de brincadeiras com os velhos e trate de encher o papo, sua sapeca! — ralhou a negra.

Estavam da pontinha as pipocas de tia Nastácia, de modo que todos se atiraram à peneira, concordando lá por dentro que se o Visconde era um sábio interessante, tia Nastácia era interessantíssima quando o arrolhava com pipocas.

 

CAPÍTULO 6: TRABALHOS DE CAMPO

No dia seguinte a impaciência de Pedrinho chegou ao auge. Aquilo de ficar uma parte da noite sentado, a ouvir as preleções do Visconde, não era com ele. Queria pôr mãos à obra, abrir logo o poço salvador da pátria.

— O coitado do Brasil cansado de esperar petróleo e este cacetíssimo Visconde a nos injetar noites e noites de ciência! Não quero mais. Chegou o momento de começarmos o poço.

— Mas, como, Pedrinho, se ainda quase nada sabemos de geologia? — objetou a menina.

— Muito bem. Vamos começar o trabalho e o Visconde nos vai ensinando. Lições ao ar livre — fazendo.

É fazendo que o homem aprende, não é lendo, nem ouvindo discursos. Eu quero ciência aplicada...

— Ali na batata! — gritou Emília que vinha entrando. — Também penso como Pedrinho. Quero começar o poço já.

O Visconde apareceu com a geologia debaixo do braço.

— Escute, senhor geólogo — disse Pedrinho. — Basta de aulas. Fizemos greve. Queremos começar o poço já, já, está ouvindo?

O sabuguinho científico arregalou os olhos.

— Homessa! Como podem pensar em perfuração antes de terem adquirido uma boa base geológica?

— Do modo mais simples. Damos começo ao trabalho e Vossa Excelência nos vai ensinando pelo caminho, proporção que os problemas aparecerem.

— Isso mesmo — berrou Emília. — Paz de conta que já sabemos a geologia inteira.

O Visconde cocou a cabeça; mas como era greve, teve de concordar.

— Pois seja — disse ele. — Serão aulas ao ar livre. Começaremos com o estudo geológico dos terrenos do pasto.

— Ótimo! — exclamou Pedrinho — e correu a preparar-se. Voltou de perneiras e chapéu de cortiça — vestuário de engenheiro-geólogo.

— Pronto! Podemos partir.

Foram todos. Depois de passada a porteira e de correr os olhos pelo pasto da vaca Mocha, Pedrinho ficou atrapalhado. Só via capins e capões de mato. Que fazer? Quem não sabe é o mesmo que ser cego. Pedrinho geólogo, sentiu-se totalmente cego.

— E agora, Visconde? Por onde começamos? O sabuguinho geológico tossiu e respondeu:

— Antes de cuidarmos da abertura de um poço, temos de escolher o lugar mais propício. Essa escolha é tudo. Se erramos, babau! Lá se vai tudo quanto Marta fiou. Mas se acertamos, podemos contar com um belo jorro de petróleo. E para escolher o ponto adequado havemos de recorrer à ciência deste livrinho — concluiu ele batendo uma palmada na geologia. — Aqui está tudo.

— Como se faz praticamente? — inquiriu Pedrinho.

— Assim. Pede-se a um geólogo que examine o terreno, estude as rochas aflorantes, isto é, as rochas que aparecem em certos pontos da superfície e as relacione com as que aflorem em outras pontos. Isso para ver se estamos em cima dum anticlinal.

Pedrinho olhou desanimado para a pastaria verde.

— Mas como estudar rochas com este raio do capim-gordura a esconder a terra inteira?

— Temos de procurar barrancos, margens de rios, morros com perambeiras ou boçorocas — pontos onde a terra esteja esfuracada e despida de vegetação. Só aí encontraremos rochas a descoberto.

— Pois vamos a isso, então.

A um quilômetro dali havia um morro com grande desbarrancado — a "barreira", como se dizia no sítio. O Visconde levou-os para lá. Diante da barreira, parou e sorriu.

Os meninos entreolharam-se. Não compreendiam que o Visconde encontrasse matéria para sorriso num barranco feio como todos os mais.

— Que gosto é esse, Visconde? — perguntou Emília.

— Ah, o sorriso que tenho nos lábios é um sorriso geológico — o sorriso de quem sabe, olha, vê e compreende. Este barranco é para mim um livro aberto, uma página da história da terra na qual leio mil coisas interessantíssimas.

— É um dos barrancos mais lindos que já vi — continuou o sábio. — Observem atentamente estas superposições de camadas. Temos aqui uma série de camadas paralelas. Estão superpostas, isto é, uma em cima da outra, e são constituídas de rochas diferentes.

— E que tem isso?

— Tem um colosso de coisas. Tem, em primeiro lugar, que são camadas de rochas sedimentárias, produzidas por depósitos formados no fundo d'água.

— Fundo d'água? Pois o sítio de vovó já foi fundo d'água?

— Claro que sim, Pedrinho. Leio isso neste barranco. Temos cá uma camada de pedregulho, ou pedras que se foram fragmentando e rolando no fundo dos rios até ficarem sem arestas; depois se depositaram em qualquer fundo de água sem correnteza. Mas notem que estes pedregulhos já não estão soltos, como os de fundo de rio. Estão grudados uns aos outros, soldados, cimentados entre si.

— Com que cimento? — quis saber Narizinho.

— Evidentemente um cimento calcário — respondeu o Visconde. — Os calcários dissolvem-se na água; mas a cal da água vai se depositando entre as perninhas até que as liga, tal qual o pedreiro liga os tijolos com o reboco. E sabem como se chama uma rocha assim, feita de pedaços de rocha cimentados entre si?

Ninguém sabia.

— Chama-se um conglomerado — explicou o Visconde. E apontando para a camada que ficava em cima daquela: — E esta rocha aqui também não deixa de ser um conglomerado, apesar de ter o nome de arenito. É composta de areia com os grãozinhos igualmente soldados entre si por um cimento qual quer. Reparem que forma uma rocha um tanto quebradiça.

Pedrinho havia destacado um fragmento do arenito, que andou de mão em mão.

— É mesmo — disse Narizinho, quando chegou sua vez de examiná-lo. — Vê-se perfeitamente que é formado de grão de areia.

— Pois é outra rocha sedimentária — explicou o Visconde — e está na ordem normal em que os sedimentos se depositam. Primeiro, os pedregulho; depois, as areias, que são mais leves; e sobre as areias as argilas, esse pó de rocha mais leve que tudo e que fica boiando na água mais tempo.

— E esta dura e preta aqui, Visconde? — perguntou a menina tentando quebrar um pedaço de rocha muito irregular que se intrometia pelas camadas.

— Oh, isso já não é rocha sedimentária — é uma rocha vulcânica. Já expliquei que as rochas vulcânicas são derrames das pedras derretidas pelo calor central, que saem pela boca dos vulcões ou se intrometem pelas rochas sedimentárias.

— São vômitos então — disse Emília com cara de nojo, cuspindo.

— Reparem que esta rocha cinzenta e tão dura não está em forma de camada, como as outras. Não é um produto da sedimentação. O que fez foi introduzir-se a muque pelas camadas de rocha sedimentária adentro. Chama-se a isto uma intrusão.

— Sim. Esta intrusão veio debaixo para cima, numa vertical, rompeu as camadas de sedimento, quebrou-as — o que prova que é mais moça, ou que chegou por último.

— Por quê?

— Porque só poderia fazer o que fez se encontrasse aqui as camadas sedimentárias já formadas. Nada mais lógico.

— E a rocha orgânica, Visconde? Haverá por aqui alguma? — quis saber a menina.

O Visconde correu os olhos pelo barranco.

— Não há nenhuma. Creio que no sítio só poderemos encontrar rocha orgânica no fundo daquele brejo dos guembés, que seca nos meses de seca. Há de haver lá turfa, que é uma rocha orgânica formada pela transformação de vegetais enterrados.

Depois de bem vistas e revistas as rochas do barranco, o Visconde levou-os para outro ponto, dizendo:

— Notem que as camadas, que começavam horizontais, estão agora a subir numa leve inclinação. Ora, como nasceram horizontalmente (porque toda sedimentação é horizontal), se estão subindo foi porque uma pressão debaixo para cima, ou uma compressão dos lados, as fez subir.

— Um parigato — explicou Emília, e Narizinho quis saber que pressão fora aquela.

— Não sei — disse o Visconde. — Talvez do tempo em que a crosta da terra começou a resfriar-se e encolher-se. Formou-se aqui uma ruga.

Caminharam um pouco mais.

— Notem — ia dizendo o Visconde — que as camadas vão subindo sempre, e sempre paralelas. Quer dizer que quando sofreram a pressão já estavam formadas e arrumadinhas umas sobre as outras.

Caminharam mais uma dezenas de metros.

— Olhem que lindo! — exclamou o Visconde, detendo-se. — Há aqui uma belíssima falha.

— Que é?

— Prestem atenção. As camadas sofreram neste ponto um desastre sério. Partiram-se e o lado de lá afundou, escorregou para baixo.

— É mesmo! — gritou Pedrinho. — Ficaram desencontradas. A camada de argila desceu ao nível da camada de pedregulho... Que engraçado...

— Pois é isto que os geólogos chamam uma falha, fenômeno que tem muita importância, quando se fazem estudos para petróleo.

Nisto Narizinho, que se adiantara, gritou:

— Corra, Visconde! Venha ver uma curiosidade. As camadas sofreram aqui uma tal reviravolta que até ficaram de pé.

Emília foi a primeira que chegou lá.

— Chi! Que catástrofe horrível. Estão depezinhas como paus de lenha no lenheiro de tia Nastácia.

O Visconde explicou:

— Este fenômeno é muito frequente. Nas convulsões que a crosta da terra sofreu, as camadas que vêm vindo na horizontal, ou levemente inclinadas, sofrem muitas vezes destas reviravoltas. Mais adiante é possível que de novo apareçam na mesma inclinação com que vinham vindo.

E assim foi. Cem metros adiante as camadas voltavam a ter a mesma inclinação do começo.

Terminado o estudo do barranco, o Visconde disse:

— Muito bem. Temos agora de examinar aquele corte da estrada que vai para a fazenda do Coronel Teodorico.

— Para quê?

— Para ver se as camadas de lá têm correspondência com estas. Se tiverem, poderemos tirar algumas deduções interessantes.

O tal corte da estrada ficava bem longe dali — a uns três quilômetros. O Visconde foi explicando pelo caminho:

— Se as camadas do corte corresponderem às do barranco e estiverem com a direção mudada, isto é, se se inclinarem para baixo em vez de irem subindo, isso provará que este campo já foi montanha.

— Montanha, aqui nesta planície, Visconde?

— Sim. Pode ter sido uma grande montanha que a Erosão destruiu. Lá no barranco vemos que a Erosão continua no seu trabalho de destruir o morro. Cada ano o barranco está maior, e daqui a uns séculos quem passar por aqui já não encontrará mais morro nenhum.

— As chuvas, as enxurradas levam a terra do morro para o Ribeirão do Caraminguá; o Caraminguá a leva ao Rio Paraíba; e o Paraíba a leva para S. João da Barra, onde a despeja no Oceano Atlântico.

— Que desaforo! — exclamou Narizinho. — Então a terra deste morro de vovó vai parar em São João, lá no Estado do Rio? Mas isso é uma ladroeira...

— A Erosão e os rios mudam a face da terra, transportam as rochas dum ponto para outro sem o menor respeito aos proprietários do solo. Dona Benta que perca o amor a este morro. A maior parte já foi reduzida a areia e carregada para longe; o resto irá também, não tenham disso a menor dúvida.

Chegaram ao corte da estrada. O rosto do Visconde iluminou-se.

 

 


— Exatamente o que eu esperei! — disse ele ao examinar o corte. — As camadas que estudamos no barranco têm sua continuação aqui. Cá está a camada de arenito, e a de conglomerado, e a de argila, com a única diferença da direção. No barranco as camadas subiam; aqui descem. Isto prova o que imaginei: estamos em cima dum anticlinal já em grande parte destruído pela erosão.

— Que engraçado! — exclamou Pedrinho. Agora compreendo o riso do Visconde depois que deu para estudar Geologia. Como tudo se esclarece! Como fica interessante! Aquele barranco e este corte nunca me fizeram vir à cabeça a menor ideia. Agora já me falam, dizem coisas, contam pedaços da vida da terra. Que engraçado!...

— Pois é isso, Pedrinho. Para o geólogo, o chão, os barrancos, as buraqueiras, as perambeiras, as boçorocas, as ravinas, as margens dos rios, os cortes das estradas de ferro, tudo são páginas do livro da natureza, onde ele lê mil coisas que jamais passaram pela cabeça dos ignorantes.

— Que gostoso é saber, hein, Narizinho?

— Nem fale, Pedrinho. Cada vez tenho mais dó dos analfabetos.

— Muito bem — disse o Visconde. — Isto aqui está provado que é um anticlinal. O barranco lá longe e este corte aqui nos permitem verificar a correspondência das camadas e sua inclinação. Mas a Erosão destruiu o alto do anticlinal; só deixou as encostas. O barranco lá e o corte aqui estão nas encostas do anticlinal destruído. Temos agora de nos dar conta de uma coisa: as camadas geológicas são como as capas das cebolas de cabeça. Há sempre uma debaixo da outra, de modo que ainda que não estejamos vendo, podemos, por um esforço de imaginação, figurar as camadas que não foram destruídas pela erosão e continuam bem arrumadinhas debaixo desta terra, até bem no fundo, onde não há mais rochas sedimentárias porque já é o cristalino.

— Que cristalino é esse?

— O cristalino é um modo de tratar as rochas ígneas que estão sempre por baixo, servindo de alicerce às camadas sedimentárias. Se fizermos aqui um buraco, iremos indo, indo sempre a furar sedimentos, até chegarmos à rocha ígnea, ou cristalina.

— Sei — disse Pedrinho. — Até alcançarmos as rochas que ainda hoje estão como eram no começo do mundo, quando a crosta ainda não estava modificada pela erosão.

— Isso mesmo. O trabalho da erosão é superficial. O fundo ela não toca.

— Bem feito! — exclamou Emília, que já estava a implicar-se com a grande destruidora.

— Pois eu queria ver como é uma dessas rochas do fundo, que nunca foram bulidas pela erosão.

— Muito fácil — respondeu o Visconde. — O granito, que você conhece, é uma delas. Os movimentos da crosta (os movimentos orogênicos, como dizem os sábios), trazem à superfície, em muitos pontos, bocados dessas rochas, que embora atacadas pela erosão ainda se acham em grande parte intactas. As pedreiras donde se extraem os paralelepípedos de calçar ruas são rochas ígneas lá do fundo que subiram até à superfície.

— Trazidas pelos vulcões?

— Não. As rochas que os vulcões trazem são muito diferentes do granito. O granito também esteve derretido, mas esfriou no fundo, fora do contato com o ar — por isso é diferente das rochas vulcânicas.

— Nesse caso não pode haver petróleo nessas rochas ígneas — observou Pedrinho.

— De fato não há. Petróleo só aparece nas rochas sedimentárias. Se por acaso alguém encontrar petróleo numa rocha ígnea, é que o petróleo foi para lá, não que tenha nascido lá. O petróleo emigra muito; forma-se num lugar e muda-se para outro.

— Obra do eterno parigato — observou Emília.

— Isso mesmo. As pressões subterrâneas fazem que ele, que é líquido, mude de casa quando começam a comprimi-lo demais no ponto em que se formou.

— E o petróleo é encontrado assim liquidozinho como sai dos poços? — perguntou a menina.

— Não. O petróleo não existe solto, em lagoas subterrâneas, como muita gente pensa. Existe espalhado entre os vãozinhos das areias ou de outras rochas porosas. Os geólogos dizem camadas portadoras. Uma camada portadora tem que ser porosa, isto é, ter vãozinhos onde o petróleo se acomoda. Se a camada não é porosa, ele não encontra espaço onde alojar-se. Por isso essas camadas de argilas só ajudam o petróleo dum jeito: formando as capas impermeáveis que não o deixam fugir.

Pedrinho estava pensativo. Por fim falou:

— Uma coisa anda me preocupando, Visconde — disse ele. — Estou vendo que os tais estudos geológicos só são possíveis quando há muitos barrancos e buracões. E quando não há nada disso? Quando o terreno é todo uma planície imensa, recoberta de vegetação?

— Bom, aí o geólogo não pode ver nada e portanto não pode tirar conclusões. Tem de "pedir água."

— A quem?

— À Geofísica.

— Que é isso?

— Geofísica é a ciência de ver. apalpar, medir as rochas que estão lá no fundo.

— Ver, como, se estão lá no fundo?

— Ver é um modo de dizer. Em vez de vez eu devia ter dito adivinhar. A Geofísica consiste na aplicação de uns tantos princípios da Física, por meio dos quais os sábios adivinham o que não podem ver, nem apalpar. Espécie de Raio X do fundo da terra. Os Raios X nos permitem ver alguma coisa através dos corpos opacos. A Geofísica também nos permite estudar uma porção de coisas lá no fundo.

— Que coisas, por exemplo?

— Permite-nos, por exemplo, saber até que profundidade vão as camadas de rochas sedimentárias.

— E tem importância isso?

— Muita. Se em certo ponto a massa de rochas sedimentárias é muito grande, ou vai até muito fundo, está claro que poderá conter muito mais petróleo do que numa camada menos possante, ou menos espessa.

— E que mais?

— Também permite descobrirmos anticlinais e domos de sal.

— Que é isso?

— Domos de sal são grandes acúmulos de sal de cozinha que em muitos pontos se erguem e empurram as camadas sedimentárias para cima. Nas encostas desses domos de sal acumula-se quase sempre o petróleo. A Geofísica permite descobrir tais domos e determinar certinho a área que eles ocupam.

— E que mais?

— Muita coisa mais, como, por exemplo, determinar as falhas existentes num campo petrolífero. E determinar as intrusões de rochas ígneas. E verificar se os gases de petróleo chegam até à superfície. Muita coisa. A Geofísica é uma ciência de tal modo preciosa para os petroleiros que sem ela eles não dão um passo. Antes de começar um poço mandam fazer o estudo geológico do terreno; depois mandam fazer o estudo geofísico; só então furam. E por isso estão furando hoje com muitíssimo mais acerto do que antigamente.

— Erravam muito antigamente?

— Nem fale! Em cada cem poços abertos nos Estados Unidos, parece que só três alcançavam o petróleo. Era o mesmo que dar tiro sem pontaria, ou de olhos fechados. Está claro que às vezes matavam algum passarinho — por acaso...

— E hoje?

— Ah, hoje tudo mudou. Só dão tiro com pontaria. O número de poços que os petroleiros perdem reduziu-se enormemente. Os primeiros estudos geofísicos sérios que tivemos no Brasil foram feitos no Riacho Doce, em Alagoas. Há lá um petroleiro chamado Edson, e um governador de Estado, de nome Osman, que até merecem estátuas de ouro! Graças a eles, o Brasil começou a estudar petróleo a sério, cientificamente, com vontade de achar — e vocês vão ver que em consequência disso o primeiro poço de petróleo do Brasil vai ser em Alagoas.

— Protesto! — berrou Emília. — O nosso tem que ganhar a corrida — tem que chegar na frente.

O Visconde ia responder quando soou o berro de tia

Nastácia lá longe:

— A janta tá na mesa, cambada! Tem lambari frito...

Na voz de lambari frito, os meninos esqueceram a

Geologia e botaram-se para casa, na volada. Só ficou por ali, pensativo, de mãozinha no queixo, o grande sabugo geológico.

— Hum! hum! — monologou ele depois de muito matutar. — Macacos me lambam se aqui não houver petróleo...

 

CAPÍTULO 7: DEPOIS DO ALMOÇO

Comidos os lambaris do almoço, a meninada voltou correndo ao campo, interessadíssima na continuação do estudo geológico.

— Mas quais são as condições que devemos descobrir nestes terrenos para termos a certeza de que podem conter petróleo? — foi perguntando Pedrinho.

— Várias — respondeu o Visconde. — Temos, primeiro, de verificar se são sedimentárias as rochas...

— Isso já vimos que são.

—...e se têm possança. E se há camadas porosas, capazes de armazenar o petróleo. E se há camadas impermeáveis entalando essas camadas porosas. E se não há muita intrusão de rochas eruptivas, porque estas pestes, quando se introduzem numa camada portadora de petróleo, é para escangalhar tudo, destruir tudo com o seu calor brutal. E se há anticlinais bem formados onde o petróleo se acumule. E se há pela superfície algum sinal qualquer de petróleo, como xisto ou arenito betuminoso. E qual a idade do terreno...

— Idade do terreno? — repetiu Narizinho. — Esse ponto não foi estudado.

— Os geólogos dividem os terrenos em várias idades ou períodos. E como o petróleo quase sempre aparece em certos terrenos, tem muita importância conhecer a idade das rochas dum campo petrolífero.

— Reduza isso a troco miúdo, Visconde, que não estou entendendo muito bem — reclamou Emília.

— Vou explicar — assentiu o Visconde. — Bem lá no fundo há as massas de rochas eruptivas sobre que se assentam as camadas de rocha sedimentária. São rochas duras, cristalinas, que vão amolecendo até se confundirem com a massa derretida do centro. A crosta solidificada da terra é coisinha mínima comparada com o volume da terra inteira. Corresponde a menos que uma casca de laranja, para a laranja.

— Então se descascarmos a terra ela fica nova mente uma bola de fogo?

— Sim. Se arrancarmos a crosta da terra, o nosso planetinha volta a ser a bola de fogo, o solzinho que já foi no tempo em que começou a regirar pelo espaço.

Os olhos de Emília brilharam. Lembrou-se da viagem ao céu e de todas as coisas prodigiosas que se deram ali no sítio e viu no descascamento da terra uma aventura nova, nunca sonhada nem pelos loucos mais varridos.

— Que estupendo, Narizinho! — exclamou ela arregalando os olhos brilhantes, — Está aqui uma aventura bem digna de nós: descascarmos a terra, como quem descasca uma laranja mexeriqueira!...

— Lá vem, lá vem! — disse a menina. — Eu já andava admirada do tempo que você passou sem abrir a torneirinha...

Emília pôs-lhe a língua e o Visconde continuou:

— Estava eu dizendo que a grossura da casca da terra é mínima. As perfurações que o homem faz para petróleo parecem-nos muito profundas porque somos uns microbinhos de duas pernas. São profundas para nós. Para a terra, correspondem a simples picadas de alfinete.

— Então um poço de 1.000 metros é uma simples picada de alfinete?

— Claro que sim. Basta fazer o cálculo. Que diâmetro tem a terra?

Narizinho, que sabia de cor, "cantou" logo:

— De polo a polo, a terra mede 12.640 quilômetros de diâmetro.

— Muito bem. Logo, um poço de 1.000 metros, ou 1 quilômetro, representa apenas 1/12.640 do diâmetro da terra. Se eu tivesse aqui o quadro-negro, desenharia a terra e esse poço, ambos na mesma escala, para vocês verem que um buraco de 1.000 metros não passa de picadinha de ponta de alfinete. E que é a própria casca da terra senão uma película? Já vimos que o calor central aumenta de um grau cada 25 metros. Isso quer dizer que a 100 quilômetros de profundidade temos a temperatura de 4.000 graus, mais que suficiente para manter todas as rochas no tal estado de fusão que nem olhar a gente pode, porque cega. Mas se procurarmos relacionar esses 100 quilômetros da casca com o diâmetro da terra, acharemos a fração 1/126, apenas...

A pouca distância dali havia uma laranjeira carregada. Pedrinho foi escolher uma das laranjas mais taludas para verificar a proporção entre a casca e o diâmetro. Fez suas medições e disse:

— Esta laranja tem 126 milímetros de diâmetro, e a casca tem três milímetros de espessura; logo, esta casca representa para esta laranja muito mais do que a crosta da terra representa para a terra. Para a casca da laranja estar na mesma proporção da crosta da terra, devia ter só um milímetro de espessura.

— Puxa! Que "finura" — exclamou Narizinho. — A crosta da terra então deve corresponder a uma casca de pêssego...

— Exatamente — concordou o Visconde. — A relação entre a crosta da terra e o diâmetro da terra deve ser a mesma que entre uma película de pêssego e o diâmetro do pêssego.

Desde aquele momento Emília passou a caminhar muito ao de leve, na pontinha dos pés — de medo que seu peso-pluma rasgasse nalgum ponto a película de pêssego que chamamos crosta da terra...

— Com essas cascas todas estamos mas é esquecendo o petróleo — advertiu Pedrinho. — Volte ao assunto, Visconde.

O Visconde voltou.

— Sim. Estávamos falando sobre a idade das rochas. As primeiras camadas de rocha sedimentária que lá no fundo repousam sobre as rochas cristalinas, pertencem à Era Azoica. Azoica quer dizer sem vida.

Picam lá os terrenos arqueanos, ou antiquíssimos, onde nunca há petróleo, nem nenhum sinal de fósseis, já que naquele tempo ainda não existia vida.

— E em cima dos terrenos arqueanos?

— Em cima dos terrenos arqueanos vêm as camadas da Era Paleozoica, ou Primária, onde aparecem os primeiros fósseis de algas marinhas e as primeiras conchas, isso bem embaixo; mais para cima começam a aparecer outros fósseis, como os dos fetos, e grande abundância de cascas de moluscos. E ainda mais para cima surgem os fósseis dos primeiros sáurios e dos vegetais que formam as mais velhas hulhas.

— E depois?

— Depois temos a Era Mesozoica, ou Secundária, cujos terrenos se compõem de argilas, piçarras, calcários de conchas. Surgem fósseis de plantas já bastante adiantadas, como as coníferas, as cicadáceas, os grandes fetos arbóreos; e também fósseis de sapos gigantescos, sáurios enormes, plesiossauros, ictiossauros, lagartões voadores, toda essa bicharada que até parece pesadelo, quando a vemos reconstruída nas salas dos museus paleontológicos. São as camadas mais românticas da crosta da terra. A vida naquele tempo era muito mais violenta que hoje, de modo que o Mesozoico parece um verdadeiro romance de monstruosidade.

— Que pena não termos nascido nessa época! — suspirou Emília. — O mundo está hoje uma vergonha em matéria de bichos, sobretudo aqui no Brasil. Umas paquinhas, umas capivaras e umas tais onças aí pelos fundões, que a gente nunca vê. Só se salva a África, com uma bicharia ainda bem bonita — girafas, rinocerontes, hipopótamos, leões...

Mas o Visconde não concordou:

— Se vivêssemos naquela época, Emília, teríamos uma vidinha bem curta. Bastava que passasse por nós um simples mesossauro, com a sua cabeça de metro e meio de comprimento. Lambia-nos a todos como boi de carro lambe os capins da beira da estrada...

— Que prosa esta Emília! — murmurou Narizinho.

— Queria ter nascido naquele tempo dos bichões absurdos, justamente ela que nem tem corpo para encher a cova do dente dum deles...

— E depois desse período truculento? — perguntou Pedrinho.

— Depois do Secundário temos a Era Cenozoica, ou Terciária, onde também aparecem muitos fósseis de animalões que já não existem, como os mastodontes, os dinotérios, os mamutes. Mas tanto a flora como a fauna desse período já começam a dar ideia das de hoje. E, finalmente, temos a Era Quaternária, que é a mais moderna, a nossa. Neste período os fósseis encontrados são dos mesmos animais e das mesmas plantas que conhecemos. Já não aparecem os colossais bicharocos do período anterior. Foi quando apareceu na terra o bicho-homem.

Emília, que não se consolava — murmurou suspirando: — "Que azar eu ter nascido agora! Meu temperamento é secundário..."

— E qual o melhor período para petróleo? — quis saber Pedrinho.

— Ah, é o Terciário. Os melhores campos petrolíferos do mundo são em terrenos dessa época.

Até ali tudo correra muito bem, porque eram coisas que estavam nos livros. Mas quando tiveram de ver no chão se realmente existiam todas as condições favoráveis para a existência do petróleo, o sabuguinho científico começou a mostrar exigências excessivas. Pedrinho danou. Viu logo que naquele andar passariam pelo menos um ano em estudos teóricos antes de darem começo ao poço — e como era o poço o que mais interessava, convidou Narizinho e Emília para outra greve.

— Sim — disse ele — porque nesta toadinha do Visconde ficamos toda a vida a estudar coisas dos livros e nada de perfuração. Nosso Visconde é livresco demais. Temos que declarar greve. Topam?

— Topamos — concordaram as duas, também já cansadas de ciência teórica.

Pedrinho voltou-se para o sábio e disse:

— Feche o livro, Visconde. Resolvemos dar começo ao poço já, já, já.

O Visconde fez cara feia.

— Mas como pode haver poço sem ciência, menino? Que bobagem é essa?

— Bobagem ou não, queremos começar o poço imediatamente. Está decidido por maioria de votos — três contra um.

— Mas se nem acabamos de fazer o estudo geológico do terreno! Depois dele ainda temos de fazer o estudo geofísico, homessa!

— Faz de conta que já estão feitos — berrou Emília. — Faz de conta que foram feitos por uns sábios da Alemanha que mandamos vir, não acha, Pedrinho?

— Claro que sim. Os tais estudos geofísicos tanto estão feitos que tenho aqui os mapas — disse Pedrinho fingindo abrir no chão um enorme rolo de papel de desenho. Venham ver.

Todos se curvaram em redor do mapa de mentira.

— Aqui está tudo explicadinho — disse ele, — Os sábios alemães marcaram neste ponto um anticlinal magnífico, sem falha nenhuma, entupido de petróleo lá embaixo. Temos agora de localizar o anticlinal do terreno. Olhem: começa na porteira do pasto e vai até lá no corte da estrada que estivemos estudando. Melhor fincarmos na terra várias estacas para que fique tudo bem marcadinho e não haja enganos depois. Se furarmos bem no alto do anticlinal, sai gás, segundo as teorias do Visconde; se furarmos nas encostas, sai petróleo; e se furarmos muito embaixo, no pé das encostas, sai água salgada. Vê como eu sei? Vamos agora estaquear o terreno.

Pedrinho sacou do facão de mato que trazia à cintura e cortou umas vinte estacas.

— Venha atrás de mim com o feixe, Narizinho, e vá me dando uma por uma.

A menina obedeceu. Sobraçou o feixe de estacas e as foi dando a Pedrinho, que as fincava em terra depois de fazer ponta com o facão. Num instante o anticlinal que os alemães haviam marcado no mapa ficou todo estaqueadinho no terreno.

— Pronto! — exclamou o "engenheiro" enxugando o suor da testa. — Essas estacas maiores marcam o topo do anticlinal, os pontos onde há gás. Aquelas ali marcam as meias encostas, boas para perfurar. Que acha, Visconde, da minha marcação?

O sabugo geológico respondeu, depois de alisar as palhinhas do pescoço, que não havia nenhuma objeção a fazer.

— Então, pronto! — gritou Pedrinho. — Hurra! Hurra! O principal está feito: marcar cientificamente o lugar exato onde abrir a perfuração. O resto é canja.

Mas apesar de ser canja, Pedrinho engasgou. Não sabia o que fazer depois da marcação do ponto certo. Teve de recorrer ao Visconde.

— Vamos lá, Visconde, conte como é o resto.

O Visconde explicou que o resto era furar, sendo para isso indispensável adquirir uma boa sonda de perfuração e todas as máquinas e coisas acessórias.

— Em que consiste a sonda?

— Num complicado aparelho perfurador, com uma torre de uns trinta metros de altura e um motor a vapor ou a óleo que mova o aparelho. E oficina mecânica para consertos, etc. Antes, porém, acho que você deve providenciar a água e o combustível para a caldeira — e também as casas para acomodação das máquinas e operários.

— Água — resolveu Pedrinho — eu puxo num encanamento lá do Córrego do Caraminguá; e para combustível temos de tirar lenha no Capoeirão dos Tucanos. Quanto de lenha é preciso?

— Quanto mais melhor — respondeu o Visconde.

— É bom termos sempre uma boa reserva — aí uns 500 metros cúbicos. A caldeira vai consumir de vinte a trinta metros por dia.

Pedrinho deu ordem à boneca para que cuidasse da lenha. Emília aplicou o faz-de-conta, e num momento dez carros de boi começaram um vaivém contínuo do capoeirão até ali. Serviço rápido como o relâmpago.

— Pronto, Pedrinho! Empilhei lenha até demais — 523 metros cúbicos segundo a nota que meus carreiros apresentaram — disse ela dando a Pedrinho um papel com garranchos.

— Bom. Água e lenha já temos — disse ele. — Agora é preciso que você, Narizinho, se encarregue das casas e do barracão para as máquinas.

A menina também aplicou o faz-de-conta, de modo que num instante surgiu da terra um excelente barracão de madeira, com telhado de zinco, para as máquinas; e a cem metros dali uma série de casas para operários, muito bonitas e higiênicas, tão bonitas que Pedrinho achou demais.

— Demais, não! — protestou ela. — Quanto melhor acomodarmos nossos homens, melhor eles trabalham. Não concordo com o sistema de tratar os operários como se fossem pedras insensíveis. As casinhas têm tudo dentro — até geladeira e rádio...

— E esta casa aqui? — perguntou Pedrinho, vendo uma distanciada da vila operária.

— Pois aqui é o escritório — o seu escritório, Pedrinho, já que é você o Superintendente do campo. E aquela mais pimpona, acolá, é o bangalô do perfurador que temos de mandar vir do estrangeiro.

— Muito bem — disse Pedrinho tomando conta do escritório. — Vou fazer o pedido das máquinas necessárias. Temos de comprá-las na América do Norte, porque no Brasil não há disso.

Abriu vários catálogos em inglês e pôs-se a folheá-los. Eram gravuras e mais gravuras de máquinas e mais máquinas, numa procissão sem fim. Um catálogo enorme, aí como um dicionário dos gordos. Pedrinho tonteou no meio de tantas máquinas e peças que ele não entendia. Teve de recorrer aos conhecimentos do Visconde.

— Estou tonto, Visconde. Há aqui uma ferramentalhada que não tem fim. Será preciso encomendar este catálogo inteiro?

O Visconde fez uma pequena preleção sobre sondas.

— Há sondas de dois tipos — disse ele. — Umas perfuram por meio da batagem. A terra vai sendo martelada por uma enorme e pesadíssima talhadeira chamada trépano, e as pancadas vão desagregando as rochas, esfarelando-as.

— E para tirar do buraco a rocha já esfarelada? — perguntou Pedrinho.

— Há dois sistema. Um é, depois de martelar por certo tempo, retirar do poço o trépano para, com uma caçamba própria, extrair todo o material escavado. Outro sistema é injetar água dentro do poço por meio duma bomba fortíssima. A água lá do fundo faz lama com o material escavado, lama que sobe e sai pela boca do poço. A água limpa entra com forte pressão por dentro das hastes do trépano e a lama sai por fora das hastes. Este processo é mais aperfeiçoado que o da caçamba.

— Se é o mais aperfeiçoado, quero esse. Aqui tudo há de ser a última palavra da técnica. E o outro tipo de sonda?

— O outro é o tipo rotativo, o mesmo sistema dos trados de furar madeiras grossas. Em vez de trépano que desagregue as rochas à custa de tanto martelar, há na extremidade da haste uma broca que gira sobre si mesma e vai roendo, desgastando as rochas. Este sistema tem a vantagem de andar mais depressa que o outro.

— Pois então fica adotado o sistema rotativo — resolveu Pedrinho.

— Espere, Senhor Superintendente! — gritou o Visconde. — O sistema rotativo não há dúvida que é ótimo, mas depende do terreno. Em terrenos próprios dá para furar 50 ou 60 metros por dia. Mas se há camadas de certas rochas muito duras, ou certos conglomerados, ele falha — não rende nada ou rende muito menos que a batagem.

— Então que fazer aqui no sítio, se não sabemos que camadas vamos encontrar? — perguntou Pedrinho atrapalhado.

— Minha opinião — respondeu o Visconde — é que venha uma sonda mista, de batagem e rotação ao mesmo tempo. Quando as camadas permitirem o emprego das brocas rotativas, furaremos com elas; quando não permitirem, furaremos com os trépanos.

— Ótima solução, Visconde! — disse Pedrinho. — Encomendarei uma sonda mista, está resolvido. E que mais é necessário?

— A caldeira, o motor, os tubos...

— Que tubos?

— Os tubos de aço para revestimento da perfuração. Não é só ir furando, não, Senhor Superintendente! O furo tem que ser revestido de canos de aço.

— Que maçada! Por que isso?

— Por vários motivos — evitar desmoronamentos, fechar as águas...

— Que águas, sabugo de Deus?

— Quando a gente perfura, encontra pelo caminho lençóis subterrâneos de água doce, que se formam com a infiltração das chuvas. Essas águas têm de ser fechadas por meio dos tais tubos, senão — sabe o que acontece?

—?

— Acontece o seguinte: logo que o furo toca num lençol de petróleo, a água, que está saindo sempre, desce e mete-se pelo lençol de petróleo adentro, e empurra o petróleo para longe dali. As águas são eternas, não param de correr por causa da infiltração das chuvas, que é constante. Mas o coitado do petróleo não tem chuva de óleo que o abasteça, de modo que cede diante da água — e vai indo, vai indo, vai se afastando do campo petrolífero...

Por isso os petroleiros dizem que a água é a maior inimiga do petróleo.

— Bem, já sei — disse Pedrinho. — A entubação é para fechar as águas. E que mais?

— Ferramentas miúdas e mil coisas. É indispensável uma boa oficina mecânica para reparos dos maquinismos. O melhor é você encomendar uma sonda mista completa, com capacidade aí para uns 1.500 metros. E que venham os tubos de revestimento necessários.

Pedrinho foi à máquina de escrever redigir a carta de encomenda.

— Por carta, Pedrinho? — reclamou Emília. — Leva muito tempo, rapaz! Peça logo por telegrama urgente e exija que a ferralhada esteja aqui amanhã bem cedo.

— Absurdo, Emília, não dá tempo.

— Dá sim — insistiu ela. — Eles que se utilizem do meu poderoso "Faz-de-Conta nº 7", o maior avião de carga do mundo. Dessa maneira teremos tudo aqui amanhã antes do almoço.

Pedrinho compreendeu que realmente não havia outro jeito e redigiu o telegrama.

Restava calcular o preço da encomenda e mandar os dólares.

— Venha fazer a conta, Narizinho, você que é a matemática.

Narizinho calculou pelos preços do catálogo a importância total do pedido.

— Anda em 105.742 dólares — disse ela mostrando a conta.

E agora? Onde o dinheiro para a remessa? Só mesmo a Emília. Pedrinho chamou Emília.

— Olhe, Emilinha, encarregue-se você desta parte financeira. Dê um jeito de o dinheiro ser entregue hoje mesmo à firma McGowen & Tuttle, de Nova Iorque. Veja um bom banco para fazer a remessa.

— Banco? Não me fio em bancos, Pedrinho. Vou fazer o dinheiro chuviscar em cima da cabeça de Mister McGowen. Quer ver? E voltando-se para o céu, gritou:

— Nuvenzinhas, nuvenzonas, que cochilando passais pelo azul! Correi até à casa de Mister Mc... Mc o quê, Pedrinho?

— McGowen — gritou o menino do fundo do escritório.

—... de Mister McGowen e despejai-lhe na cabeça uma chuva de 105.742 pingos doláricos — por conta da Companhia Donabentense de Petróleo.

Disse e foi ter com o Visconde.

— Pronto! Mister McGowen vai ficar tonto com a nossa chuvinha de ouro. As nuvens, mal me ouviram, botaram-se a galope. Já devem estar chegando.

— E agora? — perguntou Narizinho. O Visconde estava exausto.

— Agora? — disse ele deitando-se no chão. — Agora um descansinho. Uf! Como trabalhamos hoje!...

E limpou na manga o suorzinho da testa.

 

CAPÍTULO 8: MONTAGENS

Durante o jantar Dona Benta perguntou a Narizinho que é que os havia conservado fora de casa o dia inteiro.

— Ah, vovó não sabe! É o poço...

— Que poço?

— O poço de petróleo que vai salvar o Brasil — o primeiro poço, com uma produção de mil barris por dia.

— Dez mil! — protestou Emília. — Não faço por menos.

— Ou isso. Já completamos os estudos geológicos e geofísicos; já estaqueamos o terreno; já construímos as casas dos operários, o barracão das máquinas, o escritório e o bangalô de Mister Kalamazoo, o perfurador que mandamos vir da América. Também já encomendamos a maquinaria toda, a sonda, os tubos de revestimento. Um dinheirão, vovó! Mais de cem mil dólares.

Dona Benta, que começara a trinchar uma galinha assada sorriu. Andava tão afeita àquelas maluquices de seus netos...

— Mas esse Mister Kalamazoo fala português?

— Não; só inglês. É americaníssimo.

— E como se entenderá com vocês? — indagou ela, pondo no prato de Narizinho um pedaço de peito.

— Com intérprete. Quindim será o intérprete. Como ele é natural do Uganda, uma possessão inglesa da África, sabe inglês na ponta da língua.

— Na ponta do chifre! — emendou Emília.

— E que nome vai ter o poço? Porque todos os poços têm nomes, ou números.

Os meninos, que ainda não haviam pensado naquilo, entreolharam-se; e Emília, a sapeca dadeira de nomes às coisas, mais uma vez impôs o seu capricho.

— Vai chamar-se o Caraminguá nº 1 — improvisou ela — em homenagem ao nosso ribeirãozinho. Os outros terão outros nomes, porque a Donabentense vai abrir pelo menos cinquenta poços naquele anticlinal.

— Que Donabentense é essa?

— O nome da companhia, vovó — respondeu Narizinho. — Antes que pensássemos no assunto, Emília já veio com esse nome, que ficou. Companhia Donabentense de Petróleo em homenagem à senhora...

— Muito bem — disse Dona Benta, pondo no prato de Pedrinho uma coxa. — Vejo que Emília está começando a me adular — prova de que anda querendo qualquer coisa. Prego sem estopa você não prega, não é, Emília?

A boneca fez focinho de lebre.

Durante o jantar inteiro só se falou na perfuração. Iam extrair do poço milhares de barris de óleo, montar uma refinaria, inundar o Brasil de gasolina, querosene, óleo lubrificante, óleo combustível, supergás e dezenas de outros produtos do petróleo. Dinheiro ganhariam tanto, que a dificuldade seria saber o que fazer dele. Pedrinho só pensava numa coisa: viajar, conhecer mundo.

— Por que, vovó, como posso saber de que modo empregar meus capitais, se nada conheço do mundo? Tenho de, primeiramente, estudar o mundo para verificar o que o mundo mais precisa, não acha?

— Muito bem pensado — concordou Dona Benta.

— E você Narizinho? Que vai fazer do dinheiro?

— Meu sonho é construir hospitais, escolas, creches, bibliotecas, coisas de utilidade geral. Há tanta pobreza e desgraça na terra...

— Quer dizer que será uma rockefellerzinha. O velho Rockeffeller, depois de ter ganho montões e montões de ouro, ficou sem saber o que fazer daquilo. E fundou o Instituto Rockefeller, cuja função é gastar seus milhões em coisas de benefício universal. Esse instituto beneficia todos os países, inclusive o nosso. A grandiosa Escola de Medicina de S. Paulo, lá defronte ao Cemitério do Araçá, foi presente dele. Não há país do mundo, seja a França ou a China, onde o Rei do Petróleo não despeje benefícios. E você, Visconde?

Como todos os verdadeiros sábios, o Visconde não entendia nada de dinheiro — e engasgou com a pergunta. Emília tomou a palavra.

— Vai comprar uma cartolinha nova e um remédio para o bolor — disse ela. — E eu...

— Ah, você! — exclamou Dona Benta. — Imagino o que não será — quanta maluquice! Vamos, diga. Que vai fazer do dinheiro?

— Botá-lo a juros para ir juntando sempre mais, mais, mais...

Aquela resposta espantou a todos. Emília sempre fora uma ciganinha, mas ninguém jamais supôs que também fosse usurária.

— A que juros? — perguntou Dona Benta, por curiosidade.

— O mais alto possível — 10% ao mês, se não puder ser a 12...

— Explique-se, Emília. Não estou entendendo bem.

— Minha ideia é esta. A verdadeira vocação dos homens é escravizarem-se ao dinheiro. Assim que uma pessoa sacode no ar um pacote de notas, gritando: — "Quem quer? Quem quer?" imediatamente aparecem mil mãos estendidas, dizendo: — "Eu quero! Eu quero!" E o dono das notas distribui o dinheiro mas prende aquelas mãos com algemas de aço — os juros. Os homens, donos dessas mãos, tornam-se escravos do dador do dinheiro; passam a viver para ele, a trabalhar para ele, a só pensar nele, porque o juro é uma coisa que cresce sempre, dia e noite, faça sol ou faça chuva, seja Domingo de Ramos ou terça-feira de carnaval. Essas criaturas ficam escravas pelo resto da vida — por gosto, por vontade própria, só porque alguém lhes mostrou dinheiro e elas não resistiram à tentação de pegá-lo. Todo mundo faz dívidas — as gentes, as empresas, os municípios, os estados, as nações, os impérios. E todo mundo anda pedindo dinheiro emprestado, isto é, estendendo as mãos para que os donos do dinheiro as algemem. E se acontece que um desses escravos pague a dívida, a tentação é de fazer outra — e faz, e escraviza-se novamente. Saudades da escravidão!...

Ora, isso quer dizer que a vocação, o gosto supremo dos homens é tornarem-se escravos do dinheiro. Muito que bem: pois se é assim, quando eu ficar milionária vou dar aos homens o gosto imenso de se escravizarem ao meu dinheiro, bem algemadinho com juros de 10 ou 12% ao mês. Tia Nastácia não diz sempre que o que é de gosto regala a vida?

— Já se viu que malvada? — murmurou Dona Benta.

— Prosa dela, vovó — disse Narizinho. — Emília, quando tiver dinheiro, o que vai fazer é associar-se ao Visconde para entupir os sertões do Brasil com feras trazidas da África. Já pilhei uma conversa dela nesse sentido. Emília confessou que seu temperamento era "feroz" e "secundário" — isto é, amigo das feras monstruosas que enchiam o mundo no Período Secundário. Como já não há disso, pretende encher o Brasil de feras africanas — leões, hipopótamos, rinocerontes, girafas, zebras, etc. Eu sei, eu sei...

O assunto continuou naquele tom até a sobremesa — um gordo mamão mandado pelo Coronel Teodorico. Comido o mamão, saíram na disparada a fim de receberem Mister Kalamazoo, que fora chamado por telegrama e vinha num dos aviões-relâmpagos da Emília.

Não tardou que o ar zumbisse e um ponto móvel aparecesse no azul.

— É ele! — gritaram todos.

E era de fato Mister Kalamazoo. O avião pousou no pasto e de dentro saiu um americano enorme, corado, de sapatões grossos, a mascar chiclete. Os meninos correram-lhe ao encontro.

How do you do, Mister Kalamazoo? — disse Pedrinho — e engasgou. Todo o seu inglês era aquilo. E como Narizinho ainda sabia menos e o Visconde nem um yes, tiveram de recorrer ao Quindim.

— Traga depressa o intérprete, Emília! — ordenou Pedrinho.

Enquanto o americano retirava do avião suas bagagens, Emília foi e veio com o rinoceronte.

O susto de Mister Kalamazoo valeu a pena, mas afinal acomodou-se e teve com Quindim uma grande prosa em inglês, da qual os meninos só pescavam, aqui e ali, um yes e um no. Depois que o americano se recolheu ao seu bangalô para descansar da viagem, Pedrinho correu a ouvir as impressões do intérprete.

— Que tal o nosso perfurador, Quindim?

— Inda não sei — disse ele. — Conversamos longamente sobre perfurações e vários assuntos de petróleo, mas não sei...

— Que é que não sabe?

— Não sei se este homem merece confiança. Pode ser um agente dos tais trustes que não querem que o Brasil tenha petróleo; pode ser um perfurador subornado, que venha sabotar o nosso poço... Os meninos ficaram apreensivos. Muito sério o perigo, na realidade. No negócio do petróleo dão-se traições tremendas, sabotagens, incêndios, mortes trágicas...

— Mas acha-o com cara de sabotador de poço? — insistiu Pedrinho.

— Os sabotadores não trazem nenhum S na testa — respondeu Quindim. — Apenas estou avisando. Sinto um cheiro de sabotagem no ar...

— Como fazer, então? Nosso contrato com esse homem já está assinado...

Quindim refletiu uns instantes.

— O jeito que acho é o seguinte: eu monto guarda ao poço dia e noite. De medo do meu chifre, pode ser que ele engula qualquer sabotagem que tenha na intenção.

— Ótimo! — gritou Pedrinho. — E também fica de guarda o Visconde, que é entendidíssimo em perfurações. Se o Visconde perceber qualquer coisa, qualquer manobra suspeita, pisca para você — e você avança de chifre apontado, como fez com os detetives na caçada da onça. Entendido?

A coisa ficou arrumada assim. Mister Kalamazoo seria o perfurador, mas com quatro olhos permanentes em cima dele — os dois do rinoceronte e os dois do Visconde.

— Ótimo, ótimo — continuou Pedrinho. — E o americano de nada desconfiará, porque a presença dum intérprete na sonda se justifica. Quanto ao Visconde, que é apenas um sabugo, ele não causa desconfiança a ninguém que não seja vaca. Só vaca desconfia de sabugo de cartolinha...

Na manhã seguinte chegaram os aviões emilianos com todas as peças da sonda. Que ferralhada infinita, Santo Deus! Peças e mais peças, tubos e mais tubos, caixas e mais caixas disto e daquilo. Parecia incrível que para abrir um buraco de dois palmos de diâmetro fosse preciso tanta coisa.

E veio também a turma de operários especialistas contratada por Mister Kalamazoo, gente de várias nacionalidades — um rumaico, dois alemães, dois argentinos. Os petroleiros só arranjam bons especialistas nos países que já têm exploração de petróleo.

Além da turma de perfuradores havia um ferreiro, dois mecânicos, um foguista e dois ajudantes, "paus para toda obra". E também um geólogo--químico para fazer análises de materiais, classificar fósseis, etc.

Começou a montagem da sonda. Foram construídos quatro alicerces para os quatro pés da torre — alicerces de tijolos bem cimentados. E a torre de ferro foi sendo articulada peça por peça, andar por andar, até o último, que era o décimo, a 33 metros de altura. Assim que a armação ficou pronta, os meninos subiram pela escadinha até o alto, para gozar o panorama.

— Que lindo é o sítio de vovó olhado daqui! — exclamou a menina. — Lá está o Caraminguá fazendo voltas e mais voltas, com aquela preguiça dele. E lá está a estrada com a vendinha do Elias Turco...

— Até da fazenda do Coronel Teodorico a gente vê um pedaço, o terreiro, os chiqueiros, o pomar, o mastro de Santo Antônio — ajuntou Pedrinho.

O Visconde só via a paisagem geológica.

— Reparem como estava certa a minha teoria da erosão do Morro Pelado, com a sua barreira que não passa dos restos da encosta norte da montanha desaparecida. A erosão comeu a montanha inteira, só deixando esses pedaços. No lugar onde ela foi, temos agora o baixadão do pasto da Mocha.

Emília divertia-se em dar cuspidinhas para baixo.

— Para suicídio — disse ela — isto aqui ainda é melhor que a tal Rocha Tarpeia que Dona Benta contou — aquela rocha feia que existia em Roma, de cima da qual eram jogados ao precipício os traidores. A Tarpeia tinha 32 metros — menos um que esta torre. Quer dizer que minhas cuspidas duram no ar um metro mais que os criminosos romanos jogados da Tarpeia.

Narizinho trocou uma olhadela com Pedrinho. Emília os desnorteava. A propósito de tudo dizia sempre coisas imprevistas.

O Visconde explicou a razão da torre.

— Tudo isto, só para criar um ponto de apoio aqui em cima, que é esta roldana, disse ele apontando para a grossa roldana fixada no décimo andar. Neste ponto de apoio passa o cabo de aço que sustenta as hastes.

— E por que é a torre assim tão alta? — perguntou o menino.

— Para facilitar e apressar as manobras. As hastes, que tem cada uma 7 metros, são atarrachadas umas nas outras, formando uma só, que pode ir até 3.000 metros e mais de profundidade. Mas a broca que fica na extremidade inferior tem que ser retirada do poço depois de algumas horas de trabalho.

 


— Para quê?

— Para mudança. Depois dumas horas de trabalho a broca perde o corte. Tem que ser trocada.

— Que trabalheira, Santo Deus! — exclamou Pedrinho. — Pensei que era só ir furando...

— A trabalheira é grande, sim, e só nas manobras de descer e subir as hastes os perfuradores consomem várias horas cada dia, e tanto mais quanto mais o poço se aprofunda.

Depois da explicação os meninos desceram da torre e foram visitar a casa das máquinas e as oficinas. A um canto erguia-se a enorme caldeira, dando ideia dum rinoceronte de ferro. Nela queimava-se a lenha para produzir a vapor que movia todas as máquinas da sonda.

— Quantos cavalos? — perguntou Pedrinho ao foguista.

— Cem — respondeu um operário de cara suja de carvão, que outra coisa não fazia senão botar lenha na fornalha e olhar os manômetros que marcam as pressões.

— Essa história de cavalos eu não entendo bem — disse Narizinho. — Volta e meia ouço dizer: automóvel de 50 cavalos, motor de 20 cavalos — e não vejo cavalo nenhum. Que é isso Visconde?

— É uma medida de força, como o quilo é uma medida de peso. O cavalo, ou H. P. (iniciais de Horse Power, Cavalo-Força, em inglês) é uma força de 75 quilogrâmetros.

— Fiquei na mesma. Não sei que é quilogrâmetro.

— Quilogrâmetro é a força capaz de erguer um peso de 1 quilo à altura de um metro, em um segundo. Só isso.

— Quer dizer então que esta caldeira de 100 cavalos capaz de erguer um peso de 7.500 quilos à altura de um metro, em um segundo, não é isso?

— Perfeitamente.

— Então bate o Quindim — observou Emília. — Num segundo Quindim não ergue 7.500 quilos a um metro de altura. Não tem jeito. Mas levantar do chão esse peso, isso ele levanta, aposto.

O Visconde explicou que o vapor produzido naquela caldeira era levado por um encanamento até às máquinas da sonda, sendo com a força desse vapor que tudo lá se movia.

— E por que assentaram a caldeira aqui, tão longe da sonda, cinquenta metros?

— Porque aqui se lida com fogo e num acampamento petrolífero é necessário conservar o fogo bem longe do poço. Perigo de incêndio.

A água para o abastecimento da caldeira vinha do Caraminguá, onde fora colocada uma bomba tocada por um motorzinho a óleo. Mas não vinha diretamente; primeiro enchia um grande reservatório, ou tanque, cavado na terra, a uns cem metros dali, num alto do terreno. Logo que o tanque se encheu, Emília soltou nele dois peixinhos pescados com peneira no córrego. E um sapinho verde.

Em seguida o Visconde mostrou a forja do ferreiro, onde os trépanos eram temperados e afiados.

Na oficina mecânica havia tornos de tornear ferro, máquinas de furar ferro, rebolos de esmeril e mil ferramentas miúdas, torqueses, alicates, limas, fresas, puas, martelos, serras, talhadeiras, bigornas, etc. Mister Kalamazoo dirigia o serviço em mangas de camisa e cachimbo na boca; tinha esse ar de homem que entende de tudo e tudo resolve num ápice. Todos lhe perguntavam coisas e a todos ele dava ordens muito certas. Era uma perfurador de grande prática adquirida nos campos de petróleo do Oklahoma, onde abrira mais de cem poços. Infelizmente só falava inglês, de modo que apenas Quindim aproveitava as muitas coisas interessantes que ele dizia nos momentos de folga. E acabaram grandes amigos. O americano contava histórias do Oklahoma, que Quindim pagava com histórias do Uganda. Mas apesar dessa amizade o rinoceronte não deixava de mantê-lo em perpétua vigilância.

— Estes trustes mundiais de petróleo são o diabo — dizia ele. — Fazem coisas do arco-da-velha. De modo que apesar da simpatia que Mister Kalamazoo me inspira, eu o trago sempre de olho — e o Visconde também. O Visconde, esse, virou uma verdadeira sarna. Não o larga um só instantinho. O que vale é que Mister Kalamazoo, como é grandalhão demais, nem enxerga o sabuguinho de cartola. Às vezes até tropeça nele...

Rapidamente tudo ficou pronto para o início dos trabalhos de perfuração. Que homens aqueles! Faziam tudo tão direitinho como os célebres anões dos contos de fadas. Só uma vez Mister Kalamazoo perdeu as estribeiras e berrou desaforos que os meninos não entenderam por serem em inglês. Isso porque a bomba de injetar água no poço, ao ser experimentada, engasgou — e ele atribuiu o defeito à imperícia do mecânico que a havia montado.

Tiveram de desmontá-la para ver o que era, e com grande espanto descobriram um peixinho entalado na válvula. Um dos peixinhos da Emília...

— Incrível a curiosidade deste burrico! — disse a boneca. — Escapou do tanque, onde o pus, para vir pelo encanamento espiar os trabalhos da sonda. Agora está aí, morto, mortíssimo — vítima da sua curiosidade científica...

E tratou de enterrá-lo debaixo duma árvore, num tumulozinho de pedra em que havia a seguinte inscrição: Aqui jaz o primeiro mártir do petróleo brasileiro.

Em cima do túmulo, em vez de cruz, botou um anzol...

 

CAPÍTULO 9: COMEÇA O POÇO

Bem de madrugada, no dia seguinte, o foguista acendeu fogo na caldeira para que os trabalhos da perfuração do Caraminguá nº 1 pudessem começar às 8 horas, como havia determinado Mister Kalamazoo. Era um grande acontecimento, que Pedrinho resolveu festejar com uma carteira de traques mandada vir da venda do Elias Turco. Infelizmente os traques, como tudo naquela venda, eram falsificados, e só um ou outro rebentou, muito chochamente.

Dona Benta e a negra foram convidadas para assistirem à inauguração.

— Nossa Senhora! — exclamou tia Nastácia ao ver a torre de perto. — Quanto ferro! Neste andar Seu Pedrinho muda o "semblante" do sítio, Sinhá. A coisa já está ficando que a gente não conhece mais nada. Virando uma cidadinha estrangeira, com essas casas de operários e o "bangalão" do Mister. E as caras? Tudo esquisito. Aquele ali, vermelho como um presunto. Aqueles lá, de cabelo igualzinho cabelo de milho novo. Credo!...

Dona Benta deu parabéns a Mister Kalamazzo pela perfeição com que organizara o trabalho. E vendo o rinoceronte sempre de olho ferrado no americano:

— Que tanta atenção e aquela, Pedrinho? Quindim não perde um só dos movimentos do Mister...

O menino cochichou ao ouvido de Dona Benta: — "Ele é o nosso espião; está de guarda ao americano por causa da sabotagem..."

D. Benta sorriu.

Às oito horas um sino tocou, anunciando o começo do serviço. Os operários dirigiram-se para a sonda.

Começou a batagem. A máquina fazia um movimento de vaivém, puxando e largando o cabo de aço, que subia até à roldana de cima, dava volta e descia, tendo na ponta a haste do trépano. A cada um desses movimentos o cabo erguia o trépano a um palmo de altura e o largava; no largar o trépano caía com a força do peso sobre a rocha do chão; desse modo ia desagregando, esfarelando essa rocha.

Um verdadeiro movimento de mão de pilão que sobe e desce sem parar, fazendo pum-pã, pum-pã, pum-pã... O barulho de pum era a subida do trépano; o barulho de era a descida, com o choque na rocha. Só se ouvia esse barulho e só se via o pedaço de haste que ficava para fora do poço, a subir e a descer na extremidade do cabo.

Quando Narizinho explicou a tia Nastácia o que era aquilo, a negra fez cara triste.

— Tenho dó das minhocas — disse ela. — Esses malvados estão macetando as coitadinhas...

— Boba! Lá na profundidade em que o trépano está não existem minhocas — só rochas.

— Credo! — murmurou a negra, que não sabia o que era rocha.

Pedrinho contou a Dona Benta todo o trabalho da sonda. Mostrou a bomba de injeção, isto é, a bomba que está constantemente injetando água no poço, por dentro do oco das hastes.

— Lá no fundo — disse ele — essa água injetada forma lama com o material escavado pelo trépano, e pela pressão da água injetada a lama vai subindo até derramar-se para fora, na boca do poço. É o meio de extrair o material escavado. Do contrário a rocha moída ficava no fundo, atrapalhando o trépano, que bateria só nele, sem progredir.

— Há outro sistema de tirar o material — a juntou Narizinho. — Por meio da caçambagem. Depois de perfurar um certo tempo, tira-se fora o trépano e desce-se uma caçamba para recolher o material escavado. Mas o nosso processo de injeção de água é mais aperfeiçoado.

Dona Benta achou graça da sabedoria técnica da menina.

As batidas eram incessantes, pum-pã, pum-pã, pum-pã, numa toada tão monótona que até dava sono. A distração dos meninos ficou sendo marcar um ponto de referência na torre a fim de acompanhar a lenta descida da haste. Numa hora de pum-pã a haste descia aí um meio metro mais ou menos, conforme a resistência da rocha perfurada.

Depois de três ou quatro horas de trabalho Mister Kalamazoo fez um sinal. O manobrista da máquina puxou uma alavanca. Tudo parou.

— Que há? — quis saber Pedrinho.

— Há que eles vão emendar mais uma haste — respondeu o Visconde.

— Ahn! É assim! — murmurou Dona Benta.

— Estou compreendendo a razão daquela pilha de hastes ali fora.

— Pois é, vovó — disse Pedrinho. — Temos naquela pilha as hastes necessárias para descer até 1.500 metros de profundidade. Vão sendo sucessivamente atarrachadas para formar um "sistema rígido", como diz o Visconde.

Dona Benta riu-se.

Mister Kalamazoo dividira o pessoal em três turmas, cada uma com oito horas de trabalho, de modo que o serviço fosse contínuo pelas 24 horas do dia. Mas era trabalho monótono. Um pum-pã de dia e de noite, só interrompido pelas paradas para colocar nova haste, ou mudar o trépano.

Quando chegou a hora de mudar o trépano, os meninos prestaram toda a atenção. Os homens suspenderam o trépano até acima da boca do poço e o desatarracharam. Estava com o corte completamente rombudo. Foi substituído por um do mesmo calibre, bem afiado. Enquanto isso, o primeiro usado era posto numa carreta sobre trilhos e levado à oficina do ferreiro. Os meninos acompanharam a carreta, com Emília ajudando a empurrar.

Lá na oficina a carreta parou diante da forja. O ferreiro prendeu o trépano com as correntes dum moitão, ergueu-o e depositou-o dentro da forja, cobrindo-o de pedaços de coque. Fez fogo, que assoprou com um fole enorme. O coque ficou em brasa e o ferro do trépano foi avermelhando até chegar no ponto. O ferreiro manobrou de novo o moitão para tirá-lo da forja e colocá-lo sobre a bigorna, onde o foi malhando até restabelecer o corte perdido.

— Interessante como o ferro se torna maleável quando aquecido — observou Dona Benta, que também viera assistir à operação.

Terminado o conserto, o moitão trabalhou de novo, erguendo o trépano de cima da bigorna e descendo-o num tanque com água.

— Para dar têmpera — respondeu o ferreiro. — Quando se aquece o aço, ele perde a tempera, fica ferro mole; para que novamente ganhe a sua dureza de aço, tem que ser resfriado bruscamente na água.

Enquanto o ferreiro cuidava daquele trépano, lá na sonda os operários concluíam a colocação do novo, e o serviço recomeçou, pum-pa, pum-pã, na monótona toada de sempre.

Dentro dum puxado coberto de zinco havia pelo chão grande número de trépanos de todos os calibres, desde os de dois palmos de diâmetro, uns monstros, até os pequenos de três polegadas.

— Por que essa diferença? — perguntou Pedrinho.

O Visconde explicou que o poço, iniciado com um diâmetro grande, iria diminuindo à medida que se aprofundasse.

— Começamos com o diâmetro de 20 polegadas — disse ele — e iremos tocar no petróleo com o diâmetro de 4 apenas. Isso por causa das entubações. À medida que o poço se aprofunda, tem de ser entubado cada vez que atravessa um lençol de água.

— Para fechar a água, sei — disse Pedrinho.

— Exatamente. E cada vez que é entubado, só pode continuar com um diâmetro menor, porque então o trépano passa a trabalhar dentro do entubamento feito. Se aparece mais embaixo outro lençol de água, temos que entubar novamente, para fechar esse outro lençol de água. Para isso colocamos tubos de menor diâmetro dentro dos tubos que já estão no poço. E a perfuração prossegue com trépanos menores, para caberem dentro desses tubos de menor diâmetro — e assim por diante.

Tia Nastácia gritou lá da varanda que o almoço estava na mesa. Todos correram para a boia, menos o Visconde. O coitadinho jurara a si próprio não largar de Mister Kalamazoo nem um segundo.

O som das pancadas do trépano chegavam à casa de Dona Benta.

— Lá está o pum-pã — disse ela. — Temos de ouvir esse som dia e noite até que o poço chegue ao fim.

Pedrinho, de ouvido atento, murmurou:

— Que som lindo, vovó! Som que contenta o coração...

— Sabe por quê? Porque cada golpe significa um avançozinho para o fundo, para lá onde está o petróleo e, portanto, um passo para a grande vitória. A beleza do som não está nele, está em você, Pedrinho.

Acabado o almoço, Emília foi dar farelo de pão ao peixinho que restava no tanque, e os outros correram à sonda. Sentaram-se e ficaram até a tarde, ouvindo o pum-pã, vendo a haste descer lentissimamente, como ponteiro de relógio, e assistindo às manobras de colocar novas hastes e substituir o trépano.

E assim se passaram duas semanas. O poço já estava a mais de cem metros de profundidade. Certo dia Mister Kalamazoo examinou, conjuntamente com o geólogo-químico, a lama saída do poço e ambos assentaram em qualquer coisa. Em seguida o americano deu uma ordem. O maquinista parou a máquina.

— Que há? — perguntou Pedrinho ao Visconde.

O Visconde respondeu, depois de uma consulta a Quindim:

— Eles vão mudar de sistema. Acham que o terreno está ótimo para ser perfurado com a rotativa.

— Bravos! — exclamou Pedrinho, que já se sentia cansado com o monótono de até ali. — Novidade! Venham novidades!

Para passar dum sistema a outro foram necessárias muitas manobras; tiraram-se umas peças e colocaram-se outras; por fim tudo ficou pronto. Pedrinho prestava toda a atenção. O que mais estranhou foi que a broca, arrumada em substituição do trépano, não era broca; não passava dum pedaço de cano de aço, aí da espessura de menos de dois centímetros, sem corte, sem dentes, sem nada.

O menino ficou intrigado. Se não tinha dentes, como que aquilo, rodando no fundo do poço, conseguia brocar a rocha?

Tudo arrumado, a broca rotativa desceu ao fundo do poço e foi posta em movimento. Começou a girar sobre si mesma. Um silêncio. Acabara-se o pum-pã do trépano. A haste acima da boca do poço, girando, mostrava que a broca lá embaixo também girava. E como a haste descia mais depressa do que no sistema de trépano, Pedrinho viu que Mister Kalamazoo acertara com a mudança.

— Mas como desce? Como a broca perfura? — pensava ele consigo. — Se é um simples cano de aço sem dentes, sem corte, sem nada, como podia corroer a rocha? Mistério. Não conseguindo por si mesmo resolver o enigma, apelou para o Visconde.

— É o seguinte — explicou o sabuguinho científico:

— Mister Kalamazoo, quando a broca vai começar a trabalhar, despeja no fundo do poço um punhado de aço granulado.

— Que aço granulado é esse?

— Uns carocinhos dum aço duríssimo, assim do tamanho de chumbo de caçar paca. A broca vai comprimindo esse aço granulado contra a rocha e a esfarela.

— Ahn! Isso sim! — exclamou o menino com o rosto iluminado. — Eu até já estava com dor de cabeça de tanto parafusar no assunto. Aço granulado, sim...

E foi ao depósito de materiais em procura do tal aço. Encontrou um caixão cheio. Examinou aqueles grãozinhos, apertou um nos dentes para verificar se de fato não era chumbo e com um punhado no bolso correu para o mostrar a Dona Benta, pensando consigo: "Ela vai ficar ainda mais boba do que eu."

De fato Dona Benta ficou boba, não muito, porque era filósofa, mas meio boba.

— Veja só! — disse ela. — Com estas coisinhas de nada conseguem-se efeitos tão grandes. Realmente, a aparência é de chumbo de caça.

Pedrinho também mostrou o aço granulado a tia Nastácia, na cozinha. Mas foi inútil. A negra riu-se.

— Isto é chumbo de caçador, menino. Não está vendo?

Para tia Nastácia tudo quanto era metálico e redondinho havia de ser chumbo de caça e pronto. O menino tentou convencê-la.

— Chumbo é mole, boba, você bem sabe disso. E estes carocinhos a gente pode martelar com toda a força que não achatam, quer ver? — e trouxe o martelo e bateu neles com tanta força que um ficou encravado na cabeça do martelo.

— Convenceu-se? — exclamou Pedrinho vitorioso. Mas a negra, que era teimosa, veio com uma das suas.

— Isso só quer dizer que é chumbo duro — disse ela. — Não pense que me tapeia, não. Se é de "meta" e redondinho, está claro que é chumbo — isso desde que Nosso Senhor fez o mundo. Esta negra é velha, mas não é boba, não.

Pedrinho contou o caso a Dona Benta, achando que só à força de trépano seria possível abrir aquela cabeça dura.

O químico-geólogo era um moço muito distinto, parecido com o Clark Gable. Vinha sempre jantar com Dona Benta, com a qual conversava durante horas, em inglês. Chamava-se Mr. Champignon, filho de francês e americana. Numa dessas prosas, Dona Benta perguntou:

— Meu caro Mr. Champignon, o poço já está a 300 metros e nada ainda de óleo. A que profundidade supõe que poderemos encontrar qualquer coisa?

— Meus cálculos — respondeu o químico — são para 600 metros, isso com base nos estudos comparativos que fiz entre estes terrenos e os do Texas, onde trabalhei muito tempo. Mas o Visconde calcula em mais — calcula em 800 metros.

O fato de aquele cientista americano citar com tanta seriedade a opinião do Visconde fez Dona Benta sorrir.

— Aqui entre nós, Mr. Champignon — disse ela em seguida — acha que o Visconde seja realmente um sábio de verdade? Não tem qualquer dúvida sobre a ciencinha dele?

O químico-geólogo possuía a alma pura, dessas onde os sentimentos invejosos não entram. Respondeu com o coração nas mãos:

— Acho, sim, minha senhora. Acho que o Senhor Visconde de Sabugosa do Poço Fundo (que é como a Senhorita Emília me disse que ele se chama), é na realidade um grande sábio. E isso me assombra extraordinariamente, porque, afinal de contas, não passa dum sabugo. Logo que aqui cheguei meu queixo caiu; primeiro, ao ver um sabugo vivente; depois, ao verificar que era falante; e por fim, ao reconhecer nele um sábio — mas sábio de verdade, desses que descobrem coisas e mudam as diretrizes da civilização.

— Será possível, Mr. Champignon?

— Perfeitamente, minha senhora. Já escrevi a uma sociedade científica da América sobre o estranho fenômeno. Mandei um memorial sobre o Visconde. Estou convencido, entretanto, de que ninguém me levará a sério — e não me queixo. Eu faria o mesmo. Se me falassem dum sabugo assim, eu não acreditaria. Mas vi. Estou vendo, e sou forçado a concordar com Shakespeare quando disse que há na terra e no céu mais coisas que o supõe a nossa vã filosofia. O Visconde, minha senhora, ainda há de assombrar o mundo — quando o mundo puser de lado a incredulidade e prestar atenção nele.

Dona Benta ficou pensativa. Que mistério, a Natureza! E como ainda está atrasada a ciência dos homens! O que ela observava naquele sítio também punha-a atrapalhada, com as ideias zonzas. Tudo coisas que só vendo. Contadas lá fora ninguém acreditaria. O fenômeno emiliano, por exemplo.

Emília nascera simples boneca de pano, morta, boba, muda como todas as bonecas. Mas misteriosamente se foi transformando em gentinha. Todos ainda a tratavam de boneca, por força do hábito apenas, porque na realidade Emília era gente pura, de carne. Fazia tudo que as gentes fazem — comia com ótimo apetite, bebia, pensava, tinha um coraçãozinho lá dentro, e alma e tudo. Como explicar este mistério, esta transformação duma feia boneca de pano em gente?

A mesma coisa com o Visconde, um reles sabugo que ela vira tia Nastácia apanhar ao pé do cocho da vaca. Pois não estava agora transformado em sábio — e em sábio tão sabido que até tonteava o pobre Mr. Champignon?

Dona Benta suspirou.

— Se este meu sítio não é um sonho — disse de si para si — é então a coisa mais espantosa que o mundo ainda viu.

E beliscou-se para ver se estava dormindo ou era sonho. Doeu. Logo, não era sonho.

 

CAPÍTULO 10: EM MARCHA

Aos 230 metros de profundidade a perfuração alcançou um lençol de água, ou um "horizonte aquífero", como dizia o Visconde. Assim que a água transbordou pela boca do cano-guia, Pedrinho correu a prová-la. Estavam todos ansiosos por verem surgir água salgada, sinal da formação marinha daqueles terrenos.

Não era salgada.

— Ainda é água de cima — explicou Mr. Champignon, depois de analisá-la no pequeno laboratório montado perto da sonda. — Tem a mesma composição das águas da superfície. Mas de repente daremos em água que já não é de chuva, e sim fóssil — água retida no seio da terra há milhares e milhares de anos.

No jantar daquele dia Pedrinho repetiu a história da água fóssil, que muito interessou Dona Benta. Ao ouvir falar em água salgada, Tia Nastácia bateu palmas.

— Que bom! Se é salgada, a gente seca ela e faz sal — e fica livre das ladroeiras do Elias. Aquele centurião cobra Crf 1,50 por um saquinho de sal que não dá para nada, o peste...

A água que saía do poço transbordava numa vasão de 200 litros por hora. Mr. Kalamazoo, depois duma conferência com Mr. Champignon, resolveu fechá-la.

— Temos que entubar e cimentar — disse ele. A operação do entubamento do poço divertiu muito os meninos, por ser novidade. O poço fora perfurado até os 230 metros com um diâmetro de 35 centímetros, de modo que cabiam nele os tubos de 30 centímetros. E Mister Kalamazoo mandou que os operários trouxessem para ali 46 tubos desse diâmetro, tirados da pilha competente.

— Por que 46? — indagou Narizinho.

— Porque cada tubo tendo 5 metros, 46 tubos têm 230 metros — ou seja a profundidade do poço — respondeu o Visconde.

Os tubos de revestimento, vindos da América, achavam-se empilhados em vários montes, conforme o calibre. Havia o monte dos de 35 centímetros de diâmetro; o monte dos de 26; o monte dos de 22; o monte dos de 18 e finalmente o monte dos de 12 centímetros.

— Em cada um desses montes — explicou o Visconde — há 1.500 metros de tubos, exceto no primeiro, em que só há 400. Quer isso dizer que podemos realizar cinco entubações sucessivas, uma dentro da outra.

— Que desperdício! — exclamou Emília. — Se eu fosse dirigir o trabalho, faria a entubação dum modo muito mais econômico.

— Como?

— Em vez de cada vez entubar de cima para baixo, com uma entubação dentro da outra, eu entubava em continuação, está entendendo?

Pedrinbo enrugou a testa, sinal de que não estava entendendo.

— Sim — explicou Emília. — Fazia como nos telescópio: uma entubação mais fina continuava do ponto em que a outra parasse — e desenhou no chão a sua ideia.

— É mesmo! — exclamou Pedrinho entusiasmado.

— Você fez uma grande descoberta, Emília. Vamos propor a Mister Kalamazoo o sistema emiliano.

Mas a descoberta da Emília não passava de descoberta de pólvora. Coisa velha, esse processo de entubar telescopicamente, com grande economia de tubos.

— Mas tem um grave defeito — disse o perfurador.

— Raro as águas ficam perfeitamente fecha das, e por isso esse sistema, apesar de mais econômico, nunca é usado. O outro, embora caro, garante o fechamento das águas dum modo absoluto.

Os operários trouxeram para ali os canos de 30 e deram começo à entubação. Cada tubo era agarrado pelo moitão, suspenso na vertical em cima do tubo-guia e enfiado nele até só ficar de fora um palmo. Nesse palmo de fora os "gatos" agarravam, mantendo o tubo em suspenso; e o moitão erguia um segundo tubo, que era atarrachado nele. Desse modo desceram ao fundo do poço os 46 tubos, formando de alto a baixo uma coluna contínua.

— Sim, senhor! — disse Narizinho. — Serviço bem feito. Mas o que mais admiro é o moitão.

Para ele não há peso. Ergue tudo no ar com a maior facilidade. Que grande invenção!

— Realmente — concordou o Visconde. — Esse meio inventado pelo homem de multiplicar a força torna possível os maiores prodígios. Até locomotivas gigantescas são levantadas no ar como se fossem de paina, por meio de guindastes que não passam destes mesmo moitão aperfeiçoado. Cada cano desses, sabe quanto pesa?

— Calculo em dez arrobas.

— Suba! Pesam 300 quilos — e no entanto esse moitãozinho os ergue no ar como se fossem paus de lenha leve.

Depois de descidos os canos, Mister Kalamazoo tratou da cimentação. Para isso fez o seguinte: Primeiro deixou a coluna de canos suspensa um palmo acima do fundo do poço. Depois injetou dentro dela uma boa quantidade de cimento bem mole, que, por meio da força da bomba, foi comprimindo um tampão colocado sobre a massa de cimento. Foi comprimindo, comprimindo, até que o cimento saiu todo da coluna de tubos, deu volta e se espalhou por fora da coluna, enchendo o vão entre ela e as paredes do poço. E como era cimento de secar em contato com a água, foi secando e obturando o lençol de água.

Pronto. A água em cima parou de vasar. Estava fechada. Podiam recomeçar a perfuração. Mas Mister Kalamazoo só retomou o trabalho depois duma parada de três dias para que o cimento endurecesse completamente.

Recomeçado o trabalho da perfuração com as rotativas, Mister Kalamazoo notou que o avanço não estava rendendo nada. Caiu a uma miséria de centímetros por dia, em vez de metros.

— Temos de voltar ao trépano — disse o americano.

— Essa camada lá embaixo a rotativa não fura.

— Como ele sabe que tem de voltar aos trépanos?

— indagou Pedrinho.

— Saber propriamente ele não sabe — explicou o Visconde. — Nos poços de exploração a gente nunca sabe de nada com certeza. Imagina apenas, supõe.

— Que história de poço de exploração é essa?

— Poço de exploração é o primeiro que se abre numa zona. Corresponde portanto a um pulo no escuro. O perfurador não possui dados para saber que terrenos vai atravessar, que águas e quantas vai encontrar, etc. Tem que ir apalpando, experimentando. E é o que vai fazer o trépano. Como qualquer coisa está impedindo que a broca roa as rochas, ele vai experimentar o trépano — mas sem saber se dará resultado.

— E se não der?

— Terá então de recorrer a outro meio qualquer, não sei. Talvez lance mão da broca de diamantes, que é a tira-prosa das rochas muito duras. Depois de aberto o poço de exploração, tudo fica imensamente facilitado. Surgem os poços de produção — ou poço de exportação, como dizem os perfuradores na sua língua de acampamento.

— Facilitado por quê?

— Porque já sabem como é o terreno lá no fundo, quantos horizontes aquíferos há, a que profundidades, e de que rochas são formadas as camadas, etc. Sabem tudo e, portanto, adotam a sonda mais própria para o caso, e não erram, e não apalpam, e fazem o trabalho com rapidez muitíssimo maior. O primeiro poço é sempre o mais demorado e caro.

— O primeiro é o poço-osso — disse Emília — os demais são os poços-canja, não é isso?

O Visconde não respondeu; não gostava do modo de falar da Emília, que lhe parecia cafajéstico.

Colocado o trépano, recomeçou o pum-pã, do qual os meninos já andavam com saudades. De nada valeu. A coisa não ia. Mister Kalamazoo cocou a cabeça. Súbito plaf!, um desastre. De tanto bater na misteriosa rocha, uma haste se enfraqueceu na emenda e quebrou. Lá se foi para o fundo o trépano com todo o resto da coluna de hastes...

Os dois americanos conferenciaram uns minutos sobre a situação. Só havia uma coisa a fazer: salvar as hastes e o trépano caídos no poço.

— Vamos ter pescaria — cochichou o Visconde.

— Bravos! — exclamou Emília batendo palmas. — Pescaria é comigo — e que lindo se pescam um peixe fóssil de milhões de anos atrás!

— Peixe fóssil, nada! Vão pescar o trépano que caiu no poço, só isso.

Os meninos acompanharam com a maior curiosidade a operação da pesca do trépano. Emília assanhadíssima e sempre com esperança do peixe fóssil, não arredou pé dali. Nem almoçar foi nesse dia.

Primeiramente, Mister Kalamazoo estudou com muito cuidado a situação. Mediu as hastes que ficaram fora do poço para achar a profundidade exata em que se dera a ruptura: 189 metros.

All right! — rosnou ele. Quer dizer que há lá dentro 26 hastes.

— Que conta é essa? — indagou a menina.

— Muito simples — respondeu o Visconde. — Como cada haste tem 7 metros, ele dividiu 189 por 7 para saber quantas hastes ficaram dentro do poço

— Mas então errou, porque 189 divididos por 7 dá 27 e não 26. Errou por uma.

— Essa que falta é a haste-guia e o trépano. Ele fez o desconto.

Para realizar a pescaria, o americano desceu um aparelho chamado "pescador", com garras dispostas de modo a prender solidamente a ponta da haste quebrada logo que tocasse nela. Esse aparelho foi fixado numa coluna de hastes e descido cuidadosamente. Quando ia chegando aos 189 metros, Mister Kalamazoo mandou que o manobrista movesse a máquina o mais devagar possível, e ficou com a mão apoiada na coluna descendente para, por meio das menores vibrações, perceber o momento em que o pescador tocasse na ponta da haste partida.

— Veja a atenção dele — observou o Visconde. — Está de olhos fechados para não distrair-se com coisa nenhuma, rodeado dos operários imóveis, todos guardando o maior silêncio. Como não pode ver com os olhos da cara, Mister Kalamazoo está vendo com o tato, à moda dos cegos. Tem que guiar-se pela vibração do metal.

E assim foi. A coluna de haste com o pescador na ponta foi descendo, descendo em marcha lentíssima, até que o americano ergueu bruscamente a mão — sinal ao manobrista para parar. A máquina parou. Mister Kalamazoo abriu os olhos. Pelo tato sentira que o pescador tinha tocado na ponta da haste quebrada.

Restava agora manobrar delicadamente, erguendo e baixando a coluna de pesca, numa série de tentativas, até que a ponta da haste quebrada entrasse dentro das garras do pescador. Sua mão, pousada de leve, não saía da coluna descendente, para sentir o que se passasse lá embaixo. Súbito:

All right! — exclamou. — Está presa.

E estava mesmo. A ponta da haste quebrada fora segura pelas garras do pescador. A operação seguinte seria torcer a coluna de pesca até que uma das hastes da coluna caída cedesse numa emenda qualquer e se desatarraxasse.

As hastes são atarrachadas umas nas outras por meio de luvas. Havia lá no fundo, portanto, 24 luvas, emendando 26 hastes. A que estivesse menos bem apertada, essa destorceria primeira.

— Mas os perfuradores ficam danados — explicou o Visconde — quando em vez de destorcer-se uma das luvas bem debaixo, destorce-se uma de cima.

— Por quê? — indagou Pedrinho.

— Porque destorcendo uma bem debaixo eles sacam fora, duma vez, um bandão de bastes, ao passo que destorcendo em cima só sai uma ou duas hastes, obrigando-os a muito mais trabalho.

Daquela vez os operadores tiveram sorte. A luva que cedeu foi a que ligava a vigésima haste à vigésima primeira, de modo que ao suspenderem a coluna de pesca saíram duma assentada 20 hastes. Só ficaram no poço as 6 restantes.

Repetiram-se as manobras de pesca e por fim as 6 hastes finais também saíram. Restava pescar a haste-guia com o trépano na ponta, operação feita com um pescador de tipo diferente e que correu sem novidades.

Foi um alívio quando o trépano apareceu à boca do poço, com cara de cachorrinho que quebrou a panela (Emília). Uma hora apenas tinha durado a pescaria. Tempo magnífico. Há pescas dificílimas, que duram semanas, até meses. Mister Kalamazoo recolheu um pedacinho de rocha encravado numa fenda do trépano. Achando-a esquisita, levou Mr. Champignon.

A opinião do químico-geólogo não se fez esperar.

— Diábase — disse ele depois do exame. — Demos em cima duma camada de diábase.

O Visconde explicou aos meninos que a tal diábase era uma rocha eruptiva muito dura de furar, que aparece em intrusões, por entre as camadas sedimentárias.

— Uma peste de dureza — disse ele. — Mister Kalamazoo vai suar na ponta do nariz.

E suou. Apesar dos cálculos otimistas de Mr. Champignon sobre a provável espessura da intrusão eruptivas, Mister Kalamazoo levou um mês para perfurar dez metros — e não viu sinal de fim. Estava com medo que a intrusão se prolongasse por cem ou duzentos metros, o que seria uma tremenda maçada. Felizmente a hipótese não se realizou. Aos doze metros a eruptiva chegava ao fim.

O processo usado para perfurar essa rocha foi o da coroa de diamantes, isto é, uma broca com seis diamantes encravados no aço, só com as pontinhas de fora. O diamante é o corpo mais duro que existe; corta a todos os outros e não é cortado por nenhum.

Na perfuração rotativa a rocha é roleteada, de modo que dentro do oco da broca vai ficando um cilindro tão bem calibrado como se feito ao torno.

Depois da broca perfurar aí uns dois metros, o oco da broca fica totalmente cheio por esse cilindro e é preciso arrancá-lo fora. O modo de fazer isso é interessante. Por meio da bomba de injeção o perfurador faz cair dentro da broca um punhado de pedregulho. As pedrinhas entalam-se entre o cilindro da rocha e as paredes internas do tubo da broca, amarrando o cilindro. Depois disso a máquina dá um puxão para cima. O cilindro da rocha quebra-se na base e pode ser retirado do poço.

Com muita dificuldade os meninos levaram para casa um desses cilindros de diábase, para o mostrar a Dona Benta.

— Veja que bonito, vovó! Um rolete de diábase cortado à força de diamantes.

Dona Benta muito admirou aquela rocha quase negra, de granulação finíssima, como a das lousas — e mandou que a levassem para a cozinha.

— Tia Nastácia anda reclamando um tamborete. Isso dá um tamborete de primeira ordem.

A negra assombrou-se de que lá no fundo da terra existissem pedras com aquele formato que "até parecia feito."

— Não existem não — explicou Pedrinho. — Este cilindro foi feito — foi cortado num maciço de rocha por meio da broca de diamantes.

A negra riu-se.

— Diamantes, eu sei disso! O Mister achou essa pedra lá no fundo e agora está inventando essa história de cilindro e diamantes. Tomara ele ter um diamante para botar no anel do dedo. Pensa que sou boba?

A perfuração prosseguiu sem novidades, com rotativa, até aos 500 metros, cota em que, subitamente, irrompeu nova água à boca do poço. Mister Kalamazoo provou-a, com uma careta.

Salt water! — exclamou. — Água salgada!

Era um grande acontecimento.Os meninos correram a provar e também fizeram caretas. No maior assanhamento recolheram numa lata vários litros e foram para casa a fim de assombrar Dona Benta.

— Água salgada, vovó! — gritou Pedrinho da porta.

— Água fóssil. Água que esteve presa no fundo da terra alguns milhões de anos. Prove.

Dona Benta provou, com a mesma careta de Mister Kalamazoo.

— Venha ver, Nastácia!

A negra apareceu, de colher de pau na mão.

— Água salgada, veja! Do poço. Água fóssil — atropelou Narizinho — fazendo a negra provar.

— Chi! Salmoura pura — disse ela careteando também. — Que seria o malvado que despejou sal no poço? Tão caro — mil e quinhentos o saquinho — e gente desperdiçada estragando sal para salgar água de peixe podre...

Custou convencê-la de que era uma salmoura natural que vertia do poço em grande quantidade. Isso a deixou radiante.

— Ora graças! A gente secando no fogo uma salmoura dessas fica sal no fundo — sal igualzinho àquele que a gente compra. Podemos secar bastante água desse poço e fazer um monte de sal para cozinhar um mês inteiro — e pelo menos nesse mês a gente não engorda a barriga daquele turco ladrão. Mil e quinhentos por um saquinho de nada, Sinhá. Onde já se viu sal pelo preço que o turco está vendendo? Vá ser ladrão na terra dele, credo!...

Pedrinho arredou as panelas do fogão e pôs ao fogo o tacho de fazer marmelada, com a salmoura fóssil dentro, e ficou ali até que toda a água se evaporasse e uma camadinha de sal aparecesse no fundo. A negra dava risadas de gosto, à lembrança da peça que iriam pregar no Elias Turco.

O jantar daquela noite (saiu muito atrasado o jantar) foi temperado com o sal pré-histórico do Caraminguá nº 1 — um sal enterrado havia milhões de anos e agora posto de novo em circulação graças à iniciativa dos meninos petroleiros.

Emília levou para a mesa um pires com uma pitada. Volta e meia punha a ponta do dedinho na língua e depois no sal — e na língua outra vez, fazendo uma careta de gosto.

— Isso é que é sal! — dizia. — Pena não terem também pescado um peixe fóssil — dos que moravam nessa água salgada no tempo em que ela foi mar. Teríamos então um quitute completo, tirado do guarda-comida subterrâneo do globo terráqueo.

— Seria perigoso — advertiu Pedrinho.

— Por quê?

— O Visconde fala dum peixe de nome anfioxo, que na opinião dele foi um dos antepassados do homem. Sendo assim, você correria o risco de comer um seu tatatatatataravô fóssil...

— Mas eu sou boneca — disse Emília. — Não pertenço à raça humana.

— Morda aqui! — exclamou o menino espichando o dedo. — Você é tão gente como eu. É gentíssima até. Essa história de boneca, Emília, ninguém mais engole...

 

CAPÍTULO 11: PETRÓLEO, AFINAL!

Depois dos 700 metros os meninos notaram que o perfurador e o químico-geólogo vinham prestando muita atenção aos testemunhos extraídos do poço. Eles chamavam testemunhos aos tais cilindros de rocha obtidos por meio da perfuração rotativa. Num galpão armado à esquerda da sonda esses testemunhos iam sendo dispostos uns em cima dos outros, formando altas colunas, com papeletas indicativas das profundidades. Desse modo ficava perfeitamente visível a constituição do subsolo daquela zona.

Pedrinho aproveitou-se da vantagem para desenhar em várias folhas de papel-cartão emendadas o Corte Geológico dos Terrenos de Vovó, de acordo com as indicações de Mr. Champignon. Marcava no papel, com riscos horizontais, as camadas atravessadas, indicando a espessura de cada uma e o material de que eram compostas. Esse Corte Geológico foi pregado na parede da sala de jantar, em diversas secções, ocupando-a toda.

Certo dia, ao extrair um testemunho, o rosto de Mister Kalamazoo iluminou-se. Era um cilindro de arenito um tanto diverso dos anteriores na cor e também mais poroso. O americano chamou o químico-geológo e por algum tempo conferenciaram, com muitos exames e cheiramentos do cilindro. Mr. Champignon levou um pedaço para o laboratório. Quando voltou tinha a cara risonha.

— Sim — disse ele. — É um arenito gasífero, sinal evidente de que estamos bem perto do petróleo.

Disseram isso em inglês, que o rinoceronte imediatamente traduziu para o Visconde e este correu a contar aos meninos.

— A broca está perfurando uma camada de arenito poroso gasífero, isto é, impregnado de gás de petróleo. Quer dizer que estamos perto dum horizonte petrolífero.

A alegria foi imensa. Houve hurras e pinotes. Pedrinho foi correndo dar a boa notícia a Dona Benta.

— Gás, vovó! Acaba de sair um arenito poroso impregnado de gás — de gás de petróleo! Ora, onde há fumo, há fogo. Logo, se temos gás de petróleo, então é que o petróleo está perto. Um não anda sem o outro.

— A que profundidade, meu filho? — Setecentos e cinquenta metros.

— Então o nosso viscondinho vai ganhar de Mr. Champignon, pois previu o petróleo a 800 metros. É um danado...

Dada a boa notícia, Pedrinho voltou para a sonda na volada, de medo que o petróleo jorrasse na sua ausência. Mas não jorrou. A perfuração ainda prosseguiu por mais uns trinta metros sem alcançar o petróleo; mas cada novo testemunho que saía vinha com mais evidências dele. O arenito poroso já não era gasífero e sim gordurento, a ponto de sujar as mãos de quem o pegava. Destilando um pouco desse arenito, Mr Champignon obteve um frasco dum óleo pardo-esverdeado, que classificou de excelente petróleo parafinoso — um dos melhores tipos que existem.

Depois dessa prova os dois americanos conferenciaram animadamente. Mr. Champignon era de parecer que se suspendesse o trabalho da perfuração e se esvaziasse o poço. Calculou que a coluna de água lamacenta que enchia o poço estava exercendo uma pressão de 9U atmosferas, o bastante para impedir que o petróleo viesse à tona, caso já tivessem penetrado num horizonte petrolífero dos não muito grandes. Mas Mister Kalamazoo, que com a sua longa prática de poços adivinhava as coisas, resolveu perfurar um pouco mais, e o poço no dia seguinte chegou aos 798 metros.

— Agora, sim — disse ele, vendo a boca do cano-guia referver de borbulhas de gás ascendente. — Podemos esvaziar o poço, depois de colocado o blowout preventer,

Blowout preventer não passa do nome inglês do registro ou torneirão que se coloca na boca do poço para impedir que o petróleo jorre e inunde tudo. Pronuncia-se blôáut priventer.

Um fato daquela importância precisava ser sabido lá em cima — e Pedrinho despachou Emília na carreira com recado a Dona Benta.

Emília saiu voando.

— Dona Benta! — gritou ela ao chegar. — Já vão botar no poço o blowout preventer e Pedrinho quer que a senhora corra à sonda quanto antes por que "a coisa está por um fio."

Dona Benta, ignorante do que fosse blowout preventer, fez cara de interrogação muda. Emília explicou tratar-se do registro, do torneirão que impede que o petróleo faça asneiras.

Percebendo que se tratava de negócio sério, Dona Benta chamou tia Nastácia e botou um xalinho ao ombro, depois de caçoar com Emília dizendo que ela, às vezes, bem precisava dum blowoutezinho quando asneirava demais. Em seguida murmurou, voltando-se para a negra:

— Será possível que estes diabinhos tirem mesmo petróleo?

— E Sinhá ainda duvida? — respondeu a preta. — Que é que não fazem? Depois que deram comigo na lua, cozinhando para S. Jorge, com aquele dragão horrendo no quintal, eu não duvido de mais nada nesta vida...

Enquanto caminhavam, uma grande agitação refervia na sonda. Por descuido no embarque das peças, na América, houve troca de caixões, e em vez de vir a caixa com as peças do blowout preventer, veio um com... dois aparelhos de rádio!

— Sabotagem! — gritou Pedrinho. — Juro como foi sabotagem daqueles trustes malvados. E agora Visconde?

O Visconde não sabia o que responder. Era um caso novo, nunca discutido nos tratados de petróleo que ele andava lendo. E o pior de tudo foi que justamente naquele instante um ronco subterrâneo se fez ouvir, e logo depois as borbulhas do poço pipocavam com redobrada violência.

— Estamos perdidos! — gritou Mister Kalamazoo.

— O petróleo vai sair e não temos meio de fechar o poço — e no seu desespero deu murros na cabeça e puxões nos cabelos louríssimos.

— Que há? — perguntou Dona Benta, que vinha chegando com a preta e a Emília. — Será que Mister Kalamazoo enlouqueceu?

— É que não há blowout preventer! — respondeu Pedrinho muito aflito. — Sabotaram a remessa de materiais, mandando numa caixa, em vez do blowout preventer, dois aparelhos de rádio, imagine...

— E agora?

— Agora eles não sabem o que fazer. O gás está borbulhando com força cada vez maior. A coluna de água do poço, que pesa 90 atmosferas, está resistindo por enquanto. Mas quando não puder mais resistir ao impulso do petróleo? Aí então vai tudo pelos ares e o petróleo derrama-se por estes campos, e enche o Caraminguá e inunda tudo e a senhora leva a breca, tal qual a companhia americana que faliu por ter tirado petróleo demais...

— Nossa senhora! — exclamou Dona Benta pondo as mãos. — Que vai ser de mim, Santo Deus?

— O pior — continuou Pedrinho — é que Mister Kalamazoo perdeu completamente a cabeça. Olhe o desespero dele...

— A cabeça não digo — observou Emília — mas os cabelos vai perder todos, se continua a arrancá-los assim...

Nesse momento o estrondo subterrâneo roncou mais forte.

— Chi! — exclamou tia Nastácia. — Trovoada no fundo da terra é coisa que nunca vi. Vai chover grosso às avessas...

A situação era verdadeiramente trágica. Mr. Champignon deixou-se cair sentado sobre um trépano, com a cabeça entre as mãos. Estava arrasado. Mister Kalamazoo andava de um lado para outro a ameaçar os céus com os punhos fechados e a dizer nomes que deviam ser feíssimos — e felizmente só Quindim entendia. Vendo os chefes naquele estado de desespero, os operários olhavam--se atônitos, sem saberem o que fazer. Dona Benta, tomada de medo, caiu sentada, com aquela sua célebre sufocação cardíaca dos momentos perigosos. E os roncos subterrâneos cada vez mais fortes... E a boca do poço cada vez mais borbulhante de gás...

No meio de tanto horror, só Emília e o Visconde conservavam-se absolutamente donos de si. Foram conferenciar com Quindim. Conferência rápida. Quindim aprovou a ideia de Emília e levantou-se do chão onde estava deitado. Pesadamente encaminhou-se para a sonda, seguido do Visconde, enquanto Emília voava ao escritório.

Ao chegar à sonda Quindim entrou e, com enorme assombro de todos, plantou-se sentado em cima do cano-guia!

Apesar do seu desespero, Mister Kalamazoo não pôde deixar de rir-se. Em toda a sua longa vida de perfurador, jamais tivera ensejo de ver um blowout preventer daquela marca — blowout paquidérmico!

— Pronto! Está tudo salvo! — gritou o Visconde. — A coluna d'água do poço faz sobre o petróleo que quer subir um peso de 90 atmosferas. Quindim pesará outras tantas atmosferas — e com todas essas atmosferas somadas juro que escoramos o petróleo até que o blowout chegue.

Estas últimas palavras fizeram Mister Kalamazoo arregalar os olhos.

— Até que o blowout chegue, Visconde? — repetiu ele. — Que história é essa?

— Sim, até que chegue da América. Emília foi ao escritório fazer a encomenda. Basta que Quindim escore o petróleo uns vinte minutos e teremos aqui o blowout preventer.

O americano ficou na mesma.

— Sim — continuou o Visconde. — Emília vai pedir o blowoout com a maior urgência. Já pediu. Olhe a carinha dela...

Emília vinha voltando, muito lampeira, de mãos à cintura.

— Pronto! — exclamou ao chegar. — Pedi à fábrica que mandassem imediatamente o blowout esquecido e passei-lhes uma descompostura tremenda. Em quinze minutos teremos o torneirão aqui.

O absurdo era tamanho que Mister Kalamazoo sentiu ímpetos de amassar Emília com um soco.

— Temos o blowout aqui, como, boneca duma figa? — berrou ele.

— Figa é o seu nariz, sabe? — respondeu ela abespinhada. — Pedi o blowout à fábrica sim, com ordem para que o mandassem com a maior rapidez pelo "Faz-de-Conta nº 4", que é o avião mais veloz da minha empresa.

Mister Kalamazoo suspirou e foi sentar-se no trépano ao lado de Mr. Champignon. E também enterrou a cabeça entre as mãos, no maior desnorteamento da sua vida.

Minutos se passaram. Quindim, firme em cima do poço, somava o seu peso ao peso da coluna d'água e ambos iam escorando o petróleo, o qual roncava lá no fundo cada vez mais furioso por sair. Súbito, um zunido distante atraiu a atenção de todos. Um ponto negro apareceu no céu azul. Era o avião da Emília. Chegou. Posou. O piloto fez sinal aos operários e gritou-lhes:

— Trago aqui uma grande caixa, pesadíssima. Venham retirá-la.

Os operários foram e arrastaram a caixa até à sonda. Abriram-na.

— Mais rádio? — gritou Pedrinho aproximando-se. Não. Dessa vez a encomenda viera certa: um blowout preventer novinho.

Quando Mister Kalamazoo viu que era mesmo um blowout, seu assombro não teve limites. Ficou completamente bobo. Impossível compreender o milagre. Por fim acordou do estuporamento e correu a colocar a peça chegada. Mas era impossível atarrachá-la no cano-guia, com o rinoceronte sentado em cima — e tirar Quindim dali era soltar o petróleo. Que fazer?

I will take a chance — murmurou ele, como quem diz: Vou arriscar. Deu ordem aos operários para que limpassem e engraxassem a rosca do cano-guia e a do blowout, e depois de tudo arrumado do melhor jeito pediu a Quindim que pulasse fora. Quindim pulou e os operários, sem perda de um segundo, ergueram a pesada peça e puseram-se a atarrachá-la no cano-guia. Mas com a saída de Quindim a coluna d'água do poço não escorou o petróleo e começou a jorrar a metros de altura, enlameando tudo.

Hurry up! Hurry up! era só o que sabia dizer Mister Kalamazoo. Depressa! Depressa! E nunca homem nenhum foi tão bem obedecido. Os operários trabalharam como relâmpagos de pernas e braços. Num instantinho o blowout foi atarrachado.

E não sem tempo. Assim que os homens deram a última volta na rosca tiveram de fugir dali aos pinotes, porque o petróleo ganhara grande impulso e arremessara para o ar, com enorme violência, o resto da coluna d'água. Uma chuva de lama barreou a torre de alto a baixo, espirrando até em Dona Benta e tia Nastácia, distantes dali. Em seguida o jorro de lama avermelhada foi substituído por um jorro negro, tão violento que arrebatou a parte superior da torre.

Todos correram para longe, numa gritaria.

— Petróleo! Petróleo!

Era o petróleo, afinal! Era o jorro de petróleo salvador do Brasil, que se levantava numa coluna magnífica até quarenta metros para o céu. Lá fazia uma curva de repuxo na direção do vento e caía sob forma de chuveiro forte. E como aconteceu que Dona Benta, tia Nastácia e os meninos estivessem na direção do vento, foram colhidos pela chuva de óleo, ficando completamente empapados...

Emília e o Visconde avançaram, por dentro da chuva negra, até à roda do blowout, que torceram a fim de fechar o registro. Foram fechando-o e, à medida que o registro se fechava, o repuxo de petróleo foi diminuindo, baixando, até que cessou de todo. O Caraminguá nº 1, o primeiro poço de petróleo no Brasil, estava controlado — isto é, de freio nos dentes, humilde como um cavalo que abaixa a crista diante da força do peão!

Um hurra tremendo ecoou. Os operários batiam palmas e gritavam, saudando o maravilhoso acontecimento. Tinham sido os obreiros do Poço Número 1 — o poço que iria mudar os destinos de um país, arrancando-o da sua eterna anemia econômica para lançá-lo na larga Avenida do Progresso Sem Fim.

— Viva Mister Kalamazoo! — gritou Pedrinho.

— Viva Quindim o blowout de carne! — gritou Emília.

— Viva o Visconde, o grande geólogo! — gritou Narizinho.

Os operários, reunidos a pouca distância, acompanhavam as aclamações dos meninos.

— Vocês esqueceram do pobre Mr. Champignon — lembrou Dona Benta.

— Viva Mr. Champignon! — gritou Narizinho.

O químico-geólogo, lá da porta do laboratório, agradeceu a homenagem com uma curvatura de cabeça.

— Tudo está ótimo — disse Dona Benta. — Mas toca a voltar para casa correndo. Estamos todos que nem pavios de lampião de querosene...

Realmente assim era. Ninguém escapara ao banho de óleo negro. O pobre Visconde, então, que era sabugo e portanto mais absorvente que os de carne, esse ficou empapado até à medula.

— Nós ainda nos arranjamos com um bom banho — disse Dona Benta. — Mas o Visconde, não sei. Só se tia Nastácia o ferver um dia inteiro no tacho de fazer marmelada. Como há de ser, Nastácia?

— Deixe ele comigo que dou jeito, Sinhá — respondeu a negra, pegando no Visconde e examinando-o.

— Chi! Está que nem uma esponja. O jeito que vejo é um só: mudar o corpinho dele — botar um sabugo novo...

Em casa Nastácia pôs a ferver várias tachadas e latas de água e foi buscar seis pães de sabão na venda do turco. Nunca o pessoal do sítio se ensaboou com tanta fúria. Até cacos de telha entraram em cena. Mas o petróleo do Caraminguá nº 1 era terrível. Entranhava tão fundo que apesar das lavagens todos ficaram com um cheirinho de querosene durante três dias.

As roupas foram empilhadas num monte no quintal para uma fervura de horas. (Mas mesmo depois da fervura ficaram por muito tempo com um vago "perfumezinho" a petróleo.)

Lá na sonda os americanos, os operários e o rinoceronte fizeram o mesmo. Lançaram-se no ribeirão para uma lavagem a fundo...

Emília, no seu banheirinho, estava a esfregar-se furiosamente com um caco de telha. De repente disse:

— O petróleo pode ser uma excelente coisa, pode ser a riqueza das nações, pode ser ouro líquido ou o que quiserem. Mas no corpo da gente é, com perdão da palavra, uma grandissíssima porcaria...

Dessa vez não houve quem não concordasse.


CAPÍTULO 12: O ABALO DO PAÍS

A abertura do Caraminguá nº 1, com uma vasão de barris por dia, começou a espalhar-se fulminantemente pelo País inteiro. Os jornais deram a notícia, com base numa comunicação mandada por Pedrinho; mas como essas notícias sensacionais são muitas vezes peta, todos se mantiveram na dúvida. Um deles publicou o comunicado de Pedrinho com este título: Si non é vero... Outro escreveu que quando a esmola é demais o santo desconfia.

Pedrinho danou e mandou segundo comunicado, convidando os incrédulos a virem ver. Desde que se tratava dum fato, nada mais simples do que averiguá-lo. Que viessem ver, cheirar, provar o magnífico petróleo parafinoso do poço aberto no sítio de Dona Benta.

Esse novo comunicado de Pedrinho, que ele assinara com o seu futuro nome de gente grande, Pedro Encerrabodes de Oliveira, causou sensação, apesar da esquisitice do sobrenome Encerrabodes, que levava o povo a rir-se e pilheriar. Quem era esse tal Encerrabodes? Ninguém sabia. Só as crianças do Brasil sabiam que Pedro Encerrabodes de Oliveira não podia ser outro senão Pedrinho, o neto de Dona Benta Encerrabodes de Oliveira.

— É Pedrinho! É Pedrinho! — afirmaram as crianças de todo o país. — É o neto de Dona Benta! Ele disse que ia tirar petróleo e tirou mesmo!...

Mas as gentes grandes, marmanjões pretensiosos, riram-se das crianças, dizendo: "Há de ser então uma das muitas maluquices do tal sítio de Dona Benta, que o tal Lobato vive contando. Brincadeira."

Certo jornal do Rio de Janeiro, porém, criou coragem e mandou um seu repórter investigar o que havia. O repórter foi recebido por Dona Benta.

— Minha senhora — disse ele — circulam boatos de que foi aberto aqui em suas terras um poço de petróleo. Mas ninguém lá fora acredita nisso; primeiro, porque está oficialmente assentado que o Brasil não tem petróleo; segundo, porque o petróleo surgiu justamente aqui no seu sítio, que tem fama de maluco; terceiro, porque a comunicação aos jornais foi feita por um Senhor Encerrabodes que ninguém nunca viu mais gordo. Apesar disso, o meu jornal encarregou-me de chegar até aqui para ver o que há.

Dona Benta desceu os óculos para a ponta do nariz.

— Foi bom que viesse, meu senhor. Por estranha que pareça a notícia, é a verdade pura. Meus netos meteram-se a estudar geologia com o Visconde de Sabugosa e convenceram-se da existência do petróleo aqui no sítio. E como são levados da breca, arranjaram sonda, perfurador, operários especialistas e puseram-se a furar. Passaram meses nisso, até que enfim o petróleo apareceu num grande jato de 40 metros de altura, que nos deixou a todos como pintos pelados que caem no melado.

O repórter refranziu a boca num risinho de incredulidade. Evidentemente aquela velhota estava a mangar com ele, ou então era uma caduca que não sabia o que dizia. E respondeu zombeteiro:

— Pois muito bem. Se saiu petróleo em quantidade para um banho em todos da casa, eu também queria tomar meu banhozinho de petróleo. É possível?

— Acho que sim — respondeu Dona Benta. — Mas isso não é comigo. Vou chamar meu neto para que ele satisfaça o seu desejo de banho.

E voltando-se para a cozinha:

— Nastácia, onde andam os meninos?

— Na sonda, Sinhá — respondeu a preta. — Sinhá bem sabe que eles só aparecem por aqui quando a fome aperta.

— Chame Pedrinho — ordenou Dona Benta. Tia Nastácia foi à janela e deu um assobio agudo. Momentos depois o menino aparecia na varanda.

— Que há, vovó?

— Há aqui este senhor, repórter do "Correio da Manhã", que veio ver se é possível tomar um banho de petróleo. Diz que lá fora ninguém acredita na descoberta do petróleo aqui no sítio, nem sabem quem é o tal Encerrabodes que mandou a comunicação aos jornais.

Pedrinho mediu o repórter de alto a baixo.

— Pedro Encerrabodes, neto aqui de vovó, sou eu, o autor da notícia aos jornais. Quanto ao banho que o senhor deseja, basta que me siga. Vai ser prontamente banhado. Aquele modo seguro de falar encabulou o repórter, cujo risinho de ironia ficou um tanto desmanchado; e o mais que pôde dizer foi: "Pois estou às suas ordens."

Pedrinho conduziu-o à sonda. Assim que viu aquele acampamento petrolífero, com uma torre aprumada para o céu, e máquinas de todos os lados, e oficinas e casas de operários, o repórter amarelou. Seria verdade? Um americano grandalhão estava a conversar com outro sujeito também com cara de americano. Pedrinho apresentou-lhes o repórter.

— Mister Kalamazoo, permita-me que lhe apresente aqui o repórter do "Correio da Manhã." Ele veio de longe para tomar um banho de petróleo, porque é dos tais São Tomes do ver para crer.

How do you do sir? — rosnou o americano, moendo a mão do repórter com um shakehand de quebrar diábase.

— E aqui temos Mr. Champignon, nosso químico-geólogo — continuou Pedrinho, indicando o outro americano.

How are you? — disse este, acabando de moer a mão do jornalista com outro shakehand de 20 atmosferas.

O repórter suava frio sacudindo a mão no ar. Mesmo assim arregalou os olhos quando Pedrinho fez a apresentação do Visconde de Sabugosa e do Quindim. Seu espanto foi imenso, ao dar com o rinoceronte. Quis fugir. Quis sacar do revólver para abater aquele monstro africano que o olhava com uma estranha expressão de bondade.

Vendo, porém, que o paquiderme não se movia, aquietou-se, com o suor a pingar-lhe da testa em gotas graúdas.

— Pois é — disse Pedrinho. — São estes os homens que nos abriram o poço do Caraminguá nº 1, o qual está controlado por um possante blowout preventer e tem capacidade para 500 barris por dia.

Narizinho e Emília aproximaram-se.

— Esta aqui é minha prima — disse o menino — e esta outra é a celebérrima Emília de Rabicó. Nós apenas "sapeamos" o serviço do petróleo. Quem tudo dirige é ali Mister Kalamazoo, auxiliado por Mr. Champignon. No começo tivemos receio de que nos sabotassem o poço, mas hoje gosto de confessar em público que as nossas desconfianças não tinham fundamento. Ponho a minha mão no fogo pela lealdade desses dois homens e de todos os operários que eles trouxeram.

O repórter nem sabia o que dizer, de tanto que tudo ali lhe atrapalhava as ideias. Seria possível, então? Seria possível que o comunicado dos jornais representasse a verdade pura?

— Senhor Encerrabodes — disse ele — confesso o meu desnorteamento absoluto. Vim cá certo de não ver coisa nenhuma, pois a comunicação feita aos jornais tem todas as aparências duma engenhosa mistificação. Mas este campo petrolífero esta sonda, estas máquinas, estes homens louros, tudo isto me faz crer que pelo menos intenção de descobrir petróleo existe aqui. Mas entre intenção de tirar petróleo e petróleo de verdade vai uma grande distância. Eu só me daria por cabalmente convencido se visse, cheirasse, provasse o petróleo supostamente produzido aqui.

— Nada mais fácil — disse Emília. — Nós provamos tudo quanto afirmamos, embora o mundo se recuse a acreditar em certas coisas, como, por exemplo, a nossa viagem ao céu. Há de crer que muita gente ainda duvida disso, apesar de termos trazido de lá a prova — um anjinho de asa quebrada! Com o petróleo, porém, a coisa muda. É só abrirmos a torneira ali no blowout e pronto: está provado o petróleo.

O tom seguro daquela criaturinha, que positivamente era uma boneca falante, tonteou o repórter. Novas gotas de suor pingaram-lhe da testa. Chegou a duvidar de si, a pensar que estivesse sonhando; e disfarçadamente beliscou a perna para ver se estava mesmo acordado. Viu que estava e suspirou. Na verdade não compreendia nada de nada de tudo aquilo.

— Pois muito bem — disse ele por fim. — Mostrem-me o petróleo e estará tudo acabado.

Pedrinho cochichou qualquer coisa ao ouvido do Visconde, o qual foi conferenciar com Quindim, o qual chamou Mister Kalamazoo, trocando com ele várias palavras. All right — foi a resposta do americano com um pisco para Pedrinho.

— Muito bem — murmurou este, compreendendo a significação da piscadela. — O senhor repórter vai sentar-se aqui por um momento, enquanto Mister Kalamazoo mexe no blowout. O blowout é o registro que fecha o poço. Abrindo esse registro, o petróleo jorra. Prepare-se, pois, para assistir a um belíssimo jorro de petróleo.

O pobre repórter, que nunca tinha visto petróleo, sentou-se no ponto indicado pelo menino, justamente num lugar de vento a favor, de modo que quando o petróleo jorrasse a chuva do repuxo viria cair bem em cima dele. Não desconfiou de nada, nem desconfiou de o deixarem ali sozinho e se passarem todos para o lado oposto.

Mister Kalamazoo dirigiu-se ao blowout e torceu a manivela. Imediatamente um jorro potentíssimo de petróleo negro elevou-se no ar a dezenas de metros de altura, abriu-se lá em cima em penacho e desceu sob forma de chuva grossa bem sobre o ponto onde se achava sentado o mísero repórter.

Que banho! O jornalista fugiu dali com quantas pernas tinha, mas não escapou de ficar empapado até à medula dos ossos. E quando parou a cinquenta metros de distância e olhou para trás, o que viu foi o americano fechar o torneirão, pondo fim ao tremendo repuxo de óleo negro.

Os meninos correram ao encontro do homem petrolizado.

— Então? Está convencido? — indagou Pedrinho. O repórter nem falar podia. O petróleo entrara-lhe pela boca, ouvidos e nariz, causando-lhe um mal medonho. Cuspia, espirrava, tentava limpar a boca — mas limpar como, se as mãos, o lenço, tudo não passava dum empapamento de petróleo?

— Ele é capaz de morrer envenenado — disse Mr. Champignon, e ordenou aos operários que o conduzissem ao ribeirão e o lavassem a fundo. O pobre repórter foi levado ao rio, despido e ensaboado por dez mãos calosas, ásperas como lixa. E como suas roupas ficassem inutilizadas e nenhum dos homens da sonda lhe quisesse ceder um terno, o remédio foi vestirem-no com uma saia e um velho casaco de Dona Benta, enquanto tia Nastácia lhe fervia, secava e passava as roupas com que viera.

Teve de dormir no sítio, porque sua roupa só ficaria pronta na manhã seguinte — além de que a brincadeira o deixara completamente derrancado.

— Uf! — exclamava o mísero na varanda. — Fui bem castigado da minha incredulidade, mas acho que abusaram de mim. Não era necessário irem tão longe.

— Longe, meu caro? — disse Dona Benta. — Mas não foi o senhor mesmo quem me disse, aqui nesta varanda, que desejava um banho de petróleo? Pedrinho nada mais fez do que satisfazer o seu pedido.

— Sim, mas eu estava caçoando. Disse aquilo por brincadeira.

— E nós também lhe demos o banho de petróleo por brincadeira — disse Emília. — Tudo brincadeira.

— É, mas quase me iam envenenando. Como eu não esperasse a tal chuva de petróleo, deixei-me colher por ela

— e bebi, sim, bebi petróleo. Ugh! Que gosto horrível! Tenho a impressão de que nunca mais me sairá da boca...

Tout passe, tout casse, tout lasse — murmurou Dona Benta, repetindo um verso de Vítor Hugo. — Tudo passa, meu senhor. Esse gosto de petróleo em sua boca passará também. Sossegue.

Tia Nastácia deu-lhe um chá de losna bem forte e arrumou-lhe uma boa cama no quarto de Pedrinho. O repórter deitou-se cedo, não querendo nem que lhe falassem em jantar. Impossível comer qualquer coisa com aquele horrível gosto na boca.

No dia seguinte amanheceu melhor, e assim que tia Nastácia lhe levou as roupas fervidas, lavadas e passadas, ele despiu-se da saia e do casaco de Dona Benta e envergou-as. E tratou de raspar-se dali.

— Minha senhora — declarou ao despedir-se. — A tragédia de ontem servirá para uma coisa: fazer que o Brasil inteiro acredite no grande milagre realizado neste sítio. A descoberta do petróleo representa um fato de significação mais alta do que podemos conceber. Representa algo mais importante do que a própria independência do Brasil. No dia 7 de setembro o Brasil proclamou a sua independência política, mas só agora acaba de proclamar a sua independência econômica. Em que dia foi?

— O poço jorrou no dia 9 de agosto — respondeu Narizinho.

— Pois o 9 de agosto vai ficar imortalizado na história do nosso País. A República Argentina considera feriado nacional o dia 19 de dezembro, data do aparecimento do petróleo em Comodoro Rivadávia. Breve teremos aqui no Brasil o 9 de agosto transformado em data nacional, ao lado do 7 de setembro. Este comemora a nossa independência política; o 9 de agosto comemorará a nossa independência econômica.

— Muito satisfeita fico de que assim seja — disse Dona Benta. — Eu estou que não caibo em mim de contente, porque foram meus netos os heróis da grande façanha. Começaram a coisa brincando e tudo acabou a sério. Graças a eles, ao Visconde e ao Quindim, temos petróleo — o Brasil tem petróleo e, portanto, o elemento básico para tornar-se uma nação rica e poderosa. Pode escrever no seu jornal que não existe no mundo nenhuma avó mais feliz do que eu.

— Nem mais rica! — berrou Emília. — O poço está dando 500 barris por dia. A Cr$ 30,00, são 15 mil cruzeiros por dia. Qual é a avó por esses mundos a fora que tem, ali na batata, 15 mil cruzeiros por dia?

Os olhos do repórter brilharam. Quinze mil cruzeiros por dia! Quatrocentos e cinquenta mil por mês! Cinco milhões e quatrocentos mil por ano! Uma verdadeira mina. Ah, se ele pudesse tirar uma casquinha... Se aquela velha se apaixonasse por ele...

Logo depois da partida do repórter os jornais do Brasil inteiro puseram de lado as notícias de crimes americanos e das mexericagens políticas para só tratar do petróleo. Petróleo! Petróleo! A descoberta do petróleo no Brasil! Um poço de 500 barris por dia no sítio de Dona Benta! A avó milionária! Cinco milhões e quatrocentos mil cruzeiros por ano, só do primeiro poço! O banho de petróleo! A chuva de petróleo! Um sabugo científico que é um formidável geólogo! Um rinoceronte que sabe inglês e não chifra gente! Mister Kalamazoo e Mister Champignon!

Essas notícias sensacionais determinaram uma verdadeira romaria ao sítio. Automóveis e mais automóveis, cheios de figurões, apareciam por lá, um atrás do outro. Engenheiros, industriais, capitalistas, curiosos — não havia quem não viesse ver, cheirar, provar o petróleo de Dona Benta.

Telegramas foram enviados para a América do Norte. O Rockefeller mandou oferecer pelo sítio 5 milhões de dólares.

— Não vendo por preço nenhum — foi a resposta de Dona Benta. — De que me adianta uma bolada de 5 milhões de dólares? No que empregar isso? Onde encontrar um sitiozinho como este, tão cheio de árvores velhas, de recordações agradáveis — e tão rico em petróleo? Não, não e não.

Na impossibilidade de adquirir o maravilhoso sítio, os especuladores trataram de segurar as terras vizinhas. A fazenda do Coronel Teodorico, um sapezinho sem valor nenhum, foi vendida por 10 milhões de cruzeiros. O Elias Turco cedeu o ponto da sua venda por 500 mil cruzeiros — e lá se foi para a Turquia, com grande contentamento de tia Nastácia. A negra nunca lhe perdoou o desaforo de pedir Cr$ 1,50 por um saquinho de sal.

— Que vá furtar na terra dele — foi o seu comentário quando soube da notícia.

Um sitiante de nome Chico Pirambóia, caboclo opilado que mal tirava das suas terras (dez alqueires) o necessário para não morrer de fome, vendeu a propriedade por 230 mil cruzeiros — e ainda levou o capadinho de ceva e a cabra.

Organizaram-se logo companhias petrolíferas para fazer estudos nas terras em redor do sítio de Dona Benta e perfurar. A vila próxima, que era um vilarejo ordinaríssimo, com duas vendas ainda piores que a do Elias Turco, a igrejinha muito pobre, um farmacêutico caolho, dois curandeiros e um antigo coronel da guarda nacional, começou a transformar-se com rapidez vertiginosa. O preço das casas e terrenos subiu a galope. Casebres que antes do petróleo não alcançavam nem 800 cruzeiros, eram vendidos por 30, 40, 50 mil cruzeiros. Casas novas, bonitas, começaram a erguer-se nos terrenos vagos. Vinha gente de fora aos bandos — gente das companhias de petróleo e aventureiros. Surgiram casas de sorvete, um cinema, dois, três, dez bares. Depois, um cabaré com umas francesas roucas, onde às vezes rebentavam brigas medonhas.

— Isso é que não está direito — comentou tia Nastácia. — Nossa vila sempre foi uma coisa quietinha, sossegadinha — agora está que nem aquela fita que eu vi uma vez, cheia de homens com cintos cheios de balas, que bebem nos balcões e de repente sacam do revólver e espatifam o lampião do forro e garram a moer gente com cada soco que parece martelada. Credo! Eu até nem tenho mais coragem de chegar até lá.

Tia Nastácia em toda a sua vida, só tinha assistido a uma fita de cinema. "Os Bandoleiros do Far West", em que havia tanto tiro em lampião, e tantas lutas corpo-a-corpo e tantos murros de arrebentar cara, que ela nunca mais quis saber de cinemas. "Credo!" — dizia lembrando-se da fita. "Eu estava vendo a hora em que aqueles homões vinham de lá pra cima da gente nas cadeiras, de tiro e soco, não deixando um vivo. Suei frio daquela vez, mas nunca mais. Cruz, credo, canhoto..."

 

CAPÍTULO 13: GRANDES MUDANÇAS NA VILA

Com o aparecimento do petróleo, a conversa nos serões de Dona Benta tornou-se exclusivamente petrolífera. Quem falava era sempre o Visconde, sabidinho como ele só. No dia imediato ao banho do jornalista, sua dissertação foi sobre o modo de refinar o petróleo bruto.

— Porque o petróleo bruto — disse ele — só serve para queimar. Mas se o refinarmos, obteremos uma porção de produtos de muito valor, como a benzina, a gasolina, o querosene, o supergás, o óleo combustível, o óleo lubrificante, as parafinas, as vaselinas, o asfalto, o coque de petróleo e mais numerosos produtos de menor importância. Os petróleos brutos variam muito. Uns são bastante ricos em produtos voláteis; outros não dão produtos voláteis; outros só dão produtos voláteis, como o de Montechino, na Itália, que rende 95 por cento de gasolina e querosene.

— Noventa e cinco por cento? — admirou-se Pedrinho. — Então é quase todo ele gasolina e querosene...

— Exatamente. Já os petróleos americanos, embora variem dum ponto para outro, dão em média 20 por cento de gasolina, 38 por cento de querosene, 15 por cento de gás e 25 por cento de óleo combustível.

— Nesse caso, é inteirinho aproveitável — advertiu o menino.

— Sim. O que se perde não passa de 2 por cento, uma ninharia.

— Que mina? E como se faz para refinar?

— O petróleo bruto é uma mistura de vários hidrocarbonetos diferentes, uns gasosos, como o metana que vem dissolvido nos líquidos; outros líquidos; outros sólidos, como a parafina. A refinação é o processo que separa os vários hidrocarbonetos.

— Em que consiste?

— Cada um desses hidrocarbonetos, cuja mistura forma o petróleo bruto, tem a sua temperatura própria de ebulição.

— Ebulição é fervura, não é?

— Sim. Ebulição é o ponto em que os líquidos começam a ferver e a evaporar-se. Ora, esses hidrocarbonetos do petróleo bruto fervem desde 35 até 600 graus.

— Estou começando a entender — disse Pedrinho.

— Estou na pista. Continue, Visconde.

— O petróleo bruto — continuou o Visconde — é aquecido em grandes caldeiras; quando a temperatura chega a 35 graus, começam a evaporar-se os hidrocarbonetos mais voláteis, os quais passam, em estado de vapor, para o reservatório onde se resfriam e se condensam, isto é, voltam ao estado líquido. Mas o calor da caldeira continua a crescer, chegando até 600 graus, e pelo caminho vão se evaporando mais este e mais aquele hidrocarboneto, conforme o grau de ebulição de cada um; evaporam-se e passam em estado de vapor para os tais reservatórios onde se resfriam. Aos 600 graus evaporam-se os mais pesados e pronto. Dali por diante é inútil aquecer. Não sai mais nada. Tudo que tem valor já se evaporou; fica apenas um resíduo que, conforme a qualidade do petróleo, pode ser o mazu (óleo combustível), ou o coque de petróleo. Nos começos da indústria o único produto que se tirava do petróleo era o querosene, empregado na iluminação e ainda hoje muito usado no mundo inteiro, inclusive entre nós. Não há casa de caboclo por esses matos que não tenha sua lamparina de querosene.

— Por sinal que é uma coisa horrível — observou Emília. — Além de dar uma luz que nem é luz, de tão fraca e feia, ainda deita um penacho de fumo negro imundíssimo. E de respirar aquilo de noite, a caboclada fica com o nariz preto por dentro...

— Então perdiam a gasolina, a benzina e os outros produtos de tanto valor hoje? — perguntou Pedrinho.

— É verdade. Tudo isso era deitado fora. Só aproveitavam o querosene. Hoje os petroleiros choram as enormes quantidades da preciosa gasolina que antigamente era jogada fora por não ter aplicação nenhuma. Mas o motor de explosão veio mudar tudo. A gasolina passou para a frente, como o mais precioso produto do petróleo. Se correm no mundo milhões de automóveis e aviões a ela o devemos.

— Quer dizer que os petroleiros de hoje se esforçam sobretudo para obter a gasolina...

— Isso mesmo. Se pudessem, reduziriam o óleo bruto só a gasolina — e quase o conseguem.

— Como?

— Por meio do cracking.

Ninguém entendeu.

Cracking — explicou o Visconde — vem do verbo inglês to crack, partir, quebrar. E quando dizemos o cracking significamos um certo processo de destilar petróleo, no qual as moléculas dos hidrocarbonetos pesados quebram-se, dando origem a hidrocarbonetos leves.

— Explique isso por miúdo — pediu Pedrinho.

— Foi uma das numerosas descobertas devidas ao Acaso. Num dia frigídissimo de 1861, estava um trabalhador tomando conta duma caldeira de óleo bruto ao fogo. A destilação já ia bem adiantada, quase no fim, de modo que só saía um fiozinho de hidrocarboneto do mais pesados. Esse operário, porém, era malandro. Ao ver-se ali sem fiscal, aproveitou o ensejo para uma fugida. Entupiu de combustível a fornalha e raspou-se. Picou horas na pândega. Quando voltou, abriu a boca. A caldeira quentíssima, estava jorrando um produto claro, idêntico ao da destilação das matérias mais voláteis. Era gasolina outra vez...

— Que engraçado!

— Os donos da fábrica puseram-se a estudar o fenômeno. Repetindo a experiência, viram que sob a ação dum calor muito forte as moléculas dos óleos pesados se quebravam, produzindo as essências mais leves. Foi assim que começou no mundo esse importantíssimo processo do chacking — ou do arrebentamento das moléculas.

— Quer dizer que por esse processo pode-se transformar querosene em gasolina?

— Perfeitamente. Aqui no sítio, quando montarmos a nossa refinaria, poderemos produzir mais ou menos gasolina, conforme for do interesse da Companhia Donabentese.

— Pois vamos tratar disso sem demora — berrou Emília. — Mister Kalamazoo disse a Quindim que está com todos os estudos e plantas da nossa refinaria já prontinhos. Além disso...

Não concluiu. Alguém batia na porta. Narizinho foi ver.

— Oh, o Coronel Teodorico! Entre, faça o favor. Vovó? Está, sim. Vou chamá-la...

O Coronel Teodorico era um homem moreno, gordo, duns sessenta anos, com uma verruga no nariz e forte chumaço de cabelos nos ouvidos.

Dona Benta apareceu.

— Como está passando a comadre? — disse ele, apertando-lhe a mão. — Desde que saiu o petróleo, eu ainda não tive um minutinho para chegar até cá. Só agora.

— É verdade então, compadre, que vendeu a sua fazenda por 10 milhões de cruzeiros?

— O povo exagera seu pouquinho, comadre. Vendi, sim, não por dez, mas por um milhão e duzentos mil cruzeiros. Foi negócio, hein?

— Foi e não foi, compadre. A fazenda, antes de sabermos que havia petróleo aqui, era uma propriedade do valor duns setenta contos, não acha?

— Verdade. Foi o preço que sempre pedi por ela — e não achei. O melhor que me chegaram foram sessenta e cinco. Agora me ofereceram um milhão de cruzeiros, e como eu fizesse cara muito esquisita (era de espanto), eles pensaram que eu estivesse achando pouco e foram chegando mais 200 mil. Eu não quis saber de histórias. Me veio uma tontura na cabeça, e foi quase sem eu querer que minha boca respondeu: "Fechado!" No dia seguinte "vinheram" passar a escritura e bateram em cima da mesa os pacotes...

O Coronel estava orgulhosíssimo com a façanha, mas Dona Benta torceu o nariz.

— Pois, meu caro compadre, acho que fez um péssimo negócio. Sua fazenda tem a mesma formação geológica do meu sítio, sendo muitíssimo provável que também nela haja petróleo, e muito. Por que não mandou, antes de vendê-la, fazer uns estudos geológicos e geofísicos?

O Coronel cocou a cabeça, com um risinho de esperteza matuta nos lábios.

— Eu, a ser verdadeiro, comadre, nem entendo, nem acredito em nada dessas histórias. Sou homem da roça, como meu pai e meu avô, criadores de porcos e plantadores de milho. De ciência não pesco um xis — nem acredito. Minha fazenda não valia mais de setenta mil cruzeiros. Peguei por ela um milhão e duzentos mil. Que mais poderia eu querer?

— Compadre — disse Dona Benta — o seu mal sempre foi a falta de estudos. Se os tivesse, ou se frequentasse aqui os nossos serões para ouvir as conversas geológicas do Senhor Visconde, juro que não venderia a fazenda nem por 10 milhões. Aquilo vale ouro, compadre. A sua invernada de engorda está no eixo do nosso anticlinal.

Falar em anticlinal para um coronel da roça é o mesmo que falar do binômio de Newton para tia Nastácia. Dona Benta chamou o Visconde.

— Explique aqui ao compadre o que é um anticlinal petrolífero e mostre como o nosso anticlinal se prolonga pelas terras dele.

O coitadinho do Visconde tudo explicou com a maior clareza possível. Mas o miolo dum criador de porcos de sessenta anos está endurecido. Não recebe mais nada. O Coronel limitou-se a rir-se do sabuguinho científico.

— Basta — disse ele por fim. — Estou muito velho para essas coisas de ciência. Se o "anticriná" daqui entra na minha fazenda, então melhor para quem a comprou. Que se arranjem, que tirem muito petróleo e façam bom proveito. Não sou ambicioso. Esta dinheirama está até me atrapalhando a vida. Chovem em cima de mim tantos negócios ótimos que a dificuldade está na escolha.

— Cuidado com esses negócios ótimos, compadre! Sei dum sujeito que herdou 500 mil cruzeiros e os empregou em cinco negócios ótimos, cada qual melhor que o outro. O coitado ficou tão limpo que hoje é zelador dum cemitério.

— Sei disso, comadre. Já vivi bastante. Conheço o mundo. Mas o dinheiro meu ninguém me tira.

— E que vai fazer agora?

— Estou pensando em me mudar para o Rio de Janeiro...

— Olho vivo com os grandes centros, compadre! Nós, que passamos a maior parte da nossa vida nestes desertos, ficamos meio bobos. Qualquer pirata das avenidas nos embrulha. Há por lá uns tais passadores do conto-do-vigário que são umas pestes.

O Coronel Teodorico deu uma risada gostosa.

— Comadre, o espertalhão capaz de embrulhar o Coronel Teodorico Fagundes da Costa Picanço ainda não nasceu, acredite...

— Assim seja — disse Dona Benta. — Meus votos são para que o compadre tenha um resto de vida feliz e nunca se arrependa de ter vendido as suas terras.

O Coronel conversou ainda sobre várias coisas e depois de tomar o cafezinho de tia Nastácia e de comer meia peneira de pipocas, levantou-se.

— Pois então adeus, comadre. Lá do Rio lhe escreverei, mandando meu endereço. A senhora sempre foi a melhor das vizinhas. Não brigamos nunca — nem daquela vez em que a sua vaca Mocha entrou na minha roça de milho e fez aquele estrago. Sempre que precisar dalguma coisa lá na "Corte", é só mandar um bilhetinho.

— Muito agradecida, compadre. Também eu aqui fico ao seu inteiro dispor. Quando cansar-se da civilização e quiser uma temporada de descanso, escreva-me. Terá sempre um talher na mesa da sua velha comadre. Eu não saio. Continuo na roça.

— Roça, comadre? A senhora chama roça a isto por aqui? Foi roça! Hoje está virando cidade com uma fúria louca. A vila está que está que ninguém mais se conhece. Ontem repeti três vezes a sessão do Cine Tucano Amarelo. Aquilo é que é cinema!

— E essa transformação da vila não parará mais — disse Dona Benta. — Sei de muitas companhias de petróleo que já se formaram, e de outras que estão se formando para pesquisar petróleo na zona. Logo teremos aqui uma cidade à moda americana, movimentadíssima, que mudará tudo — os costumes e as gentes.

— As gentes já não são as mesmas, comadre. Quando atravessei a vila para chegar até cá, só topei com duas ou três caras das de dantes. Tudo mais é estranja — uns louros, outros de cabelo de fogo. E ali na perneira, no blusão, no chapéu de cortiça, no cachimbo. O que eu quero é sumir daqui. Meu tempo, minha gente, minha, vida no Tucano Amarelo acabou. Tudo por causa desse petróleo que ali o Senhor Pedrinho tirou — concluiu o Coronel sacudindo o dedo para o menino. — Esse seu neto vai longe, comadre...

O Coronel despediu-se também dos meninos, montou a cavalo e partiu. Dona Benta ficou de olhos nele até que se sumisse na volta da estrada. Sim, o petróleo começava a mudar tudo, não havia dúvida. Os velhos conhecimentos, os velhos hábitos, as velhas tradições — tudo isso tinha de desaparecer diante da americanização que a indústria traz. E Dona Benta sentiu uma ponta de saudade do sossego antigo.

No dia seguinte tiveram a visita do Chico Piramboia, que também vendera o sítio e se preparava para "afundar no mundo." Era um caboclão dos legítimos, xucro até mais não poder.

— Dona Benta — disse ele — vou-me embora com os pacotes no bolso. Esta gente enlouqueceu. Não entendo mais nada de nada. Pois então não é loucura me darem 230 mil cruzeiros por aquela pinoia do meu sítio — dez alqueires de sapezal que nunca valeu nem mil cruzeiros.

— Não é loucura não, Chico. É apenas o petróleo. Quem deu 230 mil cruzeiros pelo seu sítio vai tirar dele alguns milhões. Você não pensou nisso.

— A senhora está se referindo ao tal "criosene?" Ah, então a senhora, que é uma velha de juízo, também "aquerdita" nisso? "Criosene" nada. O que deu nessa gente foi loucura, isso ninguém me tira da cabeça. Eu vou fugindo daqui com os cobres antes que eles se arrependam e me assaltem a casa pra pegar outra vez os pacotes.

— Então guarda consigo o dinheiro, Chico? Não sabe que é perigosíssimo?

— Onde eu "haverá" de guardar então?

— No banco, homem de Deus! Para isso é que há bancos.

Chico Piramboia deu uma grande risada, muito parecia com a do Coronel Teodorico.

— Banco! Banco!... Tinha graça eu guardar 230 mil cruzeiros, dinheirinho novo, num banco — prós outros tomar conta dele. Ah, ah, ah!...

Um mês mais tarde Dona Benta teve notícia dos dois matutos — do compadre Teodorico e do Chico Piramboia. Este fora vítima dum assalto à mão armada em pleno dia, e como levasse todo o seu dinheiro num lenço vermelho, ficou sem o dinheiro e sem o lenço. Moeram-no a pancadas. Não fosse a sua natureza extraordinariamente rija de caboclo criado na miséria do sapezeiro e já estaria no outro mundo.

Com o Coronel Teodorico, então, aconteceu uma que até parece pilhéria. Ele nunca havia ido ao Rio de Janeiro, de modo que admirou tudo, principalmente os bondes elétricos. E tanto admirou os bondes elétricos e falou daquilo, que afinal o "dono dos bondes" apareceu, fez camaradagem com ele e acabou levando-o a um bar. Lá fez vir cerveja e contou o excelente negócio que era ter bondes que cobram 20, 30 e 40 centavos de cada pessoa que entre neles para ir daqui até ali.

— Lá isso é — disse o Coronel. — Tenho me regalado de andar de bonde, e para me distrair vou contando as pessoas que entram e fazendo a conta dos níqueis que pingam. Que é negócio, isto é. Quanto acha que rende um bonde por dia?

O dono dos bondes provou que cada carro dava uma renda de dez contos diários — dez contos líquidos, fora todas as despesas. Mas também disse que como fosse dono de "bondes demais" (mil e tantos), não fazia questão de vender dois ou três aos amigos — a cinquenta mil cruzeiros cada um. Melhor negócio era impossível. Se ele vendia alguns bondes, era só para servir aos amigos, e também porque andava até enjoado de tanto bonde e tanto dinheiro. Além disso, simpatizara-se muito com o Coronel, em quem via um homem inteligente, esperto, de ótimo coração e, portanto, merecedor de entrar no Rio de Janeiro com o pé direito.

O Coronel Teodorico Fagundes da Costa Picanço comoveu-se com o elogio e fechou negócio de quatro bondes a 50 mil cruzeiros cada um — total: 200 mil cruzeiros...

— Pobre do meu compadre! — suspirou Dona Benta quando soube da história. — Sua sorte foi ter comprado apenas quatro. Se adquirisse vinte e quatro bondes, estaria a estas horas tão limpo como o Chico Piramboia...

E voltando-se para Pedrinho:

— Aproveite a lição, meu filho. Quando propuserem a você um negócio "bom demais", fique de orelha em pé, perguntando lá por dentro: "Onde está o gato?" Há sempre um gato escondido em todos os negócios da China, que os piratas propõem às criaturas de boa-fé...


CAPÍTULO 14: PIRATAS DO PETRÓLEO

O poço Caraminguá nº 1 determinou uma mudança completa na zona. Todas as terras mudaram de dono; e no caso de um ou outro proprietário mais cabeçudo, que teimava em não vender, a questão se resolvia por meio dum contrato para a exploração do subsolo. Os petroleiros querem o que está lá no fundo, não o que existe na superfície.

Formadas as companhias e adquiridas as terras, começaram em todas as direções os estudos geológicos e geofísicos. Os bois dos pastos, afeitos aos vaqueiros, de pé no chão e chapéu de palha na cabeça, estranhavam aquela gente esquisita, de cachimbo na boca, perneiras e capacete de explorador africano. E ainda mais o que eles faziam. Andavam com uns aparelhos que boi não sabe o que é, medindo o chão, espiando por uns canudos e dando tiros. Não tiros de espingardas, mas uns tiros surdos, esquisitíssimos e que não matavam nada.

Eram as explosões subterrâneas do processo sísmico, um dos processos geofísicos empregados. Eles explodem uma dinamite num buraco, e em vários pontos, longe dali, recolhem, por meio de instrumentos especiais, as ondas vibratórias causadas pela explosão. E conforme essas ondas se modificam pelo caminho, eles ficam sabendo de várias coisas lá no fundo da terra.

E ao mesmo tempo que faziam esses estudos, iam depositando enormes quantidades de materiais de perfuração em vários terrenos adquiridos. Eram torres e mais torres, caldeiras, montes de tubos de revestimento, hastes e mais hastes, enormes carretéis de cabos de aço, etc. Mas as atividades das novas companhias se acentuavam sobretudo rente às divisas do sítio de Dona Benta.

Mister Kalamazoo ficou de orelhas em pé. Andou a cavalo espiando as divisas, em companhia de Mr. Champignon, e depois de cuidadosa observação foi conversar com Dona Benta, que era a diretora da Companhia Donabentense de Petróleo. Mister Kalamazoo já falava regularmente o português.

— Minha senhora — disse ele — temos de tomar providências imediatas contra o banditismo petrolífero. No meu passeio de hoje, vi que os piratas se preparam para roubar uma boa parte do petróleo aqui do sítio. Temos que organizar a defesa.

Dona Benta não compreendeu. Apesar de diretora da Donabentense, a maior companhia de petróleo do Brasil, ela não entendia grande coisa do assunto. Felizmente o Consultor Técnico da companhia, o Visconde de Sabugosa, era uma verdadeira sumidade. Mas Dona Benta não queria que Mister Kalamazoo desconfiasse da sua ignorância, e por isso respondeu com grande superioridade:

— Perfeitamente, Mister Kalamazoo. Já pensei nisso e estou a organizar o nosso plano de defesa. Hoje mesmo terei o prazer de submetê-lo à sua apreciação e à de Mr. Champignon.

O americano retirou-se, admirado da proficiência técnica da boa senhora — e Dona Benta chamou o Visconde.

Veio o sabuguinho científico, mais a Emília.

— Senhor Visconde — disse a velha — Mister Kalamazoo acabar de sair daqui. Contou umas histórias de que não pesquei nada. Acha que devemos organizar a defesa do nosso campo petrolífero, ameaçado pelos piratas do petróleo. Que quer dizer isso, Visconde?

O sabuguinho riu-se.

— Ah, sei. Pirata do petróleo são os que abrem poços nas divisas dum campo petrolífero para roubar parte das existências desse campo. Um poço de petróleo drena, ou puxa o petróleo num raio de muitas dezenas de metros, de modo que cada poço que abrem nas divisas do sítio puxará uma boa parte do petróleo daqui do sítio.

— Hum! — estou percebendo a marosca — murmurou Dona Benta — e mandou que Emília chamasse Pedrinho.

— Meu filho — disse ela logo que o menino apareceu — traga-me aqui a planta do sítio.

Pedrinho trouxe um rolo de papel de desenho, que abriu diante dela, no chão. O sítio tinha divisas muito regulares, formando um paralelogramo. Depois de examinar a planta por algum tempo, o Visconde tomou a palavra.

— A presunção — disse ele — é de que temos petróleo em todos os trinta alqueires cá do sítio. Logo, se os piratas abrirem quatro poços, perto de cada canto das divisas, acabam roubando pelo menos um quarto do petróleo do sítio.

— E como evitar isso? — perguntou Dona Benta.

— Dum modo muito simples — respondeu o Visconde. — Abrindo nestes quatro cantos quatro poços do lado de cá, nas nossas terras, assim — e desenhou como era.

— Desse modo a senhora contrapirateia, e o petróleo que eles roubarem ficará compensado pelo que a senhora rouba deles — e senhora ainda sai ganhando, porque tira deles mais do que eles podem tirar da senhora, como se verifica do meu desenho.

— Mas se nas terras deles não houver petróleo, nem nos cantos do meu sítio?

— Nesse caso a senhora perde o latim e eles também. Mas a única forma de defesa é essa.

Dona Benta ficou a meditar uns instantes; depois chamou Pedrinho.

— Dê ordem a Mister Kalamazoo, Pedrinho, para perfurar quatro poços de defesa, um em cada canto do sítio. Já...

Ao receber a ordem, Mister Kalamazoo muito se admirou da sabedoria de Dona Benta, uma velha que jamais saíra da roça, e no entanto entendia até da técnica da pirataria do petróleo. E montando a cavalo foi a um dos cantos norte do sítio estudar o terreno.

Logo que chegou à divisa deu com uma turma de operários para lá da cerca, ocupados no descarregamento de caminhões com material de sondagem. Dirigia-os um engenheiro cor de fiambre, de cachimbo na boca. O americano de Dona Benta pulou a cerca e foi ter com ele.

Hello, John Casper!... How do you do? — exclamou Mister Kalamazoo, com cara alegre.

O            outro     também               o             reconheceu         imediatamente.

Haviam trabalhado juntos num campo de petróleo do Oklahoma. Houve apertos de mão e troca de amabilidades.

Depois entraram no assunto.

— Vai perfurar aqui? — perguntou Kalamazoo.

— Sim, para a Companhia Atarip de Petróleo, dona destes terrenos.

O americano de Dona Benta arreganhou os dentes num sorriso de quem sabe a significação da palavra Atarip — e respondeu:

— Mas o golpe falhará, John, porque acabo de receber ordem da Companhia Donabentense para abrir, ali junto à cerca, uma perfuração de defesa.

O engenheiro John Casper empalideceu. Aquela notícia vinha estragar-lhe todos os planos. Mas como nessas lutas do petróleo é preciso mostrar muita indiferença, apenas rosnou um frio Go ahead! como quem diz: Pois abra.

Mister Kalamazoo pulou de novo o aramado e marcou o local da perfuração de defesa, que seria o Caraminguá nº 2.

Em seguida montou e tocou para o outro canto norte. Encontrou lá a mesma coisa. Numerosos operários descarregavam materiais de sondagem além da cerca.

— A quem pertence isto? — indagou Mister Kalamazoo do homem de perneira que dirija os trabalhos.

Mind your busines — foi a insolente resposta do "perneira", como quem diz: Cuide da sua vida e não se meta.

— "Bom — pensou consigo Mister Kalamazoo — já temos por cá a luta pelo petróleo, com todos os seus mistérios e desaforos." — Correu os olhos pelo material. Era da mesma fábrica do de John Casper — sinal evidente de que pertenciam à mesma empresa.

All right! — exclamou então Mister Kalamazoo. A Atarip está sem sorte, porque a Donabentense vai localizar aqui o Caraminguá nº 3...

O "perneira" voltou o rosto bruscamente, tirando dos lábios o cachimbo.

— Número 3, hein? Há então um nº 2?

— Não há ainda, mas vai haver, meu caro amigo. O Caraminguá nº 2 será aberto no canto norte, bem defronte do Atarip nº 1, a cargo de Mr. John Casper...

O "perneira" desapontou duma vez e, furioso da vida, deu um tremendo pontapé numa pobre touceira de barba-de-bode que viu na sua frente.

So long! — murmurou Mister Kalamazoo, retirando-se e tocando para as divisas do sul. Ao chegar ao primeiro canto da divisa sul viu que a Atarip também estava lá, em plena atividade. Dirigiu-se ao outro canto: a mesma coisa — a Atarip lá estava desembarcando materiais.

— Não há remédio — disse ele a Mr. Champignon logo que voltou ao acampamento. — A medida tomada pela Diretora da Donabentense é das mais oportunas. A Atarip já deu começo aos trabalhos de quatro poços nas divisas do nosso campo — nos cantos. Temos de agir sem demora na defesa.

A abertura dos novos Caraminguás correu muito mais fácil que a do primeiro. A constituição dos terrenos estava já conhecida de modo que Mister Kalamazoo pôde não só escolher a sonda mais adequada como ainda prever as entubações de revestimento que tinha de executar.

No primeiro poço ele fizera três entubações para o fechamento das três águas encontradas; nos novos poços, porém, só entubaria quando chegasse à última água, fechando assim, duma vez, os três horizontes aquíferos. Desse modo economizavam--se duas entubações e duas colunas de tubos, além de ser possível alcançar o horizonte petrolífero com um diâmetro maior — 22 centímetros em vez de 18.

O tipo de sonda escolhido foi o "Rotary", não mais o tipo misto usado no Caraminguá nº 1. A experiência deste poço indicou que podiam perfurar rotativamente do começo ao fim, sem necessidade de trépanos.

Encomendadas as quatro sondas novas, tudo chegou com a presteza do costume, porque os aviões comerciais da Emília estavam cada vez mais aperfeiçoados. Foi com verdadeiro assombro que os engenheiros da Atarip viram tais aviões pousarem e descarregarem todas as peças, inclusive as caldeiras pesadonas. Era um milagre que eles não podiam compreender.

O cálculo desses engenheiros, quando souberam que a Donabentense ia contrapiratear, fora que antes dum ano esta empresa não abriria os quatro poços. Ora, ficando eles assim com um ano de avanço, poderiam, na pior hipótese, roubar um ano de petróleo do sítio. E se cada poço da Atarip desse o mesmo que o Caraminguá nº 1, isto é, 500 barris por dia, os quatro poços dariam, nesse ano de avanço, 720.000 barris, dos quais a quarta parte saída dos terrenos de Dona Benta. A quarta parte de 720.000 são 180.000. A 30 cruzeiros, cinco milhões e quatrocentos mil cruzeiros! A Atarip, portanto, roubaria de Dona Benta, num ano, a gorda quantia de cinco milhões e quatrocentos mil cruzeiros.

Mas a chegada dos aviões emilianos com o novo material de sondagem da Donabentense veio estragar completamente os planos da companhia pirata.

Outra desvantagem da Atarip era não conhecer o terreno a perfurar. Bem que eles tentaram obter informes técnicos da perfuração do Caraminguá nº 1. Nada conseguiram. Os dois americanos e os operários da Donabentense souberam guardar o mais rigoroso segredo — e os meninos também.

Certo dia um agente secreto da Atarip, que andava rondando a casa de Dona Benta, pilhou Emília de jeito, sozinha na porteira da estrada, e veio com uns oferecimentos de doces (que Emília recusou) e umas perguntinhas ingenuamente manhosas dessas de plantar verde para colher maduro. Mas Emília, que tinha faro de cão perdigueiro, percebeu logo que estava diante do inimigo. E tapeou o perguntante com respostas muito direitinhas, mas erradas. O agente saiu dali contentíssimo com as preciosas informações colhidas — informações, entretanto, que só serviram para causar distúrbios e atrasos nas perfurações da Atarip. E tal foi o desastre, que o chefe dessa companhia acabou botando o agente no olho da rua, com um valente pontapé no fim da espinha.

— "Seu cachorro! Vá dar informações falsas na casa do diabo!"

Enquanto do lado da Atarip tudo eram desastres e mais desastres, atrasos e mais atrasos, os novos poços da Donabentense corriam a galope. O Caraminguá nº 1 levara oito meses para ser aberto. Já o Caraminguá nº 2 chegou aos 800 metros num mês O caraminguá nº 3 em menos: 27 dias. O Caraminguá nº 4, ainda em menos: em 24 dias. E o Caraminguá nº 5 realizou o milagre de perfurar-se em 12 dias apenas.

Esta maravilhosa façanha escangalhou com os projetos maliciosos da Atarip, de modo que o ladrão saiu logrado. Em vez de os piratas roubarem o petróleo de Dona Benta, foi Dona Benta quem roubou o petróleo deles. Resultado: a Atarip abriu falência.

Com os quatros Caraminguás novos a produção do sítio ficou elevada a 2.500 barris por dia — um colosso.

— E agora? Que vamos fazer de tanto petróleo?

O Visconde respondeu a essa pergunta apresentando um projeto de refinaria a ser montada, não ali, mas junto a um excelente porto de mar.

— As refinarias — explicou ele — devem ser montadas em pontos comercialmente estratégicos, de modo a facilitar a distribuição dos produtos. Montaremos a nossa refinaria nesse porto, levando para lá o petróleo bruto.

— Como? — perguntou Dona Benta.

— Por meio dum oleoduto — canalização ou pipe-line, como dizem os americanos. O melhor meio de conduzir o petróleo é esse — o mesmo usado para conduzir água para as grandes cidades.

Mas um serviço de oleoduto é complicado. Temos de montar grandes reservatórios no ponto final, e pelo caminho estações de bombeamento e aquecimento.

— Para quê? — perguntou Pedrinho.

— Porque a canalização segue subindo e descendo morros, de modo que de distância em distância se tornam necessárias bombas que puxem o petróleo.

— E o aquecimento?

— No tempo frio o petróleo fica tão viscoso que não corre com facilidade dentro dos canos. Torna-se preciso aquecê-lo de espaço em espaço.

— Oh, mas uma coisa assim deve ficar num dinheirão...

— Isso fica. Na América o custo duma milha de oleoduto anda aí entre 18 a 20.000 dólares. Dá para cada metro um custo de 11 a 12 dólares.

— Duzentos e tantos cruzeiros na nossa moeda! — calculou Narizinho. — É carete...

— Mas no fim sai mais barato que tudo — explicou o Visconde. — Na América o transporte de petróleo pelos oleodutos fica na metade do preço cobrado pelas estradas de ferro.

— E de que grossura são os canos?

— Varia. Há oleodutos de todos os diâmetros, desde 5 até 30 centímetros.

— E onde há mais oleodutos no mundo? — perguntou a menina.

— Vai ser aqui no Brasil, mas, por enquanto é nos Estados Unidos — o país "mais" em tudo. Em 1928 eles tinham 160.000 quilômetros de pipe-lines com capacidade para o transporte de 150 milhões de toneladas de óleo por ano. Haviam custado, sabem quanto? A ninharia de 950 milhões de dólares...

— Upa! Mais de 15 bilhões de cruzeiros na nossa moeda, o dólar a 16 cruzeiros — calculou de cabeça Narizinho. — É dinheiro...

Pedrinho assustou-se com aqueles algarismos.

— Maçada! Onde havemos de obter dinheiro para uma coisa que sai tão cara?

— Onde? Homessa! No fundo dos poços — respondeu o Visconde. — O petróleo é ouro-líquido, não sabe? Com os 2.500 barris diários que Dona Benta possui aqui, podemos perfeitamente construir o oleoduto que eu estudei. Não tem mais de 300 quilômetros e portanto custará... quanto, Narizinho?

A menina calculou instantaneamente:

— A 200 cruzeiros o metro, seriam 60 milhões de cruzeiros.

— Pois é isso — disse o Visconde. — Com a renda dos cinco Caraminguás Dona Benta paga esse oleoduto em dois anos e pico.

— E o dinheiro para a montagem da refinaria lá no porto?

— Aparece — respondeu o Visconde. — Basta que Dona Benta anuncie ao mundo que quer construir uma refinaria e dispõe de 2.500 barris de petróleo diários, para que chovam em cima dela propostas de empréstimos a juros baratíssimos. Além disso, nós não vamos ficar só com os cinco Caraminguás. Podemos abrir mais cinco, mais dez, mais vinte — e de dentro da terra sairá todo o dinheiro preciso para essas grandes obras. O oleoduto e a refinaria que projetei não ficarão em mais de 150 milhões de cruzeiros.

O Visconde de Sabugosa nunca teve um vintém furado, mas para falar em milhões não havia outro. Jogava em cima da mesa da discussão 150 milhões de cruzeiros, com o mesmo cinismo com que tia Nastácia jogava cinco dentes de alho dentro duma panela...

 

CAPÍTULO 15: A DINHEIRAMA

Enquanto não se construíam a refinaria e a canalização, era preciso fazer qualquer coisa do petróleo — e o remédio foi vendê-lo em estado bruto às pequenas refinarias já existentes no País. Eram refinarias montadas para extrair gasolina e querosene do óleo bruto importado do estrangeiro. Assim que elas souberam que havia petróleo no sítio de Dona Benta, mandaram para lá seus representantes fazer propostas.

Quem discutiu com eles foi Narizinho, recentemente nomeada Diretora Comercial da Companhia. Dona Benta era a Diretora Geral. O Visconde, o Consultor Técnico. Emília, a Diretora dos Transportes e Quindim, o Encarregado Geral da Defesa.

Narizinho recebeu os homens e discutiu muito bem a questão do preço, não pedindo nem de mais nem de menos.

— Vou fazer um precinho de amigo — disse ela. — Dez centavos o litro. Serve?

Os homens acharam baratíssimo, porque andavam comprando óleo importado por preço três vezes maior. Mas, ciganos como são todos os comerciantes, torceram o nariz, dizendo que era preço muito alto. O cálculo deles fora que como Dona Benta não tinha meios de se aproveitar do petróleo, vendê-lo-ia por qualquer preço e ofereceram 5 centavos.

Narizinho danou, e depois de consultar Dona Benta, respondeu-lhes da seguinte maneira:

— O preço que dei foi muito bem estudado por vovó, que não é nenhuma cigana, mas também não é boba. Os senhores, entretanto, além de bobos são uns ciganos, e para castigo das duas coisas eu só dou agora o petróleo a 12 centavos o litro. Dez centavos é o nosso preço e 2 centavos fica sendo a taxa do castigo.

Os homens riram-se.

Nesse caso, não fazemos negócio e quero ver o que sua avó faz do petróleo. Narizinho respondeu:

— Vovó tem sessenta e cinco anos e nunca precisou do petróleo para viver. Nem nunca aturou ninguém. É independentíssima. Se não achar quem lhe pague o petróleo pelo preço que pede, pensam que ela se amola? Ah, ah, ah! Fecha os poços para só abri-los quando estiver com o oleoduto e a refinaria montados — e os senhores ficam bigodeados. Não temos pressa nenhuma em vender o nosso petróleo. Passem muito bem.

Vendo aquela firmeza da Diretora Comercial, os ciganos cocaram a cabeça.

— Pois bem — disseram eles. — Aceitamos o seu preço de dez centavos.

— Meu preço é 12, já disse. E amanhã será 13. Nós aqui não somos brincadeira de ninguém.

Os ciganos pararam com a ciganagem e fecharam a compra de todo o petróleo produzido pelos cinco Caraminguás à razão de 12 centavos o litro.

— Mas há de ser entregue na nossa porta — disseram eles, querendo novamente tapear a menina.

— Estão muito enganados — respondeu ela. — Esse preço é aqui na boca dos poços. O transporte corre por conta dos compradores.

A segurança com que ela falou meteu medo aos ciganos, os quais assinaram os contratos sem mais um pio.

O problema do transporte é sempre um tanto sério. Não havendo oleoduto que leve o petróleo aos centros de consumo, o remédio é recorrer a carros-tanque, ou a navios-tanques se a viagem tem que ser por mar.

Os compradores tiveram de arranjar caminhões-tanques que levassem o petróleo dali até à primeira estação de estrada de ferro, e tiveram ainda de fornecer à estrada de ferro vagões-tanques que levassem o petróleo até às cidades onde tinham as refinarias.

O Visconde falou dos caminhões e carros-tanques. O caminhão-tanque não passa dum reservatório de ferro sobre rodas, com capacidade para uma, duas ou três toneladas de petróleo; e o carro-tanque é um vagão comum de estrada de ferro, composto de rodas e um grande reservatório "hermeticamente fechável" em cima, com capacidade para 20 ou 30 toneladas.

— E o navio-tanque?

— E um enorme reservatório de ferro, "hermeticamente fechável" e que ocupa um navio de capacidade muito grande. Há navios-tanques que carregam 500 toneladas de petróleo e outros que carregam 5.000. Os Estados Unidos tinham, em 1927, 412 navios-tanques, com a tonelagem total de 2.372.000 toneladas.

— Que horror! E a Inglaterra, que tem fama de ter mais navios que os outros países?

— A Inglaterra, nesse ano, tinha mais navios-tanques que os Estados Unidos, mas com menor capacidade. Tinha uma frota de 479 navios-tanques, com capacidade para 2.248.000 toneladas — 124.000 menos que a tonelagem americana.

— E os outros países?

— Os outros possuem frotas muito menores. A Noruega dispunha, naquele, tempo de 65 navios-tanques. A Itália de 48. A Holanda, de 64. A França, de 40. A Argentina, de 15. Mas nestes últimos anos essas frotas têm aumentado. A Argentina, por exemplo, está hoje com 54 navios--tanques.

— E para guardar o petróleo — as tulhas do petróleo — como são elas? — quis saber Narizinho.

— O mais usado são uns enormes reservatórios cilíndricos, de aço, como uma caixa redonda de pó de arroz com a tampa em forma cônica. Também se usam reservatórios de cimento armado em vez de aço, ou então reservatórios subterrâneos, ou enterrados no chão.

— E o tamanho?

— Varia muito. Há desde os de 13 metros de diâmetro até os de 50 metros de diâmetro, com altura de 4 a 10 metros. A capacidade desses reservatórios varia conforme o tamanho, podendo ir acima de 15.000 toneladas. A nossa produção aqui, sendo de 2.500 barris por dia, ou mais ou menos 400 toneladas, dá para encher um desses reservatórios grandes em pouco mais de um mês.

— E quantos carros, ou caminhões-tanques, vão ser necessários para o transporte do nosso petróleo?

— Trabalhando com caminhões-tanques de 2 toneladas, serão precisos 200. Mas como esses caminhões podem fazer cinco viagens por dia até à estação da estrada de ferro, bastam uns 40. E na estrada de ferro basta que corram 20 vagões-tanques por dia, caso possam voltar vazios no mesmo dia.

— Isso não pode, garanto! — disse Pedrinho.

— Nesse caso, com 40 vagões-tanques os ciganos se arrumam, contanto que não parem — que estejam indo e voltando constantemente.

Outro ponto em que Narizinho não transigiu foi quanto ao pagamento do petróleo. Os ciganos vieram com histórias de emitir duplicatas a 90 dias, etc., mas a menina recusou.

— Nada disso. Só vendemos o nosso petróleo ali na batata, como diz a Emília. Como os, ovos do sítio de Nhá Veva. Quem quer uma dúzia de ovos, vai lá, pede-os, recebe-os e paga-os na ficha. Isso simplifica imensamente o negócio.

— Mas é praxe comercial este pagamento a prazo

— disseram os homens.

— Praxe — respondeu Narizinho — é um costume, nada mais; e acho que neste caso será um mau costume. Não quero que no negócio novo do petróleo o País fique mal acostumado. Adoto, portanto, a praxe de Nhá Veva, com os ovos. Quem quiser que pague à vista. Quem não quiser, ou não puder, que se fomente.

Com esse sistema do pão-pão, queijo-queijo, a renda do sítio de Dona Benta ficou uma coisa colossal: 48 mil cruzeiros diários. No começo o Visconde fizera o cálculo do petróleo a 30 cruzeiros o barril. Mas Narizinho entendeu de ajudar o País e reduziu o preço a 12 centavos o litro, o que dava dezenove cruzeiros e vinte centavos por barril de 160 litros.

— Petróleo quanto mais barato mais ajuda a Pátria — dizia ela. — Para vovó 48 mil cruzeiros por dia já são dinheirama tamanha que ela nem sabe o que fazer dela. Podia vender pelo dobro — mas para quê? Ciganagem é coisa que não entra em nosso sítio.

Com o passar dos meses o dinheiro foi se juntando de tal maneira que Dona Benta chegou a ficar apreensiva. Apesar do conselho dado ao Chico Pirambóia, de depositar o dinheiro no banco, Dona Benta guardava o seu em casa.

— Como é isso vovó? — observou Pedrinho. — Para o Chico a senhora disse uma coisa e agora faz outra? Parece a história do frade: "Faça o que eu mando e não faça o que eu faço..."

— Explica-se, meu filho — respondeu Dona Benta.

— O hábito de guardar dinheiro em banco tem sua razão de ser como garantia do dinheiro contra os assaltos e para facilidades de pagamento com cheques, etc. Mas aqui em nosso sítio tudo é diferente, como você não ignora. Medo de assalto não temos, porque a casa está sempre guardada pelo nosso tanque de carne...

— O Quindim...

— Isso mesmo. E necessidade de pagamentos com cheques, e mais coisas do comércio, nós não temos, porque não saímos daqui, não negociamos, não vivemos a vida que vivem todos os comerciantes. Por esse motivo guardo o dinheiro na arca.

E assim ficou. No fim do ano Narizinho resolveu dar um balanço. Esparramou o dinheiro pelo chão e contou. Tinham ganho um pouco mais de 17 milhões de cruzeiros. Esse pouco mais saiu para pagamento dos salários dos americanos, dos operários e das despesas da casa, de modo que nas arcas havia 17 milhões de cruzeiros certinhos.

— E agora? — murmurou Dona Benta. — Que fazer desta dinheirama?

— Construir um palácio — propôs Narizinho — cheio de quadros preciosos e estátuas, e um jardim de inverno, e estufas para flores raras — e tanta coisa, vovó...

— Minha filha — disse Dona Benta — nossa vida aqui tem sido tão feliz que meu medo é que esta riqueza nos traga desgraça. Um palácio1? Mas julga você que num palácio possamos viver mais felizes do que nesta casinha gostosa? Ah, vocês não calculam como os milionários e os reis se aborrecem em seus palácios de ouro, no meio da criadagem solene, perfilada como soldados de casaca...

Veja esse Eduardo VIII da Inglaterra, o mais poderoso rei do mundo, que se enjoou de palácios e criados e etiquetas a ponto de mandar tudo às favas, para ir viver com sua mulherzinha a vida livre dos homens comuns. Não. O acertado é não mudarmos o nosso viver. Se somos felizes, que mais queremos?

— Mas se não gastarmos o dinheiro, ele entupirá todas as suas canastras e acabará sem valor — ficando dinheiro recolhido.

— Sim, isso se o não gastarmos. Temos de gastá-lo, não há dúvida. O dinheiro foi feito para circular, não para apodrecer nas arcas; mas em vez de gastá-lo egoisticamente só conosco, como fazem os maus ricos, podemos gastá-los de modo a beneficiar os milhares de pobrezinhos que nunca tiraram petróleo.

— Está aí uma ideia! — exclamou Pedrinho. — E a gente diverte-se muito mais gastando o dinheiro assim do que só com a gente.

— Isso, meu filho. Você está certo. O maior prazer da vida é fazer o bem. Eu sempre quis beneficiar este nosso povo da roça, tão miserável, sem cultura nenhuma, sem assistência, largado em pleno abandono no mato, corroído de doenças tão feias e dolorosas. Se empregarmos nosso dinheiro em melhorar-lhe a sorte, não só nos divertiremos, como você diz, como ficaremos com a consciência tranquila. Meu programa é esse.

Bravos, vovó! — exclamou Pedrinho. — E ainda podemos fazer mil coisas: estradas de verdade, por exemplo. Isso que no Brasil chamam estradas de rodagem é uma mentira. Estradas de atolagem, sim. Durante os meses de chuva, o Brasil inteiro só faz uma coisa: atola-se nas estradas, não roda. Nada roda nelas. Os carros de bois atolam até os eixos. Os automóveis atolam a ponto de precisarem de bois para arrancá-los. Os burros de tropa atolam. Tudo atola nas nossas estradas de atolagem. Podemos começar aqui pelo nosso município e depois iremos nos alastrando pelo País inteiro. Isto é, iremos construindo estradas de rodagem de verdade — pavimentadas de concreto, com um lado para ir e outro para vir — e uma faixa de grama no meio, como as da Alemanha.

— Perfeitamente. Aprovo o programa — disse Dona Benta.

— E também poderemos criar umas boas escolas profissionais para esta caboclada bronca — propôs Narizinho. — Eles são aproveitáveis, mas têm que ser ajudados. Por si nada fazem porque nada podem fazer.

— E também organizaremos umas casas-de-saúde bem modernas, com os melhores médicos e todas as comodidades, como os hospitais americanos que a senhora contou outro dia.

— Aprovado! — disse Dona Benta.

— E construiremos para eles casas decentes, com higiene e coisas modernas, que lhes sejam vendidas a prestações bem baixinhas. É uma vergonha para nossa terra como moram as gentes da roça — em casebres de sapé e barro, imundíssimos, sem mobília, sem nada lá dentro. Qualquer toca de bicho do mato, qualquer ninho de joão-de-barro, vale mais que um casebre de caboclo.

— Aprovado! — disse Dona Benta. O Visconde tomou a palavra.

— E eu acho que devemos criar casas de ciências para o aproveitamento dos meninos que mostrarem vocação para os altos estudos. E mais tarde poderemos criar uma universidade como a de Harvard.

— Aprovado! — Senhor Visconde. Pica desde já nos nossos planos a criação da Universidade Sabugosa, da qual o nosso viscondinho será o primeiro reitor e o professor de geologia — disse Dona Benta.

Faltava Emília.

— E eu acho — disse ela— que poderemos atacar um problema em que ninguém ainda pensou: a domesticação das formigas...

Todos olharam para a boneca, muito espantados.

— Sim, o homem domesticou vários animais, como o boi, o cavalo, o cachorro. Por que não há de domesticar mais um — a formiga? Dizem que o estrago que esse bichinho faz na agricultura é imenso, e até aqui o homem, na sua brutalidade, só pensou numa coisa: matar a formiga. Mas por mais que as mate elas aí estão cada vez mais numerosas. Minha ideia é abandonar essa guerra inútil e fazer um tratado de paz entre o homem e a formiga — domesticando-a, como já se fez com o cavalo, o boi e o cão.

— Como?

— Ensinando-as a só comerem as ervas daninhas que os fazendeiros arrancam com as enxadas dos trabalhadores. Desse modo elas resolveriam o problema da limpa das roças. Teriam licença de comer só as plantas daninhas, respeitando as úteis — como as laranjeiras, etc.

Todos riram-se da ideia emiliana.

— De que se riem? — exclamou Emília. — Tudo é possível no mundo, sobretudo tratando-se de formigas, uns bichinhos verdadeiramente inteligentes. Se um sábio cuidasse disso e conseguisse educar uma certa quantidade de formigas, elas iriam ser as professoras das outras e...

— Pedrinho — disse Dona Benta — peça a Mister Kalamazoo que mande vir da América um blowout-preventerzinho que sirva na Emília. Um blowout que feche este nosso caraminguazinho de asneiras.

Emília fez bico.

— Asneira! Asneira! Acham asneira tudo quanto eu falo — mas nos momentos de aperto quem salva a situação é sempre a asneirenta. Só uma coisa eu digo: se eu fosse refazer o mundo, ele ficava muito mais direito e interessante do que é. Os homens são todos uns sábios da Grécia, mas o mundo anda cada vez mais torto. Juro que com isso que chamam asneira eu transformava a terra num paraíso...

Dona Benta ficou pensativa. Quem sabe se Emília não tinha razão.

 

CAPÍTULO 16: O BRASIL TEM PETRÓLEO!

A descoberta do petróleo no sítio de Dona Benta abalou o País inteiro. Até ali ninguém cuidara de petróleo porque ninguém acreditava na existência do petróleo nesta enorme área de oito e meio milhões de quilômetros quadrados, toda ela circundada pelos poços de petróleo das repúblicas vizinhas. Mas assim que irrompeu o Caraminguá nº 1 os negadores ficaram com cara de asno, a murmurar uns para os outros: "Ora veja! E não é que tínhamos petróleo mesmo?"

E a febre começou. Em todos os Estados formaram-se empresas para pesquisar petróleo. Em Alagoas abriu-se o primeiro poço no Riacho Doce, com 600 barris por dia — e a seguir toda, aquela região se encheu de poços. Vendo aquilo, os Estados vizinhos atiraram-se. Sergipe furou vários poços e por fim também acertou no petróleo. Pernambuco, idem; em menos de um ano estava com dez poços em vários pontos; o primeiro aberto pertinho de Olinda. A Bahia perfurou na zona dos Camamus e encheu-se de petróleo; até na zona do Lobato, nos subúrbios da capital, abriram-se poços de excelente petróleo. O Amazonas e o Pará não ficaram atrás. Em várias pontos surgiram excelentes poços de petróleo. No Maranhão o Município de Codó tornou-se um centro petroleiro de muita importância.

A mesma coisa no sul e no centro. Nos Estados do Espírito Santo e do Rio de Janeiro, perto de Campos, abriram-se vários poços de petróleo. Em São Paulo, idem, lá pelos lados de Piraju e S. Pedro. O Paraná entrou em cena com grande fúria, abrindo poços ótimos em várias zonas. Santa Catarina também. No Rio Grande perfuraram em Pelotas e na beira da Lagoa dos Patos, e o Rio Grande também ficou alagado de petróleo.

Nos Estados centrais, a mesma coisa. O petróleo do Rio Verde, em Goiás, foi uma coisa louca. Poços potentíssimos. E em Mato Grosso, então, nem é bom falar. Surgiram nesse Estado os maiores poços da América do Sul, tão espetaculares como os do México. O Poço Xaraés nº 2, rompeu com tanta violência que arrebentou a torre, arremessando a ferralhada a cem metros de distância. Picou a jorrar sem controle, numa coluna de 80 metros de altura, durante um mês. Por fim foi dominado. O Poço Rondon nº 1, no Rio Negro, também deu trabalho. A sua produção inicial foi de 10.000 barris por 24 horas! Até o Estado de Minas se revelou rico em petróleo.

E aconteceu então um fato espantoso. O Brasil, que não tinha petróleo, que estava oficialmente proibido de ter petróleo, passou a ser o maior produtor de petróleo do mundo. Houve logo superprodução. Felizmente o petróleo não é como o café, que tem que ser colhido, dê ou não dê preço remunerador. No petróleo, quando há produção em excesso, as companhias entram em acordo e rateiam — cada uma fica autorizada a só produzir um tanto. Coisa facílima, aliás, pois basta que se dê uma voltinha na torneira dos poços para imediatamente a produção cair.

O mercado interno, que até então se abastecia com petróleo comprado no estrangeiro, passou a ser fornecido inteiramente com o petróleo nacional. A gasolina caiu de preço. Era em todas as bombas vendida a 20 centavos o litro; e o óleo combustível, a 10 centavos. Os agentes secretos dos trustes, que andavam a espalhar por toda parte que quando o Brasil tirasse petróleo a gasolina seria vendida mais cara que a água de Caxambu, ficaram desapontadíssimos. Toda gente percebeu que eles não passavam de espiões dos trustes, encarregados de espalhar a descrença no povo para que ninguém se lembrasse de pesquisar petróleo e o Brasil ficasse eternamente a comprar petróleo fora.

Em certas cidades, como Maceió, por exemplo, o povo, entusiasmado com a torrente de petróleo que brotava do Riacho Doce e com a gasolina vendida nas bombas a 20 centavos, agarrou os "caxambueiros" (como eram conhecidos esses marotos) e os fez passear pela cidade com caraças de burro na cabeça — e no fim da passeata os jogou na lama dos mangues para serem comidos pelos sururus.

O País entrou a prosperar dum modo maravilhoso. Todo mundo compreendeu que o nosso emperramento antigo provinha da falta de circulação. Nada circulava no Brasil, porque não havia transporte e o transporte é tudo para um país de grande território. Para haver transporte é necessário que haja combustível abundante e barato ora, como poderia ter combustível abundante e barato um país que o comprava fora a peso de ouro?

O número de automóveis cresceu vertiginosamente. O de caminhões de carga, ainda mais. As fazendas adotaram os tratores de puxar os arados e aposentaram os bois e as mulas. As estradas de ferro passaram a queimar óleo combustível em vez de lenha e carvão. Os navios que ainda usavam carvão reformaram as máquinas para só consumirem óleo combustível.

O supergás, ou gás líquido, acondicionado em cilindros de ferro, invadiu até as casas da roça. Ninguém mais cozinhou com lenha: só a gás, como nas cidades grandes.

O petróleo produzido no Brasil, porém, não ficou por muito tempo limitado ao consumo interno. A primeira partida negociada foi de 4.000 toneladas do "Donabentense cru", e a partir desse dia a exportação nunca mais parou de crescer. Basta dizer que no ano de 1955 o Brasil já estava exportando 1 milhão e 200 mil toneladas. E para cada 100 mil toneladas vendidas fora ia de lambuja, amarrado de pés e mãos, um dos antigos "caxambueiros."

A transformação operada no Tucano Amarelo foi maravilhosa. Aquela vilinha de 200 anos de idade e que jamais passara de mil habitantes, cada qual mais feio, pobre e bronco, virou uma esplêndida cidade de 100 mil habitantes, com ruas pavimentadas com o asfalto produzido ali mesmo, dez cinemas, cinco hotéis de luxo, escolas magníficas e a Casa de Saúde Dona Benta, que apesar de ser absolutamente gratuita punha num chinelo as casas de saúde das capitais, que cobram 50 cruzeiros por dia, fora os extraordinários. Os doentes saíam invariavelmente curados e gordos. A Escola Técnica Narizinho tornou-se um padrão copiado pelo País inteiro. Os rapazes e as raparigas que lá se diplomavam em inúmeros ofícios, eram disputados a peso de ouro. "Aqui se aprende de verdade" era o letreiro que havia na fachada do estabelecimento — e aprendia-se mesmo.

As estradas do município, feitas por Dona Benta, atraíam turistas de longe. Duas faixas de concreto, uma para ir e outra para vir, separadas por uma cinta sem fim de grama tosadinha; de distância em distância a grama era substituída por um canteiro de flores de cinco metros de comprimento. Estrada iluminada à noite e com bombas de gasolina Donabentense de 3 em 3 quilômetros; e estações de consertos de carros, e pequenos restaurantes muito pitorescos, e "Casas de Abrigo" — uma ideia de Narizinho. Nessas casas de abrigo os viajantes se acomodavam à vontade e como queriam, sem nada pagar.

— Isto é a evolução dos antigos ranchos de tropeiros — dizia a menina.

E era.

Dona Benta e os meninos costumavam sair em longas excursões num excelente automóvel que rebocava um trailer construído sob medida. Que trailer gostoso! Uma verdadeira casinha ambulante, com tudo que é necessário à vida. Pedrinho guiava o automóvel, com Emília e o Visconde sempre ao lado. No trailer ia Dona Benta, Narizinho e tia Nastácia, todas na frescata, e tão a cômodo como se estivessem na casinha do sítio.

A negra no começo arrenegou de tantas novidades; por fim acabou gostando.

— A gente não tem remédio senão ir na onda — dizia ela — E no fim gosta, porque é bom mesmo. Quando Seu Pedrinho veio com a história do tal supergás lá na cozinha, eu danei, pensando que era peta. Mas deu certo. Acabou aquela endrômina de acender fogo de lenha, e assoprar, assoprar, com os olhos ardendo. Agora basta torcer uma torneirinha e sai um ventinho que pega um fogo azul — e quente como o diabo! Que limpeza! Uma criatura até fica vadia com tantas facilidades de hoje. E a geladeira, então? É só botar as coisas ali dentro, puxar um ferrinho e fechar a porta. Gera um frio lá dentro que até parece o tal polo que Seu Pedrinho conta. A água vira vidro, de tão dura. Diz que é gelo. E a carne e o peixe não se estragam ali — podem ficar um tem pão. E esta casinha em cima de rodas que anda por toda parte? Coisa boa, sim.

Diverte a gente. A gente varia, vê caras e coisas novas.

Estou gostando, estou gostando, sim...

Saíam a passeio, às vezes de semana, sem pressa de chegar, porque a festa não era chegar — era ir andando e parando aqui e ali, ora para pegar uma borboleta para a coleção da Emília, ora para Pedrinho tirar um instantâneo, ora para Narizinho (que aprendera a desenhar) fazer um lindo croquis em seu álbum. Quando passavam por algum rio ou lagoa, era fatal uma parada para o Visconde fazer sua fezinha à beira d'água com o anzol. Pescador como ele não havia outro. Ele e tia Nastácia. A preta sentava-se ao lado do Visconde para ir botando minhoca no anzol.

Num desses passeios encontraram o Coronel Teodorico.

— Viva, compadre! — exclamou Dona Benta. — Que novidade a sua presença por estas bandas?

O Coronel estava avelhentado, cheio de rugas na testa, com ar de quem tinha sofrido muito.

— Pois é, comadre. Quem é vivo sempre aparece. Ouvi tanta história disto por aqui, que criei coragem e vim ver. Mas antes não viesse...

— Por quê?

— Porque tudo me confirma as suas palavras daquele dia, lembra-se? Eu fui um bobo, confesso. Vendi minha fazenda, pensando fazer um negocião, mas o que fiz foi negócio de sandeu.

— Eu bem disse...

— Disse, sim comadre, e se eu pusesse tento nas suas palavras, tudo teria corrido muito bem. Mas eu era presunçoso, tinha confiança demais em mim e...

— E que aconteceu?

— Acabei limpo, comadre. Os piratas lá do Rio de Janeiro caíram em cima de mim como piranhas que atacam boi n'água. Primeiro foi uma compra de bondes que até tenho vergonha de contar...

— Eu sei da história — disse Dona Benta. O Coronel arregalou os olhos.

— Sabe? Quem lhe contou?

— Li nos jornais. Os jornais do Rio insistiram muito nesse caso.

O Coronel cocou a cabeça.

— Pois então, ainda pior. Como não leio jornal, fiquei sem saber disso... Pois é, comadre, comprei aqueles quatro bondes por 200 mil cruzeiros — e levei na cabeça, porque era conto-do-vigário. Depois me aprecatei mais. Não adiantou. Os piratas sabem lidar com os bobos da roça. Houve um que me vendeu por 300 mil cruzeiros uma máquina que era a maior maravilha deste mundo. A gente botava papel em branco dum lado, e despejava umas drogas nuns canudos e virava uma manivela — e saía cada nota de 200 cruzeiros que era uma beleza. Mas verdadeiras, sim senhora! Tão verdadeiras que eu andei com duas delas de banco em banco indagando se eram falsas ou verdadeiras e todos me confirmaram: "São verdadeiras". E foi então que eu comprei a máquina maravilhosa de fazer dinheiro verdadeiro — porque o crime é fazer dinheiro falso. Fazer dinheiro verdadeiro não crime porque o dinheiro é verdadeiro, não é assim?

— E quando recebeu a máquina e foi fazer dinheiro verdadeiro, errou na mistura das drogas e a máquina explodiu, não foi isso?

O Coronel arregalou os olhos.

— Homem, comadre, a senhora até parece que tem parte com o demo: adivinha as coisas!... Como sabe duma "consequência" que eu só contei pra minha velha?

— Sei porque adivinho, está claro... — respondeu Dona Benta sorrindo.

— Pois adivinhou certo — continuou o Coronel. — A máquina explodiu, pluf! e lá se foram os meus 300 mil cruzeiros. Bati o Rio de Janeiro inteirinho atrás do homem que me vendeu aquilo e nada. Nem sombra.

— Bem — disse Dona Benta. — Temos já aqui 500 mil cruzeiros lambidos pelos piratas. E o resto?

— O resto foi comido pelo leão e por uma francesa

— aquela peste!

— Quê história é essa?

— Sim, andei seguindo o leão no jogo do bicho, a milhares de cruzeiros por dia, durante quase dois meses. Pois há de crer, comadre, que assim que parei de jogar o desgraçado deu com 64? E o que escapou do leão caiu no bucho da francesa, uma tal Odete, que depois descobri que nem francesa, nem Odete era. Me deixou limpo. Então vendi minha casa e vim ver isto por aqui...

— E a comadre?

— Morreu, coitada. Morreu de desgosto, depois que a máquina de fazer dinheiro arrebentou...

O Coronel passou a manga do paletó nos olhos.

— E que pretende fazer agora? — perguntou Dona Benta.

— Homem, não sei. Estou assuntando. Para que presta um velho louco e bobo como eu?

— Presta para muita coisa — disse Dona Benta. — Apareça lá no sítio a semana que vem que lhe arranjo um bom empreguinho.

— A comadre ainda mora lá mesmo?

— Sim, na mesma casinha de sempre.

— Na mesma casinha? Então, sendo tão rica, não teve coragem de fazer um palácio?

Dona Benta riu-se.

— Minha casinha, compadre, é o palácio da felicidade. Não troco nem pelo Buckingham Palace do Rei Jorge VI...

O Coronel Teodorico ficou a olhá-la com espanto. Depois disse:

— Ah, comadre, se todos fossem como a senhora, se todos tivessem a sabedoria da senhora... Como me arrependo de não ter ouvido os seus conselhos!

— Pois apareça e ouça-os, que ainda é tempo. Despediram-se. Pedrinho pôs o carro em movimento

— e lá se foi o trailer com a boa senhora na janela, a dizer adeus de mão para o pobre compadre.

Logo adiante encontraram outro velho, este de boné na cabeça.

— Parece o Chico Piramboia, vovó — disse a menina.

— É ele mesmo! — gritou tia Nastácia. — Mas como está importante! De boné...

Pedrinho parou o carro e Dona Benta chamou o Piramboia.

— Então, que é isso, meu velho?

— Pois isto é a vida, Dona Benta — respondeu o caboclo. — Depois daquele desastre que me sucedeu, estive mais de ano no hospital, e por fim fui solto na rua. Mas estava que nem aquele Jó da Bíblia — sem nada de nada, sem nenhum tostão no bolso. Os malvados me roubaram os 230 mil cruzeiros e passaram recibo com peroba no meu lombo. Os pestes!... Mas Deus é grande, Dona Benta. Fui andando e bati lá no meu antigo sítio. Quase nem reconheci. Tudo mudado, tudo bonito, tudo importante. Eles estavam desmanchando uma torre de ferro, como essas que a gente vê agora por toda parte. Eu procurei o chefe dos trabalhos e pedi serviço. Ele olhou bem para mim (era um engenheiro de perneira) e perguntou para que eu prestava. E eu então fui e respondi:

— "Sempre hei de prestar para alguma coisa, capinar chão, tratar de burro de carroça, carregar coisas na cacunda — mas já prestei para negócios muito importantes."

O "perneira" estranhou minha conversa e deu corda.

— "Sim — disse eu — já me prestei para os entendidos fazerem no meu lombo grandes negócios, como o deste sítio que vendi por 230 mil cruzeiros no contado."

O engenheiro arregalou os olhos.

— "Será verdade? Então foi o senhor o antigo dono destas terras?"

— "Eu mesmo — Chico Piramboia, pode perguntar para qualquer."

O homem riu-se dum modo esquisito. Depois disse:

— "Pois fique sabendo que nos passou a perna. Compramos estes dez alqueires por 230 mil cruzeiros na certeza de encontrar petróleo — e já abrimos dois poços sem resultado nenhum. Estamos agora desmontando a sonda para armá-la numas terras que compramos adiante. Lá, sim, o petróleo é certo. Isto aqui não vale nada. Você nos passou a perna, seu barba-rala duma figa. E agora vem rir-se de nós nas nossas ventas, não é?"

Contei para ele então o que me tinha sucedido — o assalto dos ladrões, o ano e meio que passei no hospital, a minha vida miserável. E Dona Benta há de crer que o "perneira" teve dó de mim? Até parece mentira, mas teve. Olhou bem pra minha cara e disse:

— "Bem, se é assim, então o caso muda — e posso ajudar você. Nossa companhia está construindo muitas obras lá na antiga fazenda do Coronel Teodorico, onde precisamos duma boa turma de guarda-poços. Vá lá com este cartão e procure o chefe do serviço. Para guardar o poço de noite você serve. Não há nada que fazer — é só não ferrar no sono. Dormir é de dia."

— Eu fui e me deram serviço na turma de guarda — e de tanto ficar acordado de noite e dormir de dia, quase virei coruja. Por fim me enjoei daquilo e pedi outro serviço. Eles então me puseram guarda-diurno, que é como lá dizem.

— Pois você não pode queixar-se, Piramboia — disse Dona Benta. — Está no seu empreguinho graças ao petróleo. Quanto ganha por mês?

— Trezentos cruzeiros.

— E quanto tirava por mês quando era sitiante? Chico Piramboia deu uma risada.

— Mecê está brincando comigo, Dona Benta! Naquele tempo eu não tirava nada. O que fazia era me endividar na venda do Elias Turco.

— Isso mesmo. E agora está com 300 por mês, graças ao petróleo. Pois lamba as unhas. Apesar de não haver petróleo no seu sítio, você pode dizer que foi um dos que tiraram petróleo. É ou não é?

— Lá isso é — concordou o guarda-diurno.

— E que está escrito no seu boné?

Antes que ele dissesse, Narizinho respondeu:

— C. G. P. — Companhia Guaxanduba de Petróleo, a tal que está furando na fazenda do Coronel.

— Isso mesmo — confirmou o caboclo. — Aquilo lá até parece uma cidade. Já abriram mais de cem poços — mas nenhum chega aos pés dos seus, Dona Benta. É poço de 30, 40, 50 barris por dia. O petróleo está mesmo no seu sítio, segundo todos dizem. Eles, lá no Coronel, têm que abrir um bandão de poços para dar o que dá um Caraminguá sozinho. Mas onde parece que vai rebentar poço dos macanudos é lá na vertente do Nheco. Está correndo por aí que ontem acabaram de abrir um que deu 1.500 barris no primeiro arranco.

— Fico muito satisfeita de saber disso, porque quanto mais petróleo tivermos por aqui, tanto melhor para todos — disse Dona Benta. — Francamente, eu andava aborrecida dos meus poços serem os maiores da zona, de maneira que o que você me conta muito me alegra. Eu também tenho umas terrinhas por lá...

— Eu sei. O antigo sítio do João Maleiteiro, que a senhora comprou por 50 mil cruzeiros e todo mundo deu risada. A senhora é a mulher que enxerga mais longe que eu conheço. Inda é capaz de tirar desse sítio que custou 50 mil cruzeiros um poder de petróleo de assustar o mundo...

— E a vila, Chico?

— Vila? Cidade, isso sim! Aquilo virou uma prepotência de cidade que até dá medo. E tudo lá é petróleo. A antiga venda do Canhambora virou um armazém de seis portas, com um letreiro assim: AO TRÉPANO DE OURO. Aquele botequim do Chico Pileque, que só tinha pinga e fumo de corda, está agora um hotel de seis andares — HOTEL ROTARY MODELO. Mas o mais bonito de tudo é a ESCOLA NARIZINHO, onde a criançada entra boba e sai mais sabida que o defunto vigário Padre Pedrosa, que Deus haja.

— Pois é — disse Dona Benta. — Mas quando abrimos lá no sítio o Caraminguá nº 1 e você foi despedir-se de mim, lembra-se do que me disse do "criosene?"

Chico Piramboia ergueu o boné e com a mesma mão cocou a cabeça.

— Lembro, sim, Dona Benta. Eu duvidei, não nego. Fui um bobo, como todos por aqui, menos a senhora. Mas hoje minha Bíblia é o "criosene." Juro em cima dele, se for preciso...

— E ainda diz "criosene", em vez de petróleo?

— Digo só por figuração, para matar saudades do tempo antigo. Mas nesse ponto já não estou bobo. Sei o que é petróleo, sei o que se faz dele, sei tanto já, que ainda acabo fazendo uma sociedade para abrir um poço num lugarzinho que eu conheço...

E como Dona Benta fizesse cara de curiosidade:

— Para a senhora eu conto — pra ninguém mais: no sitinho de Nhá Veva, aquela dos ovos. Outro dia estive lá e tirei uma linha com os olhos, por cima daquele morrinho selado; e sabe onde bateu a linha*? No eixo do "anticriná" lá do seu sítio! Pra mim — ninguém me tira da cabeça: o sítio de Nhá Veva é um rabo de "anticriná..."

Dona Benta despediu-se de Chico Piramboia e ficou a rir-se.

— Veja, minha filha — disse ela a Narizinho. — Isto mais um dos milagres do petróleo. Esse pobre Chico, que era o caboclo mais xucro aqui na zona, já tira linha com o olho e descobre "rabos de anticlinais..."

— Outro milagre do petróleo — disse a menina — é a mudança de gênio de tia Nastácia. Olhe o jeitinho dela com o Visconde. Assim que o trailer parou para a senhora falar com o Pirambóia, correu para aquele córrego com o Visconde — foram pescar. E veja como está alegre, contente da vida e remoçada. Até parece uma negra americana do cinema, das sabidas...

Logo depois tia Nastácia voltou com uma traíra pescada pelo Visconde. Vinha arreganhando de gosto, com o peixe no ar.

— Veja que linda, Sinhá! Isto recheadinho dá um suco...

Dona Benta olhou-a bem e perguntou:

— Nastácia, é verdade que você se sente feliz?

— Que pergunta, Sinhá — respondeu a negra — e virou a cara para que não lhe vissem os olhos molhados...

 

CAPÍTULO 17: A GRANDE FESTA

Meses depois, na cidade do Tucano Amarelo, só se falava duma coisa: o Poço Quindim nº 1 que a Companhia Donabentense acabava de abrir no velho sítio de Nhá Veva, vendido a Dona Benta por 50 mil cruzeiros. Que poço magnífico! Aos 800 metros os perfuradores atingiram o horizonte petrolífero comum a toda a zona; mas, por sugestão do Visconde, Mister Kalamazoo não fez caso e tocou para diante.

— "Estou desconfiado que abaixo desse horizonte existe outro muito mais importante, dissera ele — e Dona Benta deu ordem ao americano para seguir a ideia do sabuguinho. E o fato foi que a 1.200 metros a perfuração deu num acúmulo de petróleo muitíssimo mais potente. O poço jorrou com 10 mil barris e foi minguando até estabilizar-se numa produção de 7 mil barris por dia.

Era acontecimento sensacional, porque até ali os poços de maior produção tinham sido os cinco Caraminguás abertos no começo. Dos inúmeros poços das outras companhias só um, na fazenda do Coronel Teodorico, dera tanto como um Caraminguá — o Guaxanduba nº 7. Em homenagem ao velho rinoceronte, o poço de 7 mil barris teve o nome de Quindim nº 1. Graças a ele a Companhia Donabentense firmou-se como a primeira entre todas, com grande gosto da população do Tucano Amarelo, porque Dona Benta e os netos só queriam petróleo para uma coisa: fazer obras públicas de benefícios para toda gente. Nas outras empresas o sistema era o antigo: encherem-se de dinheiro egoísta, razão pela qual o povo se antipatizava com elas.

Para comemorar a grande vitória, Dona Benta deu uma festa que ficou célebre. Um banquete ao ar livre, no pasto da vaca Mocha, com danças e fogos de artifício no fim.

Todos os seus amigos e conhecidos foram convidados — e o povo também. Quem quisesse comer até arrebentar, dançar até não poder mais e assombrar-se com as maravilhas pirotécnicas do famoso fogueteiro Jucá das Rodinhas, era só ir chegando.

Essa festa lembrou um milagre das Mil-e-Umas-Noites. Além da comedoria imensa, das montanhas de frutas e doces, das pipas e mais pipas de vinho, dos tonéis de garapa azeda e cajuada, dos blocos de marmelada e goiabada e dum queijo em forma de pirâmide mais alto que dois homens um em pé nos ombros do outro, cada comensal recebia um presente de valor: relógio, caneta-tinteiro, papagaio, grafonolas e até automóveis. Chico Piramboia calculou que aquela festa devia ter custado no mínimo 10 mil barris de petróleo. Mas que é 10 mil barris de petróleo para quem estava tirando dos seis poços 9.500 por dia? Era um dia e pico de produção, nada mais.

Na mesa principal sentaram-se os membros da família e as pessoas mais íntimas. A cabeceira foi ocupada por Dona Benta, com Pedrinho à direita e Narizinho à esquerda. Ao lado de Pedrinho sentou-se o Visconde, de cartolinha nova, e ao lado de Narizinho sentou-se Emília, nos trajes habituais que ela adotara desde que começou a exploração do petróleo no sítio: culote amarelo, perneirinhas, blusa cheia de bolsos e capacete de cortiça. Depois vinham Mister Kalamazoo e Mr. Champignon; e finalmente, na outra cabeceira, tia Nastácia e Quindim.

Quem ia fazer o discurso de saudação era este último.

Quando chegaram à sobremesa, o rinoceronte levantou-se e disse:

— Minha senhora e meus senhores! Embora eu não seja o mais qualificado para falar nesta festa, estou cumprindo ordens da Emília. Era me mandou que falasse, dizendo andar enjoada de discursos de bípedes. Não fosse isso e eu ficaria lá no meu canto, ouvindo — pois gosto muito mais de ouvir do que de falar.

— Por isso é que você não diz asneiras, Quindim! — aparteou Pedrinho.

— Será — continuou Quindim — mas nem sempre o calor é sábio. Seria, porventura, sábio que Dona Benta se calasse? Presto muita atenção quando ela fala e nunca percebi em suas palavras demonstração de outra coisa que não fosse a mais alta sabedoria.

Emília sussurrou para Narizinho: "Ele está adulando Dona Benta para ver se pega um lugar na Diretoria..."

— Sabedoria sim, meus amigos — continuou Quindim — porque Dona Benta é uma verdadeira filósofa, não digo como Sócrates, que só conheço por ouvir falar, mas como o saudoso Kalavaka, o rinoceronte mais sábio da minha tribo lá no Uganda. Eu tenho um meio prático de conhecer a verdadeira sabedoria: é medir os resultados que ela dá. A sabedoria de dona Benta deu como resultado final a felicidade completa que todos gozamos aqui, vocês homens e nós animais — eu, a Mocha, o Burro Falante, os passarinhos aí do mato nunca perseguidos por ninguém. Eu, por exemplo, só vim encontrar a verdadeira felicidade aqui.

Minha vida no Uganda era um perpétuo desassossego. Além das lutas entre nós mesmos, dentro do bando, havia o pavor dos homens de capacete de cortiça que nos furavam o couro com balas dundum. Depois fui escravizado e andei a correr mundo num circo, exibindo meu corpanzil aos basbaques dentro duma jaula de ferro. Senti-me grandemente desgraçado nesse período de minha vida. A liberdade é o maior dos bens. Afinal fugi, corri pelas matas às tontas até dar com os costados no sítio de Dona Benta.

Emília me descobriu e tomou conta de mim. Fez-se minha aliada e minha amiga. Tia Nastácia teve muito medo do meu chifre, mas hoje está uma grande camarada. Todos se tornaram meus amigos — e minha vida sossegou. Vivo numa perfeita beatitude. Se me perguntarem onde é o céu, responderei: aqui!

E por que é assim? Por causa da sabedoria de Dona Benta, que é a aura misteriosa que tudo dirige neste abençoado pedacinho de mundo. Não tenho mãos como os demais presentes, e por isso não posso erguer a taça de cajuada que Emília botou diante de mim para eu bebê-la à saúde de Dona Benta e dos seus queridos netos — e da Emília, e do Visconde, e de tia Nastácia, e aqui destes amigos da América. Mas trocarei essa saudação pela que usamos lá no Uganda, entre os da minha raça; um urro — Muuuuuu...

O urro de Quindim foi tão formidoloso que o pânico se estabeleceu nas outras mesas. Que correria! Que atropelo! Pedrinho teve de trepar em cima dum tonel e berrar com um alto-falante na boca:

— Calma, pessoal! Não foi nada! Apenas a saudação à vovó feita por Quindim, à moda do Uganda. Calma! Calma! Todos aos seus lugares!...

Os convivas foram voltando para suas mesas, muito ressabiados. Urro como aquele jamais tinham ouvido por aquelas paragens.

O discurso de Quindim recebeu palmas de todos. Para um rinoceronte, estava de primeira ordem.

— E agora, quem fala? — gritou Pedrinho.

— Eu! — berrou Emília, levantando-se de co-pinho em punho.

Mas a menina protestou:

— Não, senhora! Primeiro os mais velhos. Tem a palavra Mister Kalamazoo.

O americano levantou-se muito vermelho e louro.

— Só sei furar poços — disse ele. — Para discursos não presto. E ainda que prestasse, que poderia eu dizer, mais do que disse esse prodigioso rinoceronte que acaba de falar? Sim, dona Benta é um poço de sabedoria. O trépano do estudo e da meditação desceu até às camadas mais profundas onde se acumula a ciência da vida. Vou confessar uma coisa: quando cheguei até cá, vim pago para sabotar todos os poços que Dona Benta quisesse abrir. Mas não tive coragem. Tudo me seduziu tanto, encontrei caracteres tão nobres, que até me envergonhei da minha primitiva intenção. E transformei-me. Passei a trabalhar como o mais leal dos homens, como o resultado dos meus serviços o demonstra. Viva Dona Benta! Vivam os seus netos!...

Palmas e bravos cobriram as últimas palavras do sabotador que não teve ânimo de sabotar.

— Fale agora Mr. Champignon! — gritou Narizinho.

Mr. Champignon levantou-se, todo risonho.

— Meus amigos — disse ele — eu igualmente fui contratado para sabotar de parceria cá com o amigo Kalamazoo. Mas também não tive coragem. Quem poderá ter coragem de prejudicar uma senhora de tão altos espíritos, como Dona Benta; ou um menino tão empreendedor e sincero, como Pedrinho; ou um encanto de menina, como Narizinho; ou esse prodígio da Natureza, que é a Emília; ou o Senhor Visconde de Sabugosa, o mais profundo geólogo que ainda topei na vida; ou essa tia Nastácia, que é uma quituteira do céu; ou ali o amigo

Quindim, o mais nobre dos rinocerontes? Quem? Até o pérfido lago, se por cá aparecesse, não teria coragem de permanecer mau. A bondade humana tem isso consigo: seduz, arrasta, converte, catequiza. Eu fui um homem como os outros, com as qualidades e defeitos do comum. Mas mudei — o sítio de Dona Benta me mudou. Meu coração está limpo de maldade. O ambiente são aqui do sítio decantou minha alma...

(O Visconde explicou a Pedrinho que decantar era uma expressão usada pelos químicos para significar destilar.)

— E, portanto, nada mais tenho a fazer senão comungar com Mister Quindim e Mister Kalamazoo no hino de louvor que ergueram a Dona Benta, a boa fada que preside os destinos de todos nós!...

— Bravos! Viva Mr. Champignon! — gritaram os meninos.

Dona Benta agradeceu com um sorriso luminoso de bondade.

— Agora tia Nastácia! — gritou Narizinho.

A negra, de vestido novo, engomado, levantou-se com o maior desembaraço e disse:

— Falar bonito como os outros eu não sei. Só sei cozinhar...

— E botar minhoca no anzol do Visconde também! — aparteou Emília.

— Isso também faz parte do cozinhar — respondeu a preta — primeiro a gente pega o peixe, depois é que escama e frita. Sei tudo que é de cozinha, e meu gosto é quando faço um prato e vejo a criançada lamber os beiços de gosto.

— Beiço é de boi — aparteou Emília. — Gente tem lábios...

— Essa pestinha quer me atrapalhar, mas não me atrapalha, não. Quem fez ela fui eu. De pano — mas depois o pano gerou carne e hoje está uma gente pura — só que mais atropeladeira que os outros.

— Isso não é discurso, Nastácia — disse Narizinho.

— Dei a palavra a você para fazer um discurso como o dos outros.

— Discurso não sei fazer, porque não tenho estudos. Dizer coisas bonitas sobre Dona Benta também não sei. Só sei beijar a mão dela — e correu, com os olhos rasos de lágrimas, a beijar a mão de Dona Benta.

Todos se comoveram, inclusive Quindim, que pingou uma lágrima do tamanho duma jabuticaba na bacia com capim picado que Emília pusera na sua frente.

Dona Benta abraçou a preta, dizendo:

— Sim, minha negra. Você, além de ser a minha grande amiga, é a outra avó dos meus netos...

— Agora fale Pedrinho! — gritou a menina. Pedrinho levantou-se com o garbo dum Peter Pan.

— Vovó, à sua saúde! — disse ele erguendo o copo.

— Meu desejo é que a senhora pare onde está — e não morra nunca. A senhora é a maior das avós do mundo inteiro — e agora com o petróleo, é a mais rica. A senhora nos tem ensinado tudo. A senhora é tudo para nós. A senhora é a Avó Número 1! Viva vovó!

— Viva! Viva!...

— Um dia — continuou Pedrinho — eu hei de realizar uma ideia que tenho na cabeça: erguer um monumento a vovó. Narizinho, que é desenhista, está fazendo o esboço. É assim: Bem no alto, a estátua de vovó, de óculos, sentada na cadeirinha de pernas curtas, com um livro no colo, eu dum lado, Narizinho de outro, Emília e o Visconde aos pés. À direita, com a cabeça na altura do ombro de vovó, tia Nastácia fritando um peixe: à esquerda, com o chifre na altura dos joelhos de vovó, Quindim deitado, com a cabeçona entre as patas. Essas figuras ficarão dispostas em grupo em cima dum grande cubo de mármore com altos relevos de três lados e esta inscrição numa placa de bronze:

A DONA BENTA E. DE OLIVEIRA,
DESCOBRIDORA DO PETRÓLEO NO BRASIL,
E AVÓ DE PEDRINHO E NARIZINHO,
OFERECE A PÁTRIA AGRADECIDA.

— Por que esse "E." abreviado no nome de Dona Benta? — perguntou Emília.

— Porque fica feio gravar no bronze o sobrenome por extenso. Encerrabodes é uma idiotice de sobrenome que faz toda gente dar risada. Poremos E. só — e quem ler fica pensando que é Eduarda, Edviges, Emerência, Eulália ou qualquer coisa mais decente que o Encerrabodes...

— E nos outros lados do cubo de mármore?

— Nos outros três lados do cubo de mármore vão altos relevos representando cenas aqui do sítio. Num aparecemos todos nós fugindo da chuva de petróleo do Caraminguá nº 1. Noutro, a cena do Quindim sentado em cima do cano para escorar o petróleo que queria sair. E no terceiro...

— No terceiro, eu comandando os meus aviões "Faz-de-Conta!" — berrou Emília.

— Não, senhora! — protestou Pedrinho. — A senhora já está lá em cima, aos pés de vovó. Os altos-relevos são de cenas passadas aqui. Poderá ser, por exemplo, o banho de petróleo do tal jornalista. Esse ponto resolveremos depois.

— Só isso?

— Não. Ainda há mais. Esse grande cubo de mármore assenta-se em cima da multidão dos "caxambueiros" e mais negadores e sabotadores do petróleo do Brasil. O escultor poderá representá-los sob forma dum conglomerado de cretinos e safados, uns por cima dos outros, de língua de fora e olhos pulando das órbitas, porque estarão esmagados pelo peso do bloco de mármore. Que tal meu monumento?

Todos acharam-no ótimo.

— Pois é isso! — concluiu Pedrinho. — Ergueremos esse monumento no pasto da Mocha, isto é, aqui onde estamos, para "edificação dos pósteros", como diz o Visconde. Tenho dito.

E sentou-se.

Palmas e gritaria acolheram a maravilhosa ideia de Pedrinho.

— Está um suco! — disse Emília.

— Silêncio! — gritou Narizinho. — Agora quem vai falar é Sua Excelência o Senhor Visconde de Sabugosa do Poço Fundo. Tem a palavra o Senhor Visconde...

O Visconde levantou-se, mas como era muito pequenino teve de ser plantado em cima da mesa.

— Enfie o cóccix dele na garrafa barriguda! — gritou Emília — e Pedrinho assim o fez: fincou o Visconde na boca duma garrafa de cristal bojuda.

Apesar do incômodo da posição, que o deixara de pés soltos no ar, o Visconde fez o seu discursinho.

— Meus senhores e minhas senhoras! — disse ele. Eu quisera ter a eloquência de Cícero para colocar-me na altura dos oradores que me precederam; mas não foi a Musa da Eloquência quem presidiu ao meu nascimento.

— Foi tia Nastácia! — gritou Emília.

— Sim, foi ela, a boa preta que mantém a paz dos estômagos dos moradores deste sítio. Sou filho de tia Nastácia, confesso...

— Credo! — Murmurou a negra, benzendo-se.

— E, no entanto, por um desses misteriosos caprichos da natureza, sou um caso de filho que nada tem de comum com a sua progenitora. Não entendo de cozinha e nem sequer como. Meu pendor sempre foi científico. A ciência me atrai dum modo incoercível. No começo dei-me à Filologia: hoje dou-me à Geologia. E sabem por que mudei? Por uma razão econômica. A filologia não aumenta a riqueza dum país, ponderei eu com os meus botões.

— Com os meus carocinhos de milho! — emendou a boneca.

— Mas a Geologia aumenta. É uma ciência que conduz a resultados práticos, positivos, de grandes reflexos econômicos. Em que nos enriquece, por exemplo, saber que a palavra ontem vem de à noite? Em nada. Mas saber que em tal ou tal terreno existem condições para o acúmulo do petróleo, isso sim, enriquece. Pelo menos enriqueceu Dona Benta. Se não fosse a nossa mania geológica, não teríamos descoberto o anticlinal dos Caraminguás — e não estaríamos hoje nadando em dinheiro e fazendo a felicidade deste pobre povo, que até aqui viveu descalço, analfabeto e na maior penúria.

O Visconde bebeu um golinho d'água e continuou:

— A Geologia, meus senhores e senhoras, é a ciência do solo e do subsolo — e é no subsolo que se acumulam as maiores riquezas dum país. O solo, que é? Apenas uma superfície. E o subsolo? O subsolo é uma cubagem, é uma massa que vai desde a superfície até o centro da terra. Vou dar um exemplo. Um alqueire de terra não passa de 24.200 metros quadrados de chão, ou de superfície. Mas um alqueire de subsolo é uma massa volumétrica que desce até o centro da terra. Hoje o homem explora comercialmente o subsolo até 3.000 metros de profundidade; temos, portanto, que um alqueire de subsolo comercialmente explorável cor responde a uma massa de 24.200 metros cúbicos multiplicados por 3.000 — ou sejam 72.600.000 metros cúbicos!

— Puxa! — exclamou Pedrinho.

— Pois bem: essa imensa massa de subsolo, que corresponde a apenas um alqueire de superfície, encerra inúmeros minerais utilíssimos ao homem, e que, portanto, constituem o que chamamos Riqueza. Os Estados Unidos são o país mais rico do mundo porque compreenderam isso e lançaram--se à exploração das reservas do subsolo. Eles extraem do subsolo, por ano, produtos no valor de 6 bilhões de dólares, ou sejam mais de 100 bilhões de cruzeiros na nossa moeda! E nós no Brasil? Que é que extraíamos do nosso subsolo, antes da abertura do Caraminguá nº 1?

— Minhocas! — berrou Emília.

— Exatamente — concordou o Visconde. — Só extraíamos minhoca — e por isso éramos um povo tão pobre. Mas agora tudo começou a mudar. Graças ao que fizemos no sítio, a corrida ao subsolo está iniciada — e não parará mais — e fará do Brasil o grande País que ele merece ser. Tenho dito.

— Bravos! Bravos ao sabuguinho científico! — gritaram todos.

— Interessante! — observou Dona Benta. — O Visconde até num discurso de brincadeira revela-se o sábio de sempre e nos dá lições. O que ele disse é rigorosamente certo...

 

CAPÍTULO 18: O TRIUNFO DE DONA BENTA

— Agora eu! — berrou Emitia, ansiosa por botar a sua colher no banquete.

— Pois seja você — disse Narizinho. — Tem a palavra a Senhora Emitia de Rabicó...

Emitia deu um salto para cima da mesa, com tal estabanamento que caiu abraçada a um peru recheado, sujando-se toda de gordura. Mas não fez caso, tal era a sua gana de falar. E não veio com os preâmbulos do costume. Foi logo ao assunto principal.

— Estou com uma ideia ótima! — disse ela. — Talvez a melhor ideia de toda a minha vida...

— Lá vem asneira! — rosnou Pedrinho.

— Uma ideia do tamanho da torre do Caraminguá! — prosseguiu Emitia. — Uma ideia de gênio!...

— Escorropiche logo essa ideia e não caceteie — disse Narizinho. — Vovó já está com sono.

— Vou dizer — continuou Emitia. — Minha ideia é organizarmos um "triunfo romano" para Dona Benta. Que tal?

Todos se entreolharam; ninguém havia entendido.

— Sim, um triunfo romano — o "Triunfo de Dona Benta"! Ela e todos nós montados no Quindim, ela com um cetro na mão e nós com bandeiras, e faremos uma entrada triunfal pelo meio desse povaréu que está comendo e bebendo à tripa forra. Na frente botamos Mister Kalamazoo e Mr. Champignon na posição da Estátua da Liberdade, segurando fogos-de-bengala para iluminar o caminho. Atrás do Quindim, tia Nastácia com um tridente, feito Netuna, para ir cutucando Quindim quando ele parar. E na rabeira, o pessoal todo da Donabentense, com archotes. E mais coisas que no momento lembrarei. Que tal?

— Ótima a ideia, Emília! — gritaram Pedrinho e Narizinho, entusiasmados.

— Poderemos, por exemplo — continuou Emília — pintar na testa de Quindim estas letras famosas: S. P. Q. R.

— Que significam? — perguntou a menina.

— Não sei, mas eram usadas nos triunfos romanos. Tia Nastácia diz que querem dizer: São Pedro Quer Rapadura, mas acho que deve ser outra coisa.

— É outra coisa, sim — disse Dona Benta. — Essas letras são as inicias do célebre dístico romano: Senatus Populusque Romanus — o Senado e o Povo Romano.

— Pois é isso — gritou Emília. — O Senado é a senhora e o Povo Romano somos nós. Que tal minha lembrança?

Todos a acharam ótima, e levantaram-se da mesa em atropelo para a organização do Triunfo de Dona Benta.

Com a boa vontade dos meninos e o faz-de-conta da Emília, meia hora depois o cortejo começava a desfilar.

Na frente marchavam os dois americanos, queimando no ar fogos-de-bengala de cores vivíssimas. Dona Benta ia escarrapachada no congote de Quindim, com um cetro de cabo de espanador na mão, tendo à esquerda Narizinho, vestida de "Neta nº 1" e à direita Pedrinho vestido de "Neto nº 1" — tudo invenções da Emília. O Visconde, entrajado de geólogo, vinha de pé, com as mãos na cintura, sobre a anca do rinoceronte. Tia Nastácia vinha atrás, com o cabo de vassoura em punho para volta e meia dar um cutucão em Quindim.

E Emília?

Ah, Emília ocupou o seu lugarzinho de sempre, montada no chifre do paquiderme, cujo corpo, forrado com uma colcha de seda amarela do tempo do imperador, estava todo ornamentado de guirlandas de flores. Emília trazia na mão uma grande coroa de rosas.

Atrás de Quindim vinham todos os operários e empregados da Companhia Donabentense, com archotes acesos — archotes embebidos no petróleo cru do Caraminguá nº 1.

O "triunfo" causou tremendo efeito no povo reunido em redor das numerosíssimas mesas espalhadas pelo pasto da Mocha. Os maldizentes tiveram vontade de dizer que aquilo não passava duma caduquice de Dona Benta, mas ao se lembrarem da sua renda diária de 9.500 barris de petróleo, emudeceram; engoliram a irreverência e juntaram suas palmas e berros às aclamações delirantes dos milhares de comensais.

— Viva Dona Benta, a benfeitora do Tucano Amarelo!

— Viva! Viva!...

— Vivam os netos de Dona Benta, essas duas delícias do gênero humano!

— Vivam! Vivam!...

— Viva o Visconde de Sabugosa, o geólogo dos geólogos!

— Viva! Viva!...

— Viva a Marquesa de Rabicó!

— Viva! Viva!...

O cortejo seguiu solenemente na direção do Caraminguá nº 1, acompanhado pela multidão dos comensais em delírio. Lá, defronte da sonda, Quindim parou e Dona Benta pediu a Mister Kalamazoo que pegasse a coroa de rosas das mãos da Emília e a colocasse na torre, com o letreiro que Pedrinho traçara em letras de ouro num quadrado de papelão.

Mister Kalamazoo assim fez. Pendurou na torre a coroa de rosas e prendeu por baixo o letreiro de Pedrinho.

SALVE! SALVE! SALVE!
DESTE ABENÇOADO POÇO - CARAMINGUÁ Nº 1
SAIU NUM JATO DE PETRÓLEO
A INDEPENDÊNCIA ECONÔMICA DO BRASIL

Todos correram a ler.

Novas palmas, novos bravos, novos hurras acolheram aquela inscrição em letras de ouro e com um significado de ouro.

Mas Dona Benta, que não podia de sono, apenas disse:

— AMÉM...

E mandou Quindim tocar para casa. Foi dormir.


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