Ao
receber o jornal, Pedrinho sentou-se na varanda com os pés em cima da grade.
Narizinho, que estava virando a máquina de costura de Dona Benta, disse:
— Vovó,
eu acho uma grande falta de educação essa mania que Pedrinho pegou dos
americanos, de sentar-se com os pés na cara da gente. Olhe o jeito dele...
Dona
Benta suspendeu os óculos para a testa e olhou.
— Certos sábios afirmam, minha filha, que quando uma pessoa se senta com as extremidades
niveladas, a circulação do sangue agradece, e a cabeça pensa melhor. E por esse
motivo, que os homens de negócios da América costumam nivelar as extremidades,
sempre que têm de resolver um assunto importante. A coisa fica mais bem
resolvida — dizem eles.
— E é verdade?
— Os negócios de lá prosperam melhor que os de qualquer outro país; se o tal nivelamento
dos pés com a cabeça contribui para isso, não sei. Ê problema para os
fisiologistas resolverem.
— Que é fisiologista?
— Os fisiologistas são os sábios que estudam o funcionamento do nosso corpo. Aquele livro
que estou lendo, Man the Unknown, foi escrito por um grande fisiologista,
Alex Carrel.
Depois que Pedrinho soube da opinião de Dona Benta,
nunca mais deixou de ler sem botar os pés para cima, costume que Emília e o
Visconde adotaram imediatamente — Emília por espírito de imitação e o Visconde
por ordem de Emília. — "Vossa Excelência fica proibido de ler com as
extremidades desniveladas" — ordenou ela. — "É por ler de pé, ou
sentado, que está velhinho e ainda nem entrou para a Academia Brasileira."
— E o pobre Visconde, apesar dos reumatismos, teve de continuar a leitura da
sua geologia dobrado que nem um V.
Geologia?
Pois o Visconde andava a estudar geologia?
Verdade,
sim. O Visconde descobrira entre os livros de Dona Benta um tratado dessa
ciência e pusera-se a estudá-la — a ciência que conta a história da terra, não
da terra-mundo, mas da terra-terra, da terra-chão. E de tanto estudar, ficou
com um permanente sorriso de superioridade nos lábios — sorriso de dó da
ignorância dos outros. "Ele já entende de terra mais que tatu", dizia
a boneca.
Mas, como
íamos contando, naquele dia Pedrinho começou a ler o jornal à moda americana,
com os pés em cima da grade. Em certo momento interrompeu a leitura para dizer
em voz alta falando consigo mesmo:
— Bolas!
Todos os dias os jornais falam em petróleo e nada do petróleo aparecer. Estou
vendo que se nós aqui no sítio não resolvermos o problema o Brasil ficará toda
a vida sem petróleo. Com um sábio da marca do Visconde para nos guiar, com as
ideias da Emília e com uma força bruta como a do Quindim, é bem provável que
possamos abrir
no pasto
um formidável poço de petróleo. Por que não? Disse e ficou pensando no assunto
com os olhos nas andorinhas que desenhavam "riscos de velocidade" no
céu azul. Depois chamou o geólogo e disse:
— O amigo
Visconde já deve estar afiadíssimo em geologia de tanto que lê esse tratado.
Pode portanto dar parecer num problema que me preocupa. Acha que poderemos
tirar petróleo aqui no sítio?
O
Visconde respondeu depois de cofiar as palhinhas do pescoço:
— Ê possível, sim. Com base nos meus estudos estamos em terreno francamente oleífero.
— Lá vem! Lá vem o pedante com os tais termos arrevesados! Que quer dizer oleífero?
— Oleífero, quer dizer produtor de óleo. Frutífero, produtor de frutas; argentífero, produtor de
prata...
— Milhífero, produtor de milho — gritou a boneca, aparecendo e metendo o bedelho na conversa.
Em vez de tanta ciência, eu preferia que o Senhor Visconde produzisse
grãozinhos de milho de pipoca. Há um mês que tia Nastácia não rebenta nenhuma,
porque o milho acabou. Se este sabugo de cartola produzisse pipocas em vez de
ciência, seria muito melhor.
— Não encrenque, Emília — ralhou Pedrinho. — Estamos a tratar dum assunto muito sério: o
petróleo. Que acha de abrirmos um poço de petróleo aqui no sítio?
Emília
arregalou os olhos. A lembrança pareceu-lhe de primeiríssima.
— Ótimo, Pedrinho! Até parece ideia minha. E tenho um plano maravilhoso para
conseguir uma perfuração bem redonda e profunda.
— Qual é?
— O tatu! Amarra-se um tatu pela cauda e pendura-se ele de cabeça para baixo, no ponto onde queremos abrir o
poço. Na fúria de fugir, o tatu vai furando, furando até chegar no petróleo...
— E aí?
— Aí espirra — e a gente fica sabendo que deu no petróleo.
Pedrinho
tocou Emília da varanda e continuou na discussão com o Visconde.
— Primeiro — disse o grande sábio — temos de abrir um curso de geologia. Sem que todos
saibam alguma coisa da história da terra, não podemos pensar em poço. Como já
li esta Geologia inteira, proponho-me a ser o professor.
— Ótimo! — exclamou Pedrinho levantando-se. Vou avisar o pessoal que as aulas começam
hoje mesmo. Otimíssimo...
Foi assim
que começou o petróleo no Brasil.
CAPÍTULO 1: O PRIMEIRO SERÃO
Pedrinho arrumou a sala como um
anfiteatro de escola superior. Um tamborete em cima da mesa ficou sendo a
cátedra do mestre. Na primeira fila de cadeiras sentaram-se Narizinho, Emília e
ele. Na segunda, Dona Benta e tia Nastácia. Pedrinho fez questão de que a pobre
negra também se formasse em geologia.
Naquela noite, logo que todos se
reuniram, Pedrinho plantou o geólogo na cátedra.
— Nivele as extremidades e comece,
Senhor Visconde.
O sábio assim fez; depois de apoiar
os pés na geologia, erguendo-os ao nível da cartolinha, cuspiu o pigarro e
começou:
— A Geologia é a história da Terra.
Tudo que aconteceu desde o nascimento deste nosso Planeta se acha escrito nas
rochas que o formam. A terra é uma rocha, uma bola de pedra.
Como nasceu? Temos de adivinhar,
porque nenhum de nós assistiu a isso. Uns imaginam que foi dum jeito. Outros
imaginam que foi de outro jeito. Vou contar como nós, sábios, imaginamos o
nascimento da terra.
Em certo instante do Tempo Infinito,
destacou-se do Sol um pedaço da massa de fogo que ele é e ficou regirando no
espaço. A Terra, portanto, começou sendo uma bolota de fogo no espaço...
— Espécie de bomba de pistolão! —
gritou Emília.
— Sim. Tal qual bomba de pistolão.
Mas as bombas de pistolão descrevem uma curva e caem. A bolinha de fogo de nome
Terra, em vez de cair, ficou toda a vida a regirar em torno do canudo do
pistolão, que era o Sol. E foi se resfriando. Quando eu digo bola de fogo, é um
modo de dizer. Era uma bola de minerais derretidos, ou pedra derretida. Dessa
massa candente escapou mais tarde o espirro que formou a Lua.
— E por que motivo a Terra foi se
esfriando? — perguntou Narizinho.
— Porque a tendência do calor é
espalhar-se. Tudo que é quente esfria porque o calor se espalha — sai do corpo
quente espalha-se pelo espaço. O calor irradia-se, como dizem os sábios. De
modo que o calor da bola de minerais derretidos que chamamos Terra foi se
irradiando — e até hoje está se irradiando.
— Como isso? Pois então já não está
totalmente fria a Terra?
— Não. Já que esfria de fora para
dentro, só está fria na crosta, ou na casca onde nós, e todos os animais e
plantas, vivemos. Mas à medida que vamos afundando dentro da terra, o calor
cresce.
— Como sabe disso?
— Em qualquer perfuração profunda
observa-se muito bem esse fato. O termômetro, que é o instrumento de medir a
temperatura, sobe de um grau a cada 25 metros de descida. Nessa marcha a dois
ou três quilômetros de fundo temos a temperatura da água em ebulição; e a
trinta ou quarenta quilômetros temos a temperatura em que os metais se
derretem.
— Que horror! Quer dizer então que
lá bem no centro da terra o calor é de nem se fazei ideia?...
— Exatamente. Não podemos fazer ideia
dele. Além desse aumento do calor com a fundura, ainda existem muitas outras
provas do calor central da terra.
— Os vulcões! — gritou Emília.
— Sim os vulcões. São aberturas por
onde o fogo interno jorra. Hoje há muito poucos vulcões, uns 250; mas no começo
a superfície inteira da crosta era coalhadinha de vulcões.
— Como sabe?
— Porque pela superfície inteira da
terra vemos sinais de vulcões extintos — as rochas derretidas que saíram deles,
as rochas ígneas, ou eruptivas, como se diz em geologia. Temos,
ainda, os gêiseres, que são repuxos de água quente. Se a água sai quente, de
alguma parte recebe o calor.
— Mas como nós não sentimos esse
calor aqui em cima?
— Porque já há uma espessa camada de
rochas quase fria, entre nós e as zonas de calor ainda forte. Essa camada
constitui a crosta da Terra. Resfriou-se; as rochas derretidas que a compunham solidificaram-se — e como são más
condutoras do calor, evitam que morramos assados aqui em cima.
Nos vulcões ativos podemos ter uma
prova de como a coisa é. A lava que escorre desses vulcões, sai candente,
derretida, em forma de pasta mole; o calor é tanto que nem olhar para aquilo de
perto a gente pode. Cega os olhos. Mas logo que se afasta da cratera, a lava
começa a resfriar-se, muda de cor; perde o fulgor cegante e fica vermelha,
depois vermelho-escuro e por fim preta. A massa endurece por cima e esfria a
ponto de podermos passear sobre ela; mas dentro o calor continua bravo.
— Muito bem, Visconde — disse
Narizinho. Chega de calor. Já estou suando. Fale das rochas.
O Visconde falou.
— Chamamos rocha a essa massa de
minerais derretidos que se esfriaram e solidificaram. São compostas duma
mistura de minerais simples, verdadeira salada. Existem nelas sílica, quartzo,
mica, feldspato, ferro e todos os minerais que conhecemos.
A terra, portanto, aos resfriar-se,
ficou uma bola com casca de pedra dura, ou de rochas ígneas, também chamadas eruptivas
ou plutônicas.
— Que quer dizer ígnea? — indagou Pedrinho.
— Ígneo significa neste caso produzido pelo fogo. Essa bola de pedra dura
regirava no espaço envolvida por uma camada de ar e uma imensa nuvem de
vapores. Esses vapores, compostos de hidrogênio e oxigênio, formavam uma
combinação de nome água, interessante por mil razões, entre as quais a de ser a nossa mãe — a mãe de todos
os seres vivos, animais e plantas.
— Que engraçado! Nunca pensei nisso.
— Pois é. A água é a mãe da vida — e
o pai é o calor. Sem água e calor não há vida possível. Mas no começo, não
havia água. Só havia vapor de água, ou água em estado gasoso. O oxigênio e o
hidrogênio quando se combinam ficam rebeldes ao calor excessivo. Por essa
razão, em vez de permanecerem incorporados na massa candente da terra, fugiram,
ficando suspensos no ar sob forma de grande nuvem a envolver a bola.
Assim, porém, que a crosta da terra
entrou a resfriar-se e a consolidar-se, a água passou do estado gasoso para o
estado líquido — e desceu sob forma de chuva para irrigar a crosta. A água
acumulada nas partes mais baixas deu origem aos oceanos, mares e lagos. A que
caiu nas partes mais altas deu origem aos rios. Ainda hoje a água sofre a ação
do calor do sol e evapora-se, para cair de novo sob forma de chuva; mas daqui a
milhões de anos o calor do sol não dará para evaporar a água e ela então ficará
unicamente em estado líquido.
— Ou sólido — ajuntou Pedrinho.
— Perfeitamente. Quando por cima de
toda a crosta da terra o calor do sol for tão pouco como já é hoje nas regiões
polares, então toda a água do mundo se congelará. Os rios secarão, porque não
havendo chuvas que os alimentem não pode haver rios — e os lagos e os mares se
transformarão em imensas planícies de gelo.
— Que ótimo! — exclamou Emília.
Poderemos ir
daqui à Europa numa volada de
patins.
— Ótimo, nada! — contestou Pedrinho.
Nesse tempo estará extinta a vida na terra, como já se extinguiu nos polos. Até
me arrepio de pensar nisso...
— Muito bem — continuou o Visconde.
Estávamos já com a crosta da terra endurecida e a água formando os mares, os lagos
e rios. Neste ponto começou a dar-se um fenômeno muito interessante. A água, de
tanto lidar com o Calor e o Ar, fez com eles um trato. "Está muito feia a
terra, assim reduzida a uma crosta de rocha dura", disse a Água.
"Precisamos combinar umas modificações que permitam o aparecimento da
vida. Quero ver a terra cheia de verdura e de bichos que andem, corram e se
ataquem uns aos outros."
— E urrem, e zurrem, e piem —
acrescentou Emília.
— "E para isso, que
fazer?" — perguntou o Calor.
— "Aliar-nos os três e
atacarmos as rochas ígneas, transformando-as em rochas sedimentárias" —
respondeu a Água.
— "De que modo?" —
perguntou ainda o Calor, que era bem burrinho.
— "Isso veremos na hora do
trabalho. Tenho que experimentar. No momento basta que vocês jurem aliança
comigo."
O Calor e o Ar aceitaram a proposta
e desde então o trabalho da Água, do Calor e do Ar na transformação da crosta
da terra não parou um só minuto. Para atacar as rochas ígneas os três
inventaram uma picareta invisível, chamada
Erosão. A Erosão ataca todas as pedras dum modo contínuo, e as vai
rachando, lascando, esfarelando, até reduzi-las a pó finíssimo.
— Que negócio é esse? — perguntou
Pedrinho.
— Muito simples. Para atacar uma
grande massa de rocha, o calor primeiro a aquece. Vem depois a água, sob forma
de chuva, e a resfria bruscamente. Como o calor dilata os corpos e o
frio os contrai, começou na crosta da terra um terrível
rachamento de pedras. Pedra aquecida e resfriada de brusco, racha, parte-se. As
grandes massas de rochas foram sendo divididas em pedaços cada vez menores. E
quando esses pedaços, por ficarem muitos pequenos, puderam resistir ao processo
do rachamento, a Erosão veio com processos novos. A água, nas grandes chuvas,
criava as enxurradas, as torrentes. Os blocos de pedra eram arrastados por
essas torrentes, chocando-se uns nos outros, desgastando-se. Quem examina um
fundo de ribeirão vê milhares de pedras de todas as cores, que de tão
esfregadas entre si ficaram roliças, com todas as arestas destruídas. Também o
Ar entra em cena, e sob forma de Vento ajuda a Erosão. O quebra-quebra, o
esfrega-esfrega, o bate-bate e o rola-rola acabam transformando tudo em
pedregulho, e depois transformando o pedregulho em areia e pó finíssimo de
pedra — ou argila. E como as enxurradas correm para os ribeirões, e os
ribeirões correm para os rios, e os rios correm para o mar, todas as rochas
destruídas pela Erosão acabam despejadas no mar.
— Mas, se é assim, os mares já
deviam estar completamente entupidos — observou Narizinho.
— E que disse que os primeiros mares
não foram todos entupidos? Os mares de hoje não estão onde estavam os mares de
milhões de anos atrás. Temos mil provas disso. Os continentes modernos já foram
mares. Por toda parte, até nas mais altas montanhas, vemos sinais de mar, o que
quer dizer que também as montanhas já foram fundos de mar. As neves eternas do
Himalaia, que é a mais alta montanha do mundo, repousam sobre camadas de
calcário — e o calcário, como vocês devem saber, é uma rocha sedimentária formada
no fundo do mar. Rocha sedimentária quer dizer rocha que se sedimentou.
— E que é sedimentar?
— Sedimentar é ser depositado no
fundo da água. Se num copo você mistura areia com água e sacode, logo a areia
se deposita no fundo, isto é, se sedimenta. Pois foi o que aconteceu na crosta
da terra. O material das rochas ígneas, desagregado pela Erosão, era arrastado
para os mares e depositava-se no fundo deles — e isso se deu em tamanhas
proporções que na superfície da terra há hoje muito mais rochas sedimentárias
do que ígneas. Estas foram na maior parte destruídas — ou transformadas. Só
restam as que estão no fundo, livres do contato da água e do ar.
— Mas se é assim — disse Pedrinho —
a crosta da terra devia estar toda reduzida a areia e pó — e não está.
— Não está porque a Erosão tem três
inimigos que invertem a sua obra de pulverizamento.
— Quais são eles?
— A Pressão, a Cimentação e o
Metamorfismo. Logo que se forma um sedimento no fundo das águas, estes três
inimigos entram em cena para ligar de novo as partículas de rocha que a Erosão
desagregou. Eles ligam essas partículas, cimentam-nas, soldam-nas. Surgem então
as massas de rochas sedimentárias: os conglomerados compostos de
pedregulhos ou fragmentos de rocha cimentados entre si: os arenitos, que
não passam de grãos de areia também cimentados entre si; os xistos, que
são pó de argila consolidado; e as chamadas rochas orgânicas, formadas
de resíduos de conchas e ossos de peixe e também de vegetais.
— Que luta é a vida! — exclamou
Narizinho. Um faz e outro desfaz. Nada tem sossego...
O Visconde enxugou o suorzinho da
testa e continuou:
— Essa briga entre a Erosão e os
seus três inimigos faz que realmente as rochas não tenham sossego. A erosão as
esfarela; os outros as recompõe — e será assim eternamente.
— E as tais rochas orgânicas?
— São rochas sedimentárias
constituídas pelos restos mortais dos animálculos e das plantas. Quando uma
floresta é soterrada, todas as árvores nela existentes se transformam numa
rocha de nome hulha, ou carvão de pedra. Nos brejos as
plantas aquáticas que morrem e afundam formam uma rocha de nome turfa.
E nos mares, quando se sedimentam casquinhas de numerosos animálculos e esqueletos de peixe, formam-se conglomerados
de rocha calcária. São essas as rochas orgânicas.
— E o tal Metamorfismo? — quis saber
a menina.
— Bom. O metamorfismo dá-se quando
as rochas sedimentárias são muito comprimidas pela pressão ou atacadas pelo
calor. Prestem atenção: sempre que lá no fundo da terra um jato de rocha
derretida sobe e intromete-se por entre as camadas de rocha sedimentária, o
tremendo calor da rocha derretida derrete a rocha sedimentária com que ficou em
contato — salda as partículas, redu-las quase a rocha ígnea outra vez. A
pressão excessiva, junto com o calor, também as modifica. B as rochas
sedimentárias que sofrem esses calores e essas pressões são conhecidas pelos
geólogos como rochas metamórficas.
— Que quer dizer metamórfico?
— Quer dizer que sofreu uma
metamorfose. Metamorfose é a passagem dum estado para outro. Emília, por
exemplo, metamorfoseou-se em gente, isto é, passou de boneca de pano a gente.
As borboletas são produtos duma interessantíssima metamorfose. Começam
lagartas, esses bichos cabeludos que andam por aí a se arrastarem, comendo
folhas de plantas; um dia as lagartas param de comer, encolhem-se num galhinho
e sofrem uma metamorfose; viram casulos. O casulo passa uma porção de tempo
dormindo, e um belo dia sai dele a borboleta. Tudo são metamorfoses.
— Outra metamorfose interessante —
disse Dona Benta — é a do pensamento lógico que temos durante o dia nessa coisa misteriosa que chamamos sonho. E como o
relógio vai bater nove horas, acho que é tempo de irmos para a cama
metamorfosear nossos pensamentos em sonhos. Basta por hoje, Visconde. Gostei da
sua liçãozinha. Está certa. Deixe o resto para amanhã.
Todos concordaram que a lição do
Visconde fora boa, exceto tia Nastácia. A negra dormira o tempo inteiro. E
quando Narizinho a censurou por causa disso, respondeu com a maior sinceridade:
— Pra que ouvir, menina? Não entendo
nada mesmo...
CAPÍTULO
2: SEGUNDO SERÃO
No serão seguinte reuniram-se mais
cedo. A curiosidade aumentava. Pedrinho plantou novamente o geólogo em cima da
mesa e cada qual se sentou na cadeira da véspera. Tia Nastácia também veio, mas
nem esperou o começo. Tratou logo de tirar uma boa soneca.
Depois de cuspir o pigarrinho, o
Visconde deu começo à lição.
— Vimos ontem — disse ele — que a
terra principiou uma bola de pedra feita duma mistura de minerais. Quer dizer
que por aqui só havia minerais — nada de animal ou vegetal. Mas a Água, o Ar e
o Calor se ligaram para criar as primeiras vidas, todas vegetais. Fizeram
surgir no mar umas coisinhas mínimas, fabricadas de minerais, mas que já não
eram minerais — eram vegetais. Logo, o vegetal é filho do mineral; é
o próprio mineral sob forma diferente. E o que caracteriza esse vegetal é
aparecer sob forma organizada, ou com órgãos. Organizado é uma coisa que
tem órgãos.
— E órgãos, que é? — quis saber
Narizinho.
— Órgão é um aparelho que desempenha
uma função, isto é, que faz qualquer coisa. Os minerais não têm órgão; por isso são parados. Os vegetais têm. As vidinhas
vegetais que surgiram foram se desenvolvendo, ficando cada vez mais complicadas
e aperfeiçoadas, até darem os vegetais que temos hoje — as árvores, os capins,
tudo. Se analisarmos a matéria que compõe um vegetal, veremos que é toda
mineral. Por isso digo que o vegetal é filho do mineral. É o mineral com
órgãos. Em certo momento da vida da terra alguns desses vegetais começaram a
modificar-se lentissimamente, porque tudo na natureza é terrivelmente lento.
Pressa não é com ela — não passa de invenção dos homens. Começaram a
modificar-se num sentido diferente do resto — e foi assim que
surgiram os primeiros animaizinhos. Ainda hoje existem seres minúsculos
que não são bem vegetais nem bem animais.
— Que são então?
— São vegetais e animais ao mesmo
tempo. Isto mostra que naqueles começos de vida na terra, houve um tempo em que
o animal estava ainda meio lá meio cá, meio planta meio futuro animal. A
natureza que vive experimentando coisas, depois de criar a vida vegetal
resolvera experimentar uma novidade: a vida animal. O processo da natureza é o
da experiência e erro. Experimenta, erra; experimenta, erra; súbito,
experimenta e acerta — e então fixa ou conserva aquele acerto, e toca para
diante com outras experiências.
— E acertou com o animal?
— Tanto acertou que aqui estamos
nós, animais aperfeiçoadíssimos.
Emília cochichou ao ouvido de
Narizinho: "Olha a
pretensão dele! Nós, animais!
Um vegetalíssimo sabugo a considerar-se animal! Tem graça..."
O Visconde continuou:
— Por fim o animal destacou-se
definitivamente do vegetal, criando órgãos novos; mas não passa dum filho
direto do vegetal.
— Neto, portanto, do mineral —
acrescentou Pedrinho.
— Exatamente, neto do mineral. Se
analisarmos a matéria que compõe um animal veremos que é todinha formada de
minerais. Logo, o animal é a terceira forma do mineral. Mais tarde, com o
desenvolvimento dos animais, surgiu neles uma coisa nova: o Pensamento.
— Bisneto do mineral! — gritou
Pedrinho.
— Para mim é isso mesmo — concordou
o Visconde. Não sei se para os outros sábios também será...
Mas como eu ia dizendo, a base de
tudo, inclusive da vida, o mineral, que temos na natureza, sob forma das
rochas, onde está escrita toda a história da terra. A história do homem, muito
curtinha, pois não vai além de 7.000 anos, nos é contada pelos documentos ou
restos humanos que resistiram à destruição do tempo — múmias de egípcios,
inscrições em monumentos, as pirâmides e outras coisas assim. Mas a história da
terra, contada pelas rochas, alcança milhões de anos. Apesar disso, um geólogo
como eu lê tão claramente numa rocha como Pedrinho lê num livro.
— Lê que coisas?
— Lê a idade dessa rocha, lê como
ela se formou, o que sofreu nas suas lutas com a erosão; lê, portanto, a
história da formação da terra, do nascimento das plantas, do aparecimento dos
animais, tudo.
— De que modo a rocha fala das
plantas e dos animais? — quis saber Narizinho.
— As rochas são túmulos de vidas
passadas. Nelas encontramos fósseis de plantas e animais que levam os geólogos
a mil conclusões sobre a história da terra. Esses restos mortais, revelam
inúmeras formas de vida que já se extinguiram. Mostram plantas esquisitas, avós
de muitas plantas de hoje. E vemos animais esquisitíssimos, também avós dos
animais de hoje. E outros ainda mais esquisitos, que desapareceram sem deixar
descendência. Mais tarde havemos de estudar a paleontologia, que é a ciência
dos fósseis. Por enquanto só falaremos dos que se relacionarem com o petróleo.
Nas escavações para petróleo os geólogos encontram restos fósseis de
animálculos e de plantículas marinhas — como as diatomáceas, algas de
células revestidas duma película de sílica.
— Que é sílica?
— Um mineral dos mais abundantes na
natureza. Depois do oxigênio é o que aparece em maior quantidade. As areias são
formadas de sílica. Mas, como ia dizendo, essas plantinhas possuem células com
capa de sílica, de modo que quando morrem e desaparece o que há dentro das
células, fica só a casquinha. Ao lado das diatomáceas encontram-se também
muitos fósseis de radiolários, foraminíferos, ostras, etc.
— Radiolário?... Foraminífero? Que é
isso?
— Animálculos com esqueletinhos de
sílica que também chegaram até nós em estado fóssil e fornecem aos sábios
preciosa instrução sobre o estado da terra há milhões e milhões de anos. Em
certos pontos essas formas de vida se acumularam em tremendas quantidades.
Encontramos hoje extensões enormes atulhadas com os seus esqueletinhos. E surge
a pergunta: Para onde foi a substância que enchia as casquinhas? Para onde foi
o protoplasma de que eram formados esses pequenos seres?
— Pro-to-plas-ma — repetiu Emília.
Explique o que é. Eu não finjo que sei as coisas.
— Protoplasma — explicou o Visconde
— é o caldo, o mingau desses serezinhos. É a substância da vida. A vida começa
sendo protoplasma. O princípio de tudo que é orgânico está no protoplasma.
— Viva o protoplasma! — gritou
Emília.
— Diante desses enormes amontoados
de fósseis, os sábios perguntam: "Onde está o gato?" Isto é:
"Onde está o protoplasma que os enchia?" Os sábios sabem que na
natureza nada se perde; uma coisa não desaparece, apenas se transforma em
outra. Se não está aqui, está ali. Se não está sob esta forma, está sob outra
forma. Os sábios fazem essa pergunta e eles mesmos respondem, porque a função
dos sábios é perguntar e responder a si próprios.
— E que respondem?
— Respondem uma porção de coisas;
esse protoplasma, ou essa matéria orgânica dos animálculos, muda-se numa porção
de coisas que neste momento não nos
interessam — e mudam-se também no que mais nos interessa: em petróleo. Esses
bichinhos eram seres marinhos e por isso se multiplicavam tanto. O grande
reservatório da vida sempre foi o mar. Na terra a vida só é possível na
superfície e até a poucos palmos de fundo, onde moram as minhocas. Já no mar a
vida é possível até nas maiores profundidades. Mal comparando, a vida na terra
é uma folha de papel; e a vida no mar é uma pilha de folhas de papel que vai
desde a superfície das ondas até lá no fundo. Num pedaço de terra do tamanho
desta sala, quanta vida cabe?
— Pouca — respondeu Pedrinho. Uns
animais grandes, umas plantas, uns bichinhos e os micróbios. Só.
— Exatamente. Mas num pedaço de mar
do tamanho desta sala cabe um colosso de vida, porque esse pedaço de mar pode
descer até 9.000 metros de fundo, como no Mar do Japão, e está cheio de vida
desde cima até embaixo. Por esse motivo a fauna e a flora do mar são imensas,
muitíssimo mais ricas que a fauna e a flora da terra. Os cetáceos e os peixes
representam as formas graúdas de vida marinha — as baleias, os tubarões, os
espadartes, os atuns, os salmões, os arenques. Mas muito mais que isso são as
formas da vida miudinha, que em vez de nadar boia na imensa massa líquida. Se a
flora e fauna miúda fossem juntadas num bloco, dariam uma montanha muito maior
que a formada de todos os peixes. Ora, toda essa vidalhada está nascendo e
morrendo sem parar — e o que morre afunda. Em virtude disso há no mar uma
perpétua chuva de organismos mortos, que vão caindo e se acumulando no fundo, onde formam uma camada de lodo negro,
ou um sedimento. Tudo que se deposita é um sedimento, como já mostrei.
— Bolas! — exclamou Emília. Então o
dinheiro que Dona Benta depositou no banco é um sedimento?
O Visconde coçou a cabeça. Emília
atrapalhava-o com aquelas objeções de bobagem. Mas continuou, sem dar-lhe
resposta:
— Esses sedimentos de animálculos e
vegetais mortos cobrem o fundo dos mares, de modo que aquilo não passa dum
imenso cemitério de matéria orgânica.
— Que quer dizer matéria orgânica?
— É a matéria que compõe os vegetais
e os animais, isto é, as coisas dotadas de órgãos. Orgânico vem de órgão. Só
têm órgãos as coisas que têm vida. A matéria que forma os minerais chama-se matéria
inorgânica.
O Visconde tossiu — cuspiu e
prosseguiu:
— Bem. Nas regiões marinhas próximas
das terras, sobretudo nos golfos, parte desse lodo negro do fundo do mar foi
recoberto, há milhões de anos, pelas areias e argilas que os rios despejam no
mar. Como já vimos, a erosão desagrega as rochas e por meio dos rios as conduz
para o mar. Por isso os continentes estão sempre a diminuir de volume e o fundo
do mar está sempre a crescer de altura. Os sábios calculam, por exemplo, que
cada mil toneladas de material pulverizado extraído do continente, de modo que
em cada dez mil anos o tal golfo fica mais raso um metro. No fim de 7 milhões
de anos estará completamente aterrado. Aqui no Brasil temos o Amazonas que, segundo os cálculos de Euclides da Cunha, leva
para o mar 3 milhões de metros cúbicos de detritos por dia, ou sejam quase dois
quilômetros cúbicos por ano. Mas esses detritos não se acumulam logo adiante do
despejo do Amazonas, por causa da velocidade da correnteza na foz. São levados
mar adentro até alcançarem a célebre corrente do Golfo do México, e no fundo
deste golfo se depositam, de mistura com os detritos do Mississipi.
— Quer dizer então que o Brasil
também fornece aterro para o Golfo do México?
— Sim, e em boa quantidade. Manda
para lá quase dois quilômetros cúbicos de terra amazônica por ano.
— Mas assim a região amazônica vai
se abaixando e acabará invadida pelo mar...
— Muito possível. Essa região já foi
mar, antes do enrugamento da terra que criou a Cordilheira dos Andes. Era um
mar que ligava o Atlântico ao Pacífico. Hoje é um aguaçal doce, de tanto rio
que há lá; e como esses rios não param de desmontar as terras, acabarão
baixando-as tanto que a água do mar cobrirá novamente a bacia amazônica,
formando o futuro Golfo do Amazonas. Por esse tempo o Golfo do México estará
aterrado.
— Bonito! — protestou Pedrinho.
Então os Estados Unidos aumentarão de território à nossa custa, mandando para
cá o golfo que há lá?
— Claro. Os dois maiores rios do
mundo, o Amazonas e o Mississipi, estão empenhados nessa tarefa de aterrar o
Golfo do México e abrir o Golfo Amazonense.
— Sim, senhor! — disse Narizinho.
Vejo que a água é mesmo uma danadinha. Muda tudo na terra, com a sua mania de
não parar nunca. É a leva-e-traz, é a sobe-e-desce, é a saúva carregadeira.
— Realmente é assim. Os sábios sabem
que há uns poucos milhões de anos o Golfo do México tinha uma extensão o dobro
da de hoje. O mesmo acontece com o Golfo da Califórnia, que já foi muito maior.
Está em grande parte aterrado pelo despejo dos rios — e é nessa parte aterrada
que os americanos extraem maior quantidade de petróleo.
— Quer dizer que o petróleo se forma
nesse lodo enterrado?
— Justamente. A matéria orgânica
acumulada nos sedimentos gera o petróleo — pelo menos na opinião de muitos
sábios. Mas para isso é preciso que nessa matéria orgânica haja hidrocarbonetos.
— Que bicho esquisito é esse?
— Hidrocarboneto é o nome que os
químicos dão às combinações de hidrogênio e carbono. Esses dois corpos
mostram-se muito amigos, gostam de andar juntos, de braços dados. Os átomos de
um se ligam aos átomos de outro, ora nesta, ora naquela proporção — e conforme
é essa proporção, surgem os hidrocarbonetos chamados metana, butana,
propana, acetileno, benzina, etc. que são gases ou líquidos
voláteis, todos eles inflamáveis.
— Que quer dizer líquido volátil?
— Quer dizer um líquido que se
transforma em gás assim que é exposto ao ar. Conserva-se líquido, enquanto preso. Se o soltam, adeus! vira gás. Mas, como eu ia
dizendo, para que se forme petróleo é preciso que nos tais sedimentos haja
hidrocarbonetos. Nos sedimentos sem hidrocarbonetos, só de fósseis secos, tais
como os sedimentos calcários, não se forma o petróleo.
— Bom — disse Emília — estou vendo
que o tal petróleo não passa de azeite de defunto. Cadáveres de foraminíferos,
peixe podre, cemitérios de caramujo — até já estou ficando com o estômago
enjoado...
— Por isso é que é tão fedorento —
ajuntou Narizinho.
— O Visconde falou no aterro dos
golfos do México e da Califórnia — disse Pedrinho. E aqui no Brasil? Não
teremos algum aterro assim?
— Como não? Há, por exemplo, o Pantanal
de Mato Grosso, um dos maiores aterros que o mundo conhece.
— Explique isso, Visconde.
— O Pantanal de Mato Grosso e o
Chaco do Paraguai e da Bolívia formam uma imensa depressão duns 700 quilômetros
de comprimento. Essa região já foi um mar interno, ou mediterrâneo, como se vê
das inúmeras lagoas de água salgada ainda existentes. Chamava-se o Mar de
Xaraés. Também inúmeros fósseis marinhos atestam o antigo mar que secou — ou
que está secando, porque as lagoas salgadas ainda são restos do mar.
— E quem aterrou esse Mar de Xaraés?
— Está claro que foi a Erosão, com a
terra tirada da Cordilheira dos Andes, dum lado, e das montanhas do Brasil, de
outro. Ainda hoje vemos no meio do pantanal algumas montanhas baixas, como a
Serra de Maracaju e a da Bodoquena. Essas serras são ruínas de montanhas.
Deviam ter sido altíssimas, mas foram rebaixadas pela erosão. Com as areias e
argilas tiradas delas, dos Andes e das outras montanhas do Brasil, é que se
aterrou o velho Mar de Xaraés.
— Deve haver muito petróleo no Pantanal
— observou Pedrinho.
— Claro que deve. Reúnem-se ali
todos os requisitos para a formação do petróleo, além de que em muitos pontos
há sinais evidentes de petróleo. Bem possível até que o Pantanal seja a maior
região petrolífera do mundo.
— Que beleza! — exclamou Pedrinho
pensativamente.
Nesse momento o relógio da parede
bateu nove horas.
— Basta por hoje, Visconde — disse
Dona Benta levantando-se. — Ouvi com a maior atenção a sua geologia e acho que
está certo. Mas basta. Temos de alternar ciência com sono — e chegou a hora de
recolher.
Depois, voltando-se para tia
Nastácia, que cochilara o tempo inteiro:
— Que tal está achando a geologia do
Visconde? — perguntou.
Tia Nastácia abriu uma enormíssima
boca vermelha e respondeu bocejando:
— Ele só fala em peixe podre, Sinhá.
Peixe há de ser fresquinho. Quanto mais fresco, melhor. E se vem ainda vivo, como aquele surubi que o Coronel Teodorico mandou
outro dia, então ainda melhor...
CAPÍTULO 3: COMO SE FORMA O
PETRÓLEO
No terceiro serão o Visconde começou
sem a clássica tossidinha do costume. Emília reclamou:
— Esqueceu-se de limpar o pigarro,
Visconde.
A fim de contentá-la, o grande
geólogo teve de fingir um pigarro que não existia — mas para castigo principiou
a aula com esta pergunta:
— Senhora Emília, explique-me o que
é hidrocarboneto.
A atrapalhadeira não se atrapalhou e
respondeu:
— São misturinhas de uma coisa
chamada hidrogênio com outra coisa chamada carbono. Os carocinhos de um se
ligam aos carocinho de outro e formam metanas e butanas e propanas e benzinas e
outras coisas gasosas ou voláteis que pegam fogo.
— Isso mesmo. Só que esses
carocinhos têm o nome científico de átomos. E onde se encontram esses
hidrocarbonetos, Pedrinho?
— Nos sedimentos marinhos, sobretudo
rente às costas, em terras que já foram mares, ou dentro dos continentes, em terras que também já foram mares.
— Muito bem. Os tais sedimentos
orgânicos, os tais cemitérios de animálculos e plantículas, geram os tais
hidrocarbonetos que pegam fogo; mas isso só quando se reúnem umas tantas
condições favoráveis. Esses cemitérios de matéria orgânica devem ser cobertos
um pouco depressa pelos tais aterros dos rios. Têm que ficar incubados, como
ovos na incubadeira, sob tais e tais condições; do contrário não saem os pintos
do petróleo.
— Que condições são essas? —
perguntou Pedrinho.
— Uma delas é ficarem isolados das
águas. Esse isolamento livra a matéria orgânica de ser devorada por certos
seres viventes, os urubuzinhos do mundo pequeno. E também a livra da fome
insaciável do maior urubu que existe na Natureza, o tal Senhor Oxigênio. Este
freguês tem um apetite de cabra. Come tudo quanto encontra, isto é, oxida
tudo quanto encontra, como dizem os químicos. O oxigênio existe na água e no
ar; por isso a matéria orgânica que cai na água, ou está exposta ao ar,
estraga-se depressa, desaparece, oxida-se — é devorada, em suma, pelo
terrível urubu.
— Ahn! — exclamou Pedrinho. — Então
é por esse motivo que não se forma petróleo na matéria orgânica de cima da
terra. Está exposta ao ar, entregue à fúria do oxigênio...
— Isto mesmo. O oxigênio é uma
espécie de guarda da natureza, com a missão de conservar as coisas num certo
estado de equilíbrio. Vemos isso com o ferro. Esse metal não existe na natureza
no estado livre de ferro puro. Existe sob forma do óxido de ferro, isto
é, misturado ou combinado, com o oxigênio. Os minérios de ferro, ou as pedras
de ferro, como o povo diz, não passam dessa combinação — são óxidos de ferro.
Mas vai o homem e derrete a pedra e fabrica o ferro metálico de que se utiliza
para fazer mil coisas — facas, arame, pregos, vergalhões, chapas, trilhos...
— Ferros de engomar, alfinetes —
ajuntou Emília.
—... tudo enfim que é máquina,
instrumento ou material de construção. Mas o Senhor Oxigênio, que não concorda
com a mudança, trata logo de desfazer a obra do homem — e enferruja o ferro.
Sabem o que é a ferrugem?
— É o ruge do ferro — disse Emília.
— Ferrugem é óxido de ferro. É o
oxigênio que se liga ao ferro para restabelecer o que a natureza criou e o
homem alterou. Vai lentamente trabalhando nisso, sem parar nunca, e força o
homem a fabricar muito ferro novo para substituir o ferro velho que volta a ser
ferrugem, ou óxido.
— Que bisca o tal oxigênio! —
exclamou Emília.
— Também com a matéria orgânica o
oxigênio faz a mesma coisa. Oxida-a, enferruja-a, combina--se com o carbono que
há nela e solta o hidrogênio. Mas quando a matéria orgânica fica enterrada, e
portanto fora de contato com o oxigênio da água ou do ar, podem acontecer
coisas diferentes — como essa de formar-se o petróleo.
— Mas se é assim — disse Pedrinho —
então o homem pode, se quiser, fabricar petróleo...
— Pode e já fabricou. Um sábio
alemão, de nome Engler, provou que as graxas de origem vegetal ou animal se
transformam em petróleo, quando aquecidas a uma temperatura de mais ou menos
400 graus a uma pressão de a 25 atmosferas.
— Que história de pressão
atmosférica é essa?
— Pressão atmosférica é o peso que o
ar exerce sobre um corpo.
— O ar então tem peso?
— Claro que tem. Todos os corpos têm
peso.
— Parece tão leve...
— Leve é, não há dúvida; levíssimo
até, mas tem peso. Um litro de ar pesa um bocadinho mais de um grama. E como a
atmosfera é a camada gasosa que vai desde o nível do mar até lá em cima onde o
ar acaba, essa camada atmosférica está sempre fazendo peso sobre tudo que
existe na terra, inclusive nós, gente. Uma coluna de ar de um centímetro
quadrado de base pesa 1.033 gramas, ou quilo e 33 gramas.
— Puxa! — exclamou Emília. — Mais de
um quilo para cada centímetro quadrado, que é uma isca de espaço!... Não
entendo! Se é assim, então o peso do ar sobre a cartolinha do Visconde deve ser
duns dez quilos, porque a cartolinha, com as abas, terá uns dez centímetros quadrados
de superfície. E com tamanho peso não achata a cartolinha?
— Porque essa pressão se exerce de
todos os lados e também debaixo para cima e de dentro para fora, de modo que se
anula. Mas se a gente extrair o ar que há dentro da cartolinha, fazendo o
vácuo, ela se achatará imediatamente.
— Bom, Visconde. Basta de ar e
pressões atmosféricas.. Volte ao petróleo — reclamou Pedrinho.
— Esta digressão...
— Que é digressão, Visconde?
— É sair do assunto principal, como
nós saímos. Esta digressão, digo eu foi para explicar por que motivo não se
forma petróleo nas matérias orgânicas expostas à água ou ao ar. Para que se
forme petróleo é necessário que a matéria orgânica fique isolada pelos aterros
que os rios fazem com os materiais trazidos pela correnteza. No começo há
mistura do aterro com a matéria orgânica; depois não se mistura mais, fica
aterro puro — o qual aterro puro forma uma capa, uma camada isoladora que livra
a massa de matéria orgânica do contato com a água, com o oxigênio e os outros
urubuzinhos comedores de matéria orgânica. Quando isso acontece, a massa
sossega e vai lentamente fabricando o petróleo.
— Interessante! — exclamou Pedrinho,
e o Visconde continuou:
— As jazidas de petróleo mais
importantes que o
homem conhece encontram-se, como já
contei, perto das costas e nos extintos mares interiores, ou mediterrâneos,
como foi o nosso Mar de Xaraés. Os riquíssimos campos de petróleo de Bacu,
rente ao Mar Cáspio, estão nessas condições. O mesmo direi dos campos
petrolíferos da Mesopotâmia, rente ao Golfo Pérsico. Aqui na América do Sul
temos os campos petrolíferos de Comodoro Rivadávia, na Argentina, rente ao
Golfo de S. Jorge. Esse golfo já foi muito maior. Os aterros é que o reduziram
ao tamanho atual. Na parte aterrada os argentinos abriram mais de 3.000 poços
de petróleo.
— Então é fácil saber onde está o
petróleo — disse Pedrinho. — Basta determinar se uma terra é formada de aterro
do mar.
— É o que os argentinos estão
fazendo. Por meio de estudos geológicos e geofísicos, eles procuram determinar
as terras de aterro para nelas abrirem as perfurações.
— Está tudo muito bem, Visconde —
disse Pedrinho. — Mas eu queria saber como a tal matéria orgânica vira
petróleo.
— Ah — exclamou o Visconde — isso é
uma história bastante comprida. São precisos milhões de anos de paciência. A
natureza é uma lesma nos seus processos, como já observei. Primeiro há a
mistura dos sedimentos orgânicos com as areias que os rios trazem; depois acaba
a mistura e começa o aterro puro. Esse aterro puro deve ser de materiais que
permitam a formação duma camada impermeável, uma casca, uma capa que defenda o
sossego
da matéria orgânica aprisionada no
fundo. Quando, em terra, uma vegetação fica por muito tempo recoberta e, por
consequência, livre de contato com o ar, os vegetais, em vez de apodrecerem,
transformam-se em turfa, ou em carvão de pedra. E quando, no mar, a matéria
orgânica composta das gorduras e dos caldinhos dos animálculos do lodo marinho
fica isolada do oxigênio, ela vai se convertendo numa série de matérias
betuminosas.
— Que é isso?
— Matérias betuminosas são as que
contêm hidrocarbonetos; o asfalto, o petróleo bruto e certos xistos são
matérias betuminosas. O homem refina essas matérias para extrair os
hidrocarbonetos puros empregados na indústria.
— Mas eu quero saber como se faz a
passagem do tal lodo de matérias orgânicas para petróleo — reclamou Narizinho.
— No laboratório os químicos sabem
fazer essa passagem. Já contei a experiência de Engler. Calor de 400 graus e
pressão de 20 a 25 atmosferas.
— Espere, Visconde. Vossa Excelência
esqueceu de explicar o que é uma atmosfera. Só falou na atmosfera em geral.
O Visconde tomou fôlego e explicou:
— Em física, a palavra
"atmosfera" quer dizer uma medida de pressão, como o metro
quer dizer uma medida de comprimento. Atmosfera, neste sentido de
medida,
equivale ao peso de 1.033 gramas por
centímetro quadrado. A pressão de 20 a 25 atmosferas usada por Engler
corresponde, pois, a um peso de 20 a 25 quilos por centímetro quadrado. Mas no
laboratório a formação do petróleo se faz imediatamente, com a pressa com que
os homens querem todas as coisas. Na natureza, não. O petróleo leva milhares de
séculos se formando — e os sábios não se entendem nesse ponto. Não sabem qual é
a marcha do processo de transformação.
O Visconde passou o lencinho pelo
rosto e prosseguiu:
— Muito bem. Creio que quanto à
formação do petróleo basta ficarmos nisto. Meu curso não é para formar
especialistas, sim para dar uma ideia geral da coisa. Temos agora de ver quais
as condições que tornam esses depósitos de petróleo exploráveis. Este ponto é
da maior importância para o mundo. Se o petróleo fosse inexplorável, de nada
valeria para nós. É preciso não esquecer que a formação das camadas de
sedimento se deu há milhões e milhões de anos, num tempo em que o globo era
ainda uma fruta fresca e roliça. Depois o coitado foi murchando até ficar a
passa que é hoje.
— Que história de fruta fresca e
passa é essa, Visconde?
— Uma comparação para que vocês me
entendam melhor.
— Comparações dessa ordem só servem
para nos fazer vir água à boca — disse Narizinho. — Passas! Quem me dera ter aqui um pacotinho daquelas sem caroço — seedless,
que vêm da Califórnia...
— Pois uma passa é uma fruta murcha
e ressecada, como aquele maracujá que Pedrinho descobriu atrás do armário, todo
enrugadinho, cheio de montanhas e vales. Com a terra aconteceu o mesmo. Começou
a esfriar e a murchar, e foi se encolhendo, e se enchendo das rugas que hoje
formam as montanhas e os vales. A Cordilheira dos Andes é uma das maiores rugas
desse tipo; segue através de toda a América do Sul e continua nos Estados
Unidos com o nome de Montanhas Rochosas.
— E que tem isso com o petróleo?
— Tem que no começo as camadas de
sedimento depositadas no fundo dos mares eram horizontais, ou mais ou menos
horizontais. Com o enrugamento, ou o murchamento da crosta da terra, essas
camadas horizontais perderam a sua horizontalidade, tornando-se por assim dizer
montanhosas, ou onduladas. Ainda existem no globo zonas onde a crosta está como
era nos primeiros tempos. As grandes planícies dos pampas da América do Sul e
das estepes da Rússia foram planícies no começo e continuaram planícies até
hoje. Não enrugaram. Mas isso é raro. No geral a crosta se enrugou, formando as
montanhas e os vales. Nesse enrugamento houve muita ruptura de camadas, com
escorregamentos duma sobre outra, torcimentos, penetração duma camada em outra,
etc. Mil acidentes aconteceram. Vou desenhar na pedra um desses pregueamentos
dos mais simples, para mostrar onde se acomoda
o petróleo.
O Visconde berrou para tia Nastácia
que lhe trouxesse o quadro-negro e o giz.
A preta saiu, estonteada de sono (o
quadro--negro morava no quarto de Pedrinho), e voltou resmungando:
— Peixe, peixe podre, peixe seco,
esqueleto de peixe... Para que serve esse lixo? Bobagem...
O quadro-negro foi arrumado de jeito
que o Visconde de pé na sua cadeirinha, pudesse desenhar uma figura assim:
— Isto é um corte da terra no estado
em que ela se achava antes do enrugamento. Temos uma camada sedimentária com o
petróleo já formado. Notem que o petróleo fica em nível plano e em cima da
água.
— Por que em cima? — quis saber Narizinho.
— Porque na massa de lodo
aprisionado pela capa do aterro havia também água — água do mar, água salgada.
E como é mais leve que a água, o petróleo, à medida que se forma, vai subindo e
se colocando em cima
da água. E o gás que também se forma
fica em cima do petróleo, porque o gás é mais leve que o petróleo. A ordem de
colocação, pois, é, primeiro água, depois petróleo, depois gás.
Dona Benta piscou para tia Nastácia,
como quem diz: "Que danadinho, hein?" O Visconde continuou:
— Muito bem. Mas um petróleo que se
acha disposto dessa maneira de nada serve ao homem. Não há jeito de recolhê-lo.
Para que o petróleo sirva é necessário que se aglomere num certo ponto — o que
se dá quando as camadas sofrem o tal enrugamento. Vamos fazer outro desenho,
com estas mesmas camadas já enrugadas. Teremos isto: — As camadas enrugaram —
explicou o Visconde — ficaram onduladas que nem montanha russa. E que aconteceu
com o petróleo já formado e acumulado por igual em cima dos sedimentos?
— Subiu para a parte mais alta por
ser mais leve
que a água — respondeu Pedrinho.
— Exatamente. O petróleo subiu e
ficou entalado entre o gás, em cima, e a água, embaixo. Essas rugas têm o nome
de anticlinais, quando são para cima e em forma de montanhas; e têm o
nome de sinclinais quando são para baixo, em forma de vale. O petróleo
nunca está no topo do anticlinal, sim nas encostas. Se abrirmos um poço bem no
pico do anticlinal, não sai petróleo, sai gás. Se abrimos um poço muito no pé
das encostas, sai água. Mas se abrimos um poço bem na encosta, sai petróleo.
— Então é facílimo tirar petróleo —
observou Pedrinho.
— Seria, se nós aqui de cima
pudéssemos ver com os nossos olhos essas dobras lá dentro da terra.
Infelizmente nossos olhos não penetram fundo assim.
— E como fazer, então?
— Por meio de observações
geológicas, isto é, de estudos da terra na superfície, os homens conseguem,
muitas vezes, localizar esses anticlinais. Ultimamente apareceu uma ciência
nova que tem ajudado muito: a Geofísica. Graças aos processos geofísicos
é possível determinar com muita precisão os anticlinais e os sinclinais,
e, portanto, marcar os melhores pontos para as perfurações.
— Emília antigamente tinha uns
olhinhos de ver através dos corpos opacos — disse a menina olhando para a
boneca. — Quem sabe se com esses olhinhos podemos determinar algum anticlinal
de petróleo aqui no sítio de vovó?
Emília remexeu-se toda.
— Ainda não fiz a experiência, mas
acho possibilíssimo. Hei de verificar esse ponto.
Tia Nastácia arregalou os olhos,
murmurando:
— Credo! — e como o relógio marcasse
nove horas, foi se levantando.
— Basta por hoje — disse Dona Benta,
erguendo-se também. — Continuo a aprovar a ciência do Visconde. Tudo quanto ele
disse está de acordo com o que os geólogos ensinam. Ele é um sábio de verdade,
mas... cama, cama, criançada!
Meia hora depois todos dormiam,
sonhando com anticlinais, matérias orgânicas, hidrocarbonetos e peixinhos
fósseis. Emília sonhou com uma baleia imensa, que esguichava petróleo.
CAPÍTULO 4: PETRÓLEO! PETRÓLEO!
No
serão seguinte, antes de o Visconde começar a aula, cada um contou o sonho
geológico que teve. O de Emília, como sempre, foi o mais complicado. Tinha-lhe
aparecido uma "baleia petrolífera", com várias torneiras pelo corpo
imenso; uma que dava gasolina; outra, querosene; outra, óleo combustível;
outra, óleo lubrificante...
— Pare, Emília! — gritou Narizinho
quando a boneca chegou nesse
ponto. — Vovó fala de 300 produtos extraídos do petróleo. Quer dizer que a sua
baleia vai ter 300 torneiras pelo menos — e se você começa a encarreirar todas,
o Visconde fica sem tempo de dar a lição de hoje.
— Além disso — ajuntou Pedrinho — eu
desconfio muito dos sonhos da Emília. São bem arranjados demais. Essa tal
baleia com torneiras petrolíferas está me cheirando a tapeação...
Emília pôs-lhe a língua, mas
"guardou" a baleia, deixando que o Visconde abrisse a boca.
— Muito que bem — começou ele. —
Vimos ontem como se formam os lençóis de petróleo, e vimos que esses lençóis devem estar protegidos por uma capa impermeável que
prenda os gases e o óleo. Vimos também que é preciso que os lençóis se enruguem
e o petróleo se acumule na parte superior das dobras. Se a capa se rompe, o gás
e o óleo escapam e perdem-se.
— Perdem-se como? — quis saber
Pedrinho.
— Quando você pinga um pingo de
azeite num papel, que acontece? — propôs o Visconde.
— Acontece que o azeite vai se
espalhando até tomar conta do papel inteiro.
— Isso mesmo. Espalha-se, vai
caminhando. O mesmo se dá com o petróleo lá do fundo, quando a capa impermeável
se rompe. Vai se espalhando, vai subindo, até chegar à superfície da terra. Em
muitos pontos do Brasil vemos os tais xistos e arenitos betuminosos, que não
passam de materiais impregnados do petróleo que veio subindo do fundo. No Vale
do Paraíba, aqui em São Paulo, no Riacho Doce, em Alagoas, em São Gabriel, no
Rio Grande do Sul e em muitos outros pontos existem grandes quantidades de
xistos betuminosos. Esse betume é sinal de petróleo do fundo que subiu até em
cima.
— Antes de mais nada, Visconde,
explique o que é xisto.
— Xisto é uma argila compacta que
aparece em lâminas, ou camadinhas; e arenito já ensinei: é areia com os
grãozinhos cimentados entre si, formando uma espécie de pedra meio dura.
— Nesse caso, quando há em cima da
terra xisto ou arenito betuminoso não deve haver petróleo no fundo. Se o petróleo
chega até em cima, então não está mais acumulado lá onde se formou.
— É e não é assim — respondeu o
Visconde. — O petróleo existente na camada subterrânea pode ter-se derramado
todo ou em parte. Por uma fenda, ou racha na capa impermeável, pode subir uma
parte do petróleo, ficando o resto no fundo.
— Tome fôlego, Visconde. Não temos
pressa.
O Visconde encheu de ar os pulmões e
continuou:
— Muito bem. Já sabemos ser
indispensável que a capa do petróleo seja impermeável e inteiriça, sem fendas
ou portas por onde o óleo fuja. Temos agora de saber mais uma coisa: os lençóis
de petróleo não são compostos de petróleo solto, líquido; ele está sempre
misturado com areia, formando uma papa. Os geólogos dizem, na sua linguagem
técnica, que "a camada portadora de petróleo tem de ser de rocha
porosa", isto é, composta de grãozinhos com espaços entre si. Nesses
espaços é que o petróleo se acumula.
— Então nas camadas de argilas não
pode haver petróleo — observou Pedrinho.
— Não pode. Os grãozinhos de argilas
cimentam-se de tal modo que não fica entre eles nenhum espaço em que o petróleo
se acomode. Essas camadas de argila servem de capa, isso sim.
— Bem — continuou o Visconde depois
de uma pausa. — Estamos na capa impermeável. Com o enrugamento da terra, a
capa, no alto dos anticlinais, fica muito perto da superfície do solo; e,
portanto, está mais
arriscada a romper-se.
— Por quê?
— Sempre por artes da Senhora
Erosão. Não sua mania de corroer tudo, ele vai rebaixando o solo, afundando-o
até que alcança o alto da capa impermeável e a ataca. O anticlinal é uma
montanha enterrada — e a Erosão tem ódio às montanhas, como já vimos. Não
admite nenhuma. Quer arrasá-las todas para deixar a terra uma planície sem fim.
— Como é democrática! — exclamou Narizinho.
— Sim a Erosão é inimiga das
grandezas. O Himalaia, por exemplo, que é a montanha mais alta do mundo, já foi
muito mais alta. A erosão vai raspando, vai roendo, vai destruindo essa
orgulhosa montanha, até que um dia dê cabo dela.
— Que dia?
— Um dia lá no futuro, daqui a 100
ou 200 milhões de anos. Nesse dia a terra toda estará lisinha, sem nenhuma das
rugas que se formaram quando houve o tal enrugamento.
— Que bom para as geografias dessa
época! — exclamou Emília.
— Por quê?
— Porque com o desaparecimento das
montanhas desaparece das geografias a parte mais pesada, justamente as
montanhas. Que gosto estudar geografia lá para o ano 20000000037!
— Ficarão mas é muito sem graça —
disse Narizinho. — Acho as montanhas a coisa mais linda do mundo. Os Andes! O Himalaia! O Monte Branco, na Suíça! As
neves que há nas montanhas, as águias, os condores, a edelvais — tudo isso
desaparecerá...
— Sim, tudo desaparecerá porque a
Erosão não para nunca. Rói sem cessar, para fazer aterros na água.
— Boba! — exclamou a Emitia. — Desde
que não pode destruir a água, o mais que consegue é que a água se mude dum
ponto para outro. Quem aterra um mar não destrói a água desse mar — obriga-a a
mudar-se, só.
— Isso mesmo — concordou o Visconde.
— E essas mudanças são contínuas. Tudo está mudando, sem que a gente o perceba.
Os mares estão virando continentes; e os continentes, virando mares. E a
incansável operária dessa eterna mudança é sempre a Senhora Erosão. No caso do
petróleo, a Erosão vai roendo a crosta por cima dos anticlinais, roendo,
roendo, roendo, baixando cada vez mais o nível da superfície até que toca na
capa do petróleo. Começa a afinar essa capa, e por fim a rompe no ponto mais
alto. O petróleo então escapa — ou aflora, como dizem os geólogos.
— Que é aflorar?
— É aparecer à flor da terra.
— Terra tem flor? — disse Emília,
arregalando os olhos.
O Visconde coçou a cabeça.
— Flor, Emília, não é só esse mimo
colorido e perfumado que as plantas produzem. A palavra flor também significa
superfície. Quando a gente diz: À flor da pele, está dizendo: na
superfície da pele. Aparecer à flor da
terra quer dizer aparecer na superfície da
terra. Logo, quando uma coisa aparece à flor da terra, aflora. Aflorar é
isso; é aparecer na superfície. Entendeu?
Emília
fez um focinhinho de lebre, sinal de que tinha entendido. O Visconde continuou:
— O petróleo aflora, escapa,
escorre, põe-se em contato com o oxigênio do ar — e o oxigênio o oxida,
transformando-o em asfalto. Há pelo mundo numerosos depósitos desses restos do
petróleo vasado pelos anticlinais roídos pela erosão. Nesses casos, procurar
petróleo ali é tolice. Se ele se derramou, como há de estar lá dentro?
— Mas pode estar perto, em outro
anticlinal que ainda não fosse alcançado pela Erosão — observou Pedrinho.
— Perfeitamente. Perto ou embaixo do
anticlinal esvaziado. As camadas, ou os horizontes, ou os lençóis de petróleo
aparecem muitas vezes em série, superpostos, uns em cima de outros. Se o
primeiro lençol está a 800 metros; outro
estará a 1.000; outro estará a 1.500 — e assim por diante. É por isso que os
petroleiros de hoje cuidam muito de perfurações profundas; e em pontos onde já
tiraram petróleo a 800 metros, estão agora a tirá-lo a 1.000, 1.500 e até 3.000
metros.
— Muito bem, Visconde — disse
Pedrinho. — Pelo que o senhor diz, a Erosão tirou petróleo muito antes de o
homem se ocupar disso. Logo, a grande petroleira é a Erosão.
— Perfeitamente. Quem começou a
lidar com o petróleo no mundo foi a Erosão; e observando o trabalho dela é que
o homem resolveu fazer o mesmo. Em vez de esperar milhões de anos para que a
Erosão rompa a capa impermeável dos anticlinais, o homem vai e fura nesses
anticlinais — e passa a perna na Erosão. O homem antecipa-se à Erosão, mas para
alcançar e soltar o petróleo faz o mesmo que ela: vai erodindo a terra.
Uma perfuração para petróleo é uma erosão vertical, feita num espaço pequeno,
num círculo de dois ou três palmos de diâmetros, em linha reta que desce da
superfície até o lençol de petróleo. A Erosão natural não faz buraquinhos retos
assim: rói por igual e horizontalmente toda a superfície do campo petrolífero;
por esse motivo é que leva tanto tempo. Gasta milhares de anos para alcançar um
anticlinal que o homem, com as suas máquinas de furar, alcança em poucas
semanas de trabalho — e até em dias. Em certas zonas os petroleiros abrem um
poço numa semana.
— Numa semana? — exclamou Pedrinho.
— Sim, numa semana. Tudo depende das
rochas
formadoras da terra naquele ponto.
Se são rochas moles, como as argilas e os xistos, tudo corre a galope. Mas se
os perfuradores encontram uma peste chamada diábase, rocha de extraordinária
dureza, babau! Aí só à força de paciência de santo. No Poço do Araquá, furado
aqui em São Paulo no Município de São Pedro, os perfuradores deram numa camada
de diábase duríssima. Tão dura que a perfuração, que estava caminhando com a
marcha de 7 metros por dia, passou a caminhar centímetros por dia — cinco
centímetros, dez, quinze, para cada 24 horas de trabalho ininterrupto. Um
horror!
— E quem foi que teve a ideia de
lograr a Erosão e chegar aos depósitos de petróleo antes dela?
— Foi o Coronel Drake, nos Estados
Unidos. No ano de 1859 esse coronel entendeu de abrir um poço em Titusville, no
Estado da Pensilvânia — e tanto lidou que o abriu, apesar das ferramentas de
que dispunha serem das mais rudimentares. Esse poço virou o pai de todos os
poços abertos naquele país.
— Quantos filhos teve? — perguntou
Narizinho.
— Mais de 900 mil. Já há mais de 900
mil poços de petróleo abertos nos Estados Unidos. Os americanos são umas feras.
E como fazem tudo em ponto grande, tornaram-se o povo mais adiantado e rico do
mundo.
— E nós, no Brasil, quantos poços
abrimos?
— Que desse petróleo, nenhum. Até
hoje foram abertos no território brasileiro apenas sessenta e poucos poços, na
maioria rasos demais para atingirem alguma camada petrolífera.
— Que vergonha! E a Argentina?
— A Argentina já abriu mais de
4.000, quase todos produtivos. Por essa razão está hoje extraindo 16 milhões de
barris de petróleo por ano.
— E os outros países da América?
— Todos estão cheios de poços de
petróleo, donde tiram milhões e milhões de barris. A Venezuela conseguiu
tornar-se o terceiro produtor do mundo, com mais de 140 milhões de barris por
ano. O Peru extrai milhões de barris. A Colômbia extrai outros milhões. O
Equador extrai outros milhões. A Bolívia, idem. Todos os vizinhos do Brasil são
grandes produtores de petróleo, exceto o Uruguai e o Paraguai.
— E por que o Brasil também não
produz milhões e milhões de barris? Será que não existe petróleo aqui?
— Não existem perfurações, isso sim.
Petróleo o Brasil tem para abastecer o mundo inteiro durante séculos. Há sinais
de petróleo por toda parte — em Alagoas, no Maranhão, em toda a costa
nordestina, no Amazonas, no Pará, em São Paulo, no Paraná, em Santa Catarina,
no Rio Grande, em Mato Grosso, em Goiás. A superfície de todos esses Estados
está cheia dos mesmos indícios de petróleo que levaram as repúblicas vizinhas a
perfurar e a tirá-lo aos milhões de barris. Os mesmíssimos sinais...
— Então por que não se perfura no
Brasil?
— Porque as companhias estrangeiras
que nos vendem petróleo não têm interesse nisso. E como não têm interesse nisso
foram convencendo o brasileiro de que aqui, neste enorme território, não havia
petróleo. E os
brasileiros bobamente se deixaram
convencer...
— Que araras! — exclamou Emília. —
Mas não estão vendo petróleo sair em todos os países vizinhos do nosso?
— Estão, sim, mas que quer você?
Quando um povo embirra em não arregalar os olhos não há quem o faça ver. As
tais companhias pregaram as pálpebras dos brasileiros com alfinetes. Ninguém vê
nada, nada, nada...
E cada ano o Brasil gasta mais de
meio milhão de contos na compra do petróleo que as companhias espertalhonas nos
vendem.
— Meio milhão de contos! — exclamou
Pedrinho.
— Mil trezentos e tantos contos por
dia! Quarenta e três contos por hora! Que doença cara é a cegueira...
— E a profundidade, Visconde! —
perguntou Narizinho. — A que profundidade vão os poços abertos pelos homens?
— Varia. Há poços de 200 metros;
outros de 500; outros de 800, outros de 1.000, de 1.500, de 2.000 etc. O mais
profundo parece-me que é um de 3.468 metros, no Estado da Califórnia. Na
Argentina há um com 2.500 metros, na Província de Mendonza. Mas ficam muito
caros esses poços profundos. Os de preço comercial nunca vão a mais de 2.000
metros.
— E depois que o furo alcança o
depósito de petróleo, que acontece?
— Quando o poço alcança um
anticlinal intato, isto é com a capa impermeável perfeitamente fechadinha,
encontra lá, petróleo preso, submetido a pressões muito fortes, de 150, 200 ou mais atmosferas. Assim que o furo
rompe a capa impermeável, essa pressão faz que o petróleo suba por ele acima e
jorre. Às vezes, quando a pressão é muito forte, o petróleo esguicha com
tamanha fúria que escangalha com a torre de sondagem, arremessando as
ferramentas a grande distância. No México foi aberto o célebre poço de Cerro
Azul, que jorrou com uma vazão de 300 mil barris por dia. O esguicho do
petróleo subiu a 180 metros de altura!...
— Que maravilha! — exclamou
Pedrinho. — E a torre de sondagem, com certeza, foi para o inferno...
— Sim, foi tudo arremessado a
dezenas de metros de distância.
— E como fizeram para domar o
monstro?
— Uma trabalheira horrível. Mas quem
pode com o bicho-homem? No fim de alguns dias o Cerro Azul estava domado —
estava de freio na boca, isto é, com um registro, que é uma imensa torneira
adaptada à boca do cano. Esse poço produziu milhões e mais milhões de barris de
petróleo, permanecendo até hoje o campeão mundial.
— Ah, se nós descobríssemos um Cerro
Azul aqui no sítio de vovó! — suspirou Narizinho. — Eu só queria ver a cara de
assombro de tia Nastácia...
— Quem sabe?! Tudo é possível neste
mundo — disse o Visconde. — Mas temos de perfurar. Sem perfurar não aparecem
Cerros Azuis, nem Verdes, nem Amarelos. Quem quer ter petróleo, perfura.
Esperar que ele apareça por si, é bobagem.
— E que se faz para prevenir que o
jorro de petróleo escangalhe com tudo?
— Os petroleiros tomam todas as
precauções para evitar isso, em virtude dos muitos desastres do começo. Colocam
na boca do poço as tais torneiras fortíssimas, que são fechadas assim que o
petróleo começa a subir. Por falta dessa precaução, certa companhia americana
levou a breca.
— Como?
— Estava a abrir um poço e
descuidou-se de colocar o torneirão. Subitamente o petróleo jorrou com enorme
violência, varrendo com a sonda e arrancando os tubos de aço do encanamento.
Não houve jeito de estancar o repuxo. O petróleo inundou tudo, formou uma lagoa
em redor, invadiu os riachos próximos — uma verdadeira calamidade! As
indenizações que os vizinhos exigiram da pobre companhia arrastaram-na à
falência.
— Que engraçado! Uma companhia que
quebra por ter tirado petróleo demais!...
— De fato foi assim. Pagou bem caro
o descuido, e para evitar desastres dessa ordem os petroleiros tomam o máximo
cuidado para "sossegar o leão" do petróleo quando ele começa a
jorrar.
— E essa tal pressão que há lá no
fundo dos depósitos de petróleo, donde vem?
— São pressões dos gases do próprio
petróleo. O petróleo está ao mesmo tempo em estado líquido e em estado gasoso.
Como os gases ficam muito comprimidos pela capa impermeável, eles exercem
grande pressão; e assim que o furo rompe a capa, essa pressão força o petróleo
a sair. Os gases são da maior importância para os petroleiros; por isso evitam
que eles se escapem pelo furo; se o gás se escapa, lá se vai a pressão e o
petróleo não subirá por si mesmo; terá de ser puxado por meio de bombas
aspirantes. Depois de rasgado o primeiro furo na capa impermeável da jazida de
petróleo, abrem-se outros perto; a capa vai ficando toda furadinha e por todos
os furos sai o petróleo. Desse modo os petroleiros aumentam a produção do
campo. Se um poço dá 1.000 barris por dia, abrindo outro eles obtêm 2.000; e
assim por diante, até que a pressão dos gases diminua e a saída do petróleo
esmoreça. O poço mais violento é sempre o primeiro; os abertos nas proximidades
já encontram o leão sossegado, porque a pressão do gás diminuiu com a abertura
do primeiro.
— E como os poços acabam? — quis
saber Pedrinho.
— Acabam como tudo na vida — e até
como as aulas — respondeu o Visconde com os olhos no relógio. Eram quase 9
horas.
Todos se levantaram. Tia Nastácia,
que dormira o tempo inteiro, ainda estava nos peixes; e certa de que o Visconde
só falara de peixes fósseis, retirou-se resmungando:
— Peixe, peixe seco, peixe podre.
Para que serve isso? Peixe há de ser pescado ali na horinha. Bobagem...
CAPÍTULO
5: MAIS PETRÓLEO
— Onde ficamos ontem? — perguntou no
serão seguinte o grande geólogo.
— Estávamos no esgotamento dos poços
— lembrou Pedrinho.
— Sim. Tudo se acaba neste mundo. Os
poços de petróleo, por muito que produzam, em dado momento começam a morrer.
Vão dando menos, menos, e por fim têm que ser abandonados; o óleo que sai já
não compensa o trabalho de bombear. Mas o fato de os poços secarem não quer
dizer que o campo petrolífero esteja extinto. Quer dizer apenas que saiu todo o
petróleo que podia sair na vertical. A experiência demonstra que o petróleo
vazado pelos poços corresponde de 15 a 35 por cento do que existe armazenado na
jazida.
— Só? — exclamou Pedrinho. — Então a
maior parte fica no fundo?
— Fica. No fundo ficam de 65 a 85
por cento do petróleo existente.
— E o homem nada faz para conseguir
esse petróleo?
— No começo ninguém cuidava disso. Abriam novos campos petrolíferos, depois de abandonar os velhos.
Mas a Alemanha teve ideia de furar galerias como as usadas nas minas de
carvão-de-pedra, para arrancar o petróleo que se recusa a sair pelos poços.
Durante a Guerra Mundial a escassez do petróleo fez que os alemães recorressem
a esse processo na Alsácia — e o caso foi que conseguiram extrair bastante
petróleo. Também os argentinos andam querendo empregar o processo de galerias
em Comodoro Rivadávia, onde os poços produzem cada vez menos. Só depois de usadas
as galerias que se pode dizer que um campo de petróleo está esgotado.
— E quanto tempo dura um poço?
— Varia muito. Cada poço tem a sua
duração determinada pela quantidade de petróleo que há embaixo, pela pressão
dos gases e pela quantidade extraída. Há poços que produzem durante dias
apenas. Outros, durante semanas. Outros, durante meses. Outros, durante anos.
Um poço que dura dez anos já é de primeira ordem, embora haja poços até de
quarenta anos.
— E quanto produz um poço, em média?
— quis saber Pedrinho.
— Também varia muito. Uns começam
produzindo apenas litros por dia; outros jorram milhares de toneladas por dia.
Em 1934 os russos abriram em Lok Batan, perto de Bacu, um que rompeu com mais
de 20 mil toneladas por dia! Mas esses poços muito ricos são exceções. Poços
que começam com 15 barris diários já recebem grau 10, e poços de 100 barris são
excelentes. É só pegar num papel e fazer a conta de quanto rende um simples
poço de 100 barris por dia.
— Rende 3 mil por mês ou 36 mil
barris por ano — gritou Narizinho, a campeã do cálculo mental. — E qual o preço
do petróleo bruto, como sai do poço?
— Pode botar aí uns 30 cruzeiros —
respondeu o Visconde — e Narizinho imediatamente "cantou":
— Um milhão e oitenta mil cruzeiros
por ano. Ótimo. Eu com um pocinho assim já virava baronesa do petróleo.
— Pois se me aparecesse um poço só
de 100 barris por dia eu nem ligava — gritou Emília. — Só quero saber de poços
de 10 mil para cima. Não me sujo com petrolinhos vagabundos...
Todos riram-se duma coitada que nunca
soube nem como gastar o tostão novo que tinha nos seus guardados.
— E quanto petróleo se produz hoje
no mundo, Visconde? — indagou Pedrinho.
— Muito. Um colosso. Só os Estados
Unidos produzem um bilhão de barris por ano.
— Um bilhão? Puxa! Mil milhões! Mil
pilhas de um milhão de barris cada uma! E tudo isso em consequência do tal
pocinho do Coronel Drake...
— Sim. Foi desse pocinho que
brotaram todas essas pilhas de milhões; como será do primeiro pocinho aberto no
Brasil que vai brotar o milhão de poços que teremos um dia. Por que não? O
Brasil tem o mesmo tamanho dos Estados Unidos. Se ainda está dormindo, um dia
há de acordar — e então...
Emília bateu palmas.
— Viva! Viva! Vamos acordar o
Brasil! Rompemos aqui o primeiro poço e pronto — está acordado o Brasil. Viva!
Viva!...
— O Brasil poderá suceder aos
Estados Unidos na produção do petróleo — disse o Visconde, que apesar de
simples sabugo, raciocinava melhor que os milhões de rabanetes bípedes que
andam por aí negando o petróleo. — Teremos o poço nº 1 aqui no sítio e o nº 2
no Riacho Doce, em Alagoas, onde os trabalhos estão muito adiantados. E a
seguir teremos lá mesmo mais outros, mais dez, mais cem — quinhentos poços! E a
febre do petróleo pegará no Brasil inteiro, que nem gripe, e começarão a aparecer
poços por toda parte. Surgirão os de Mato Grosso, tremendos, de dezenas de
milhares de barris por dia, como no México. E surgirão os poços de Goiás. E os
de São Paulo. E os do Paraná. E os da Bahia. E os do Espírito Santo. E os do
Rio Grande do Sul. E os de Minas... Tudo depende da abertura do primeiro.
— Coçar e tirar petróleo vai só do
começar — sentenciou Emília.
— Sim. Nos Estados Unidos o Coronel
Drake abriu o primeiro poço na Pensilvânia — e os rabanetes de lá disseram que
só na Pensilvânia havia petróleo. Mas como novos Drakes furaram em outros
pontos, aqueles país está hoje a tirar petróleo nos Estados do Texas, da
Califórnia, do Arkansas, do Colorado, de Illinois, de Indiana, de Kansas, do
Kentucky, de Montana, de Michigan, de Nova Iorque, do Ohio, de Oklahoma, da
Virgínia e do
Wyoming. E com a continuação dos
trabalhos, ainda acabam descobrindo petróleo em muitos outros Estados. Tudo,
por quê? Porque o Coronel Drake teve a coragem de começar.
— Eu por mim começava a nossa
perfuração amanhã mesmo — disse Pedrinho, já aflito por ver o petróleo jorrar.
— Inda é cedo — respondeu o
Visconde. — Por enquanto vocês só sabem um pedacinho do petróleo — têm que
aprender muito mais.
— Que mais?
— Oh, tanta coisa... Têm de aprender
que as reservas do petróleo dos Estados Unidos começam a aproximar-se do fim. O
consumo é tremendo. Isso de extrair da terra um bilhão de barris por ano tem
limite. Por maiores que as reservas sejam, um dia se acabam — e as reservas
americanas estão se acabando. Há lá um Instituto do Petróleo que só trata de
estudos petrolíferos. Esse instituto publicou há pouco tempo um cálculo,
provando que as reservas americanas conhecidas não passam de 12 bilhões e 177
milhões de barris. Ora, para um país que extrai um bilhão por ano isso quer dizer
petróleo para doze anos.
— Reservas "conhecidas"...
— observou Pedrinho.
— Sim, haverá as desconhecidas, as
que ainda serão descobertas — mas serão descobertas? Haverá ainda por lá
grandes reservas ignoradas? Ninguém pode responder. O que se sabe é que as
"reservas conhecidas" estão no fim — e quando se acabarem, os Estados
Unidos terão de comprar petróleo fora, como hoje compram café e borracha. O
Brasil, pois, deve ir se preparando para fornecer petróleo para os Estados
Unidos, depois de abastecer-se a si próprio.
— Que colosso!
— Realmente. No dia em que tal
acontecer e o Brasil passar de comprador a vendedor de petróleo, então
deixaremos de ver essa coisa tristíssima de hoje — milhões de brasileiros
descalços, analfabetos, andrajosos
— na miséria. O Brasil tem todos os
elementos para tornar-se um país riquíssimo — mas riquíssimo de verdade, e não,
como hoje, apenas rico de "possibilidades" — ou de
"garganta."
— Bravos, Visconde! — exclamou Dona
Benta. — Nem parece que é um sabuguinho que está falando.
— Pudera! — gritou Emília. — Num
país onde até os ministros não pensam em petróleo, ou quando falam nele é para
negar, só mesmo dando a palavra a um sabugo. Viva o Senhor Visconde do Poço
Fundo!
O sabugo geológico agradeceu as
homenagens e continuou. Apesar de brotado de um pé de milho, ele amava a terra
que produziu esse pé de milho.
— Sim, havemos de crescer e
aparecer. Havemos de tirar petróleo aos milhões de barris. Havemos de exportar
petróleo para todos os países, e de queimá-lo aqui em quantidades tremendas,
para matar a nossa maior inimiga, que é a Distância. Abaixo a Distância! Viva o
matador da Distância!
— Viva! Viva! — berraram todos.
— Visconde — advertiu Narizinho —
petróleo é combustível e Vossa Excelência está pegando fogo. Sossegue um pouco e
continue com a lição. Diga-me quantos litros de petróleo tem um barril. O
Visconde tomou fôlego, serenou o ânimo e respondeu calmamente:
— Barril é a medida de petróleo que
os americanos adotaram desde o começo. Equivale a 42 galões.
— E quantos litros têm esses galos
grandes? — perguntou Emília.
— Um galão tem 3 litros e 785
centímetros cúbicos. Logo, um barril tem isso multiplicado por 42 — ou sejam
159 litros. Aqui no Brasil precisamos nos acostumar desde já a medir o petróleo
decimalmente — aos litros, aos metros cúbicos, como fazem os argentinos. Isso
de barril e galão e tantas outras medidas populares dos países que não seguem o
sistema métrico decimal, que é, Emília?
— É besteira! — gritou a boneca.
— Emília, as professoras e os
pedagogos vivem condenando esse seu modo de falar, que tanto estraga os livros
do Lobato. Já por vezes tenho pedido a você que seja mais educada na linguagem.
— Dona Benta, a senhora me perdoe,
mas quem torto nasce, tarde ou nunca se endireita. Nasci torta. Sou uma
besteirinha da natureza — ou dessa negra beiçuda que me fez. E, portanto, ou
falo como quero ou calo-me. Isso de falar como as professoras mandam, que fique
para Narizinho. Pão para mim é pão; besteira é besteira — nem que venha da
Inglaterra ou dos Estados Unidos. Cá comigo
é ali na batata.
Dona Benta suspirou. Impossível
domar aquela pequena selvagem...
— Continue, Visconde — disse ela em
tom resignado.
— O petróleo é muito novo —
prosseguiu o geólogo. — Não tem um século de vida, pois praticamente começou em
1859 com o poço do Coronel Drake. Quando o petróleo apareceu em cena, o grande
combustível era o carvão-de-pedra. E talvez que quando o petróleo acabe
tenhamos de voltar ao carvão-de-pedra, muito mais abundante na natureza. Mas a
culpa do petróleo acabar depressa vai caber aos americanos. Tiram petróleo
demais; gastam-no demais. Quantos milhões de anos não levou a natureza para
fabricar cada bilhão de barris que eles extraem anualmente? Nem tem conta. O
petróleo é filho do sol, como também o carvão-de-pedra. O sol é a fonte da vida
e, portanto, a fonte da matéria orgânica que gera o petróleo. Logo, o petróleo
é sol — são os raios dum sol de milhões de anos atrás que ficaram entesourados
no seio da terra. Os homens, esses engenhosos bichinhos, furam o chão e desenterram
os raios de sol líquido. E os reduzem a gasolina, a querosene, a óleo
combustível, a óleo lubrificante, a parafina, a supergás, a quase 300 produtos
diferentes. Até perfumes eles tiram do petróleo bruto. E com esses ingredientes
operam-se prodígios — sobretudo em matéria de transportes. Continuamente, pelo
mundo inteiro, milhões de baratinhas metálicas, chamadas automóveis, percorrem
os caminhos e as ruas em todas as direções.
Cada vez mais o céu se enche das gigantescas aves mecânicas, chamadas aviões.
Por cima dos mares correm aos milheiros os navios tocados a petróleo. Pelo seio
das águas sulcam os submarinos movidos a petróleo. Por toda parte fábricas e
mais fábricas rodam sem parar, graças à força do petróleo. O petróleo
transformou-se no motor do mundo.
— Por quê?
— Porque não passa de energia
mecânica sob forma líquida, facilmente transportável para todos os pontos da
terra. Que é uma caixa de gasolina? São milhares de calorias enlatadas. Cada
litro de petróleo, quando queimado, produz 12 mil calorias — muito mais que o
carvão-de-pedra, a lenha e todas as coisas de queimar. Colocado num motor, esse
petróleo se transforma em energia mecânica, a serviço de todos os trabalhos do
homem — para puxar carros, para mover navios ou aviões, para levantar pesos nos
guindastes, para movimentar as mil máquinas das fábricas, para tudo quanto o
homem faz com o fogo ou com as pequeninas explosões dos gases. Vale, portanto,
muito mais que a força elétrica.
— Por quê?
— Por que a força elétrica só é
utilizável nas redondezas da usina que a produz; e a força mecânica do petróleo
fica presa dentro das latas e pode ser transportada para qualquer ponto do
mundo — até aos polos. E lá é só abrir a lata e pronto — está ali uma forte
quantidade de
energia a serviço do homem. Como
fazer isso com a eletricidade? De nada nos vale aqui no sítio a força elétrica
do Niágara, mas no entanto até petróleo de Bacu Dona Benta já tem consumido
neste lampião da sala.
O raio de ação da eletricidade é de
poucos quilômetros; o raio de ação do petróleo não tem limites.
— Viva o petróleo! — berrou a
Emília. O Visconde continuou.
— O grande valor do petróleo é
aliar-se ao ferro para aumento da eficiência do homem.
— Que história de eficiência é essa?
— quis saber Narizinho.
— Muito simples. O homem começou sua
vida na terra dispondo só duma força — a força dos seus músculos — como ainda
acontece com todos os outros animais. À medida, porém, que foi aprendendo a
utilizar-se de outras energias da natureza (como os músculos do cavalo e do
boi, as quedas de água, a força do vento, a força do vapor, a força da
eletricidade, a força do petróleo), o homem foi aumentando a sua eficiência,
isto é, a sua capacidade de fazer coisas. Ajudado apenas dos seus músculos, um
homem pode pouco. Para ir daqui até à venda do Elias Turco tem de dar seis mil
passos, gastando nisso uma hora — se houver caminho bom. Aumentado com as
quatro pernas dum cavalo, já esse mesmo homem faz o percurso em vinte minutos.
— Isso, na andadura — disse
Pedrinho. — No galope eu vou até lá em muito menos. São só três quilômetros.
— E se em vez de ter a sua
eficiência aumentada pelas quatro pernas do cavalo, você a tiver aumentada
pelas quatro rodas dum automóvel? — perguntou o Visconde.
— Nesse caso vou até lá em três
minutos sem chispar muito.
— E se a sua eficiência for
aumentada pelas asas dum avião?
— Ah, num avião eu chego até o Elias
em segundos.
— Pois aí está o que é eficiência.
Graças ao concurso do cavalo, do automóvel ou do avião, o homem, que a pé vai
daqui até lá numa hora, passa a ir em vinte minutos, em três minutos ou em
segundos. Mas note que é o petróleo o que mais aumenta a eficiência do homem,
em matéria de velocidade — o petróleo conjugado ao ferro. O mundo ficou pequeno
depois que o petróleo veio mover as máquinas que o homem constrói com o ferro.
Por isso vivo dizendo que sem produzir ferro e tirar e queimar petróleo em
grandes quantidades, como os Estados Unidos, o Brasil não ganhará impulso — não
sairá do buraco da opilação econômica em que se atolou. O brasileiro está com a
sua eficiência muito reduzida porque quase que só dispõe da força dos seus
músculos, dos do boi e do cavalo. Por toda essa vastidão de território o meio
de transporte mais comum é ainda o carro de boi e as tropas de burros. Ora,
tudo na vida é transporte, logo, enquanto não aumentarmos a nossa eficiência
por meio de máquinas, não resolveremos o nosso problema do transporte rápido e barato; e, pois, permaneceremos um país
encarangado.
— Lá isso é verdade — disse
Pedrinho. — Para mandar à cidade o seu café o Coronel Teodorico usa o carro de
boi; cada carrada só leva 40 arrobas e gasta um dia inteiro para chegar lá e
outro para voltar. Com um caminhão-automóvel ele levaria 200 arrobas em duas
horas de viagem...
— Isso mesmo! Eu, se pudesse, pegava
num martelo e embutia na cabeça de todos os brasileiros estas palavras: O
ferro é a matéria-prima da máquina, e o petróleo é a matéria-prima da
melhor energia que move a máquina. E como só a máquina aumenta a eficiência do
homem, o problema do Brasil é um só: produzir ferro e petróleo para com eles
ter a máquina que aumentará a eficiência do brasileiro. Tudo mais é
bobagem.
— Mas muitos acham que com uma nova
revolução as coisas endireitam — disse Narizinho. — Com uma nova forma de
governo...
— Bobagem. Uma nova forma de
governo, seja qual for, não passa duma nova distribuição das coisas existentes.
Mas as coisas existentes são escassas demais. Nada adianta tirar o prato de
feijão de A para dá-lo a B; pois B, que estava morrendo de fome, enche a
barriga, mas A, que estava com a barriga cheia, começa a passar fome. Para o
país é indiferente que A ou B seja o condenado a passar fome. O que o país
precisa é que nem A nem B passem fome — e o meio, portanto, não é mudar de
forma de governo: é aumentar a comida da gamela, de modo que A e B possam encher a barriga. É aumentar a riqueza
— coisa que só conseguiremos aumentando a eficiência do homem por meio de
ferro, matéria-prima da máquina, e do petróleo, matéria-prima da melhor energia
que move a máquina.
— Pois vamos tirar o petróleo,
Visconde! — gritou Pedrinho entusiasmadíssimo. — Pegue numa picareta e me
acompanhe.
O Visconde riu-se.
— Bobinho! Como quer tirar petróleo,
se, ainda nem sabe como se escolhe o ponto onde abrir um poço?
— Então conte logo isso, que estou ardendo
por abrir lá perto da porteira um poço de mil barris por dia.
— Mil barris!... — exclamou Emília
com focinho de pouco caso — e deu uma cuspidinha de desprezo.
— Vou contar, sim — continuou o
Visconde — e esta parte é muito importante. Saber onde se deve abrir um poço é
meio caminho andado para tirar petróleo. Se o poço for aberto em lugar mal
escolhido, não dá coisa nenhuma — e os petroleiros ficam de cara à banda, a
olharem-se uns para os outros, muito desapontados. Um poço, meu caro Pedrinho,
custa grande trabalho e bom dinheiro. Saiba disso.
Pedrinho, que nunca havia pensado na
parte financeira do negócio, abarroceu-se. Maçada! A pior coisa da vida é o tal
negócio do dinheiro. Tudo custa dinheiro, tudo exige dinheiro — e onde o
dinheiro? Dona Benta vivia a cabo curto, sem dinheiro para nada — e as demais
pessoas do sítio ainda tinham menos que ela. Pedrinho só possuía dez cruzeiros no cofre. Narizinho, uma nota de
cinco. Emília, apenas aquele célebre tostão novo. E o Visconde, apesar de
visconde, era o fidalgo mais pobre do mundo. Nunca chegou nem a ver a cara dum
vintém furado.
— Como vai ser? — perguntou Pedrinho
voltando-se para Narizinho. — Como iremos abrir o nosso poço, se estamos
completamente limpos de capitais?
— Isso é lá com você que é homem —
respondeu a menina. — Dinheiro é assunto masculino — arrume-se.
Pedrinho começou a pensar — e
estaria até agora pensando, se Emília não resolvesse o problema com a maior
facilidade.
— Ora a grande coisa! — disse ela. —
Nada mais simples. Aplica-se o "faz-de-conta" e logo aparece tudo
quanto precisarmos — sondas, verrumas de perfurar, tubos de encanamentos, tatus
perfuradores — e até petróleo! Você bem sabe que não há o que resista ao
faz-de-conta...
Pedrinho suspirou murmurando:
— É. Só assim...
— Pois vamos lá, senhor geólogo.
Continue.
— Amanhã — respondeu o sábio. — Lá
vem vindo tia Nastácia com as pipocas — essas inimigas das aulas...
Era verdade. Tia Nastácia vinha
entrando com uma peneira de pipocas.
— Vivam as pipocas geológicas de tia
Nastácia! — berrou Emília.
— Deixe de brincadeiras com os
velhos e trate de
encher o papo, sua sapeca! — ralhou
a negra.
Estavam da pontinha as pipocas de
tia Nastácia, de modo que todos se atiraram à peneira, concordando lá por
dentro que se o Visconde era um sábio interessante, tia Nastácia era
interessantíssima quando o arrolhava com pipocas.
CAPÍTULO
6:
TRABALHOS DE CAMPO
No dia seguinte a impaciência de
Pedrinho chegou ao auge. Aquilo de ficar uma parte da noite sentado, a ouvir as
preleções do Visconde, não era com ele. Queria pôr mãos à obra, abrir logo o
poço salvador da pátria.
— O coitado do Brasil cansado de
esperar petróleo e este cacetíssimo Visconde a nos injetar noites e noites de
ciência! Não quero mais. Chegou o momento de começarmos o poço.
— Mas, como, Pedrinho, se ainda
quase nada sabemos de geologia? — objetou a menina.
— Muito bem. Vamos começar o
trabalho e o Visconde nos vai ensinando. Lições ao ar livre — fazendo.
É fazendo que o homem aprende, não é
lendo, nem ouvindo discursos. Eu quero ciência aplicada...
— Ali na batata! — gritou Emília que
vinha entrando. — Também penso como Pedrinho. Quero começar o poço já.
O Visconde apareceu com a geologia
debaixo do braço.
— Escute, senhor geólogo — disse
Pedrinho. — Basta de aulas. Fizemos greve. Queremos começar o poço já, já, está
ouvindo?
O sabuguinho científico arregalou os
olhos.
— Homessa! Como podem pensar em
perfuração antes de terem adquirido uma boa base geológica?
— Do modo mais simples. Damos começo
ao trabalho e Vossa Excelência nos vai ensinando pelo caminho, proporção que os
problemas aparecerem.
— Isso mesmo — berrou Emília. — Paz
de conta que já sabemos a geologia inteira.
O Visconde cocou a cabeça; mas como
era greve, teve de concordar.
— Pois seja — disse ele. — Serão
aulas ao ar livre. Começaremos com o estudo geológico dos terrenos do pasto.
— Ótimo! — exclamou Pedrinho — e
correu a preparar-se. Voltou de perneiras e chapéu de cortiça — vestuário de
engenheiro-geólogo.
— Pronto! Podemos partir.
Foram todos. Depois de passada a
porteira e de correr os olhos pelo pasto da vaca Mocha, Pedrinho ficou
atrapalhado. Só via capins e capões de mato. Que fazer? Quem não sabe é o mesmo
que ser cego. Pedrinho geólogo, sentiu-se totalmente cego.
— E agora, Visconde? Por onde
começamos? O sabuguinho geológico tossiu e respondeu:
— Antes de cuidarmos da abertura de
um poço, temos de escolher o lugar mais propício. Essa escolha é tudo. Se
erramos, babau! Lá se vai tudo quanto Marta fiou. Mas se acertamos, podemos
contar com um belo jorro de petróleo.
E para escolher o ponto adequado havemos de recorrer à ciência deste livrinho —
concluiu ele batendo uma palmada na geologia. — Aqui está tudo.
— Como se faz praticamente? —
inquiriu Pedrinho.
— Assim. Pede-se a um geólogo que
examine o terreno, estude as rochas aflorantes, isto é, as rochas que aparecem
em certos pontos da superfície e as relacione com as que aflorem em
outras pontos. Isso para ver se estamos em cima dum anticlinal.
Pedrinho olhou desanimado para a
pastaria verde.
— Mas como estudar rochas com este
raio do capim-gordura a esconder a terra inteira?
— Temos de procurar barrancos,
margens de rios, morros com perambeiras ou boçorocas — pontos onde a terra
esteja esfuracada e despida de vegetação. Só aí encontraremos rochas a
descoberto.
— Pois vamos a isso, então.
A um quilômetro dali havia um morro
com grande desbarrancado — a "barreira", como se dizia no sítio. O
Visconde levou-os para lá. Diante da barreira, parou e sorriu.
Os meninos entreolharam-se. Não
compreendiam que o Visconde encontrasse matéria para sorriso num barranco feio
como todos os mais.
— Que gosto é esse, Visconde? —
perguntou Emília.
— Ah, o sorriso que tenho nos lábios
é um sorriso
geológico — o sorriso de quem sabe,
olha, vê e compreende. Este barranco é para mim um livro aberto, uma página da
história da terra na qual leio mil coisas interessantíssimas.
— É um dos barrancos mais lindos que
já vi — continuou o sábio. — Observem atentamente estas superposições de
camadas. Temos aqui uma série de camadas paralelas. Estão superpostas, isto é,
uma em cima da outra, e são constituídas de rochas diferentes.
— E que tem isso?
— Tem um colosso de coisas. Tem, em
primeiro lugar, que são camadas de rochas sedimentárias, produzidas por
depósitos formados no fundo d'água.
— Fundo d'água? Pois o sítio de vovó
já foi fundo d'água?
— Claro que sim, Pedrinho. Leio isso
neste barranco. Temos cá uma camada de pedregulho, ou pedras que se foram
fragmentando e rolando no fundo dos rios até ficarem sem arestas; depois se
depositaram em qualquer fundo de água sem correnteza. Mas notem que estes
pedregulhos já não estão soltos, como os de fundo de rio. Estão grudados uns
aos outros, soldados, cimentados entre si.
— Com que cimento? — quis saber
Narizinho.
— Evidentemente um cimento calcário
— respondeu o Visconde. — Os calcários dissolvem-se na água; mas a cal da água
vai se depositando entre as perninhas até que as liga, tal qual o pedreiro liga
os tijolos
com o reboco. E sabem como se chama
uma rocha assim, feita de pedaços de rocha cimentados entre si?
Ninguém sabia.
— Chama-se um conglomerado —
explicou o Visconde. E apontando para a camada que ficava em cima daquela: — E
esta rocha aqui também não deixa de ser um conglomerado, apesar de ter o nome
de arenito. É composta de areia com os grãozinhos igualmente soldados entre si
por um cimento qual quer. Reparem que forma uma rocha um tanto quebradiça.
Pedrinho havia destacado um
fragmento do arenito, que andou de mão em mão.
— É mesmo — disse Narizinho, quando
chegou sua vez de examiná-lo. — Vê-se perfeitamente que é formado de grão de
areia.
— Pois é outra rocha sedimentária —
explicou o Visconde — e está na ordem normal em que os sedimentos se depositam.
Primeiro, os pedregulho; depois, as areias, que são mais leves; e sobre as
areias as argilas, esse pó de rocha mais leve que tudo e que fica boiando na
água mais tempo.
— E esta dura e preta aqui,
Visconde? — perguntou a menina tentando quebrar um pedaço de rocha muito
irregular que se intrometia pelas camadas.
— Oh, isso já não é rocha
sedimentária — é uma rocha vulcânica. Já expliquei que as rochas vulcânicas são
derrames das pedras derretidas pelo calor central, que saem pela boca dos
vulcões ou se intrometem pelas rochas sedimentárias.
— São vômitos então — disse Emília
com cara de nojo, cuspindo.
— Reparem que esta rocha cinzenta e
tão dura não está em forma de camada, como as outras. Não é um produto da
sedimentação. O que fez foi introduzir-se a muque pelas camadas de rocha
sedimentária adentro. Chama-se a isto uma intrusão.
— Sim. Esta intrusão veio debaixo
para cima, numa vertical, rompeu as camadas de sedimento, quebrou-as — o que
prova que é mais moça, ou que chegou por último.
— Por quê?
— Porque só poderia fazer o que fez
se encontrasse aqui as camadas sedimentárias já formadas. Nada mais lógico.
— E a rocha orgânica, Visconde?
Haverá por aqui alguma? — quis saber a menina.
O Visconde correu os olhos pelo
barranco.
— Não há nenhuma. Creio que no sítio
só poderemos encontrar rocha orgânica no fundo daquele brejo dos guembés, que
seca nos meses de seca. Há de haver lá turfa, que é uma rocha orgânica formada
pela transformação de vegetais enterrados.
Depois de bem vistas e revistas as
rochas do barranco, o Visconde levou-os para outro ponto, dizendo:
— Notem que as camadas, que
começavam horizontais, estão agora a subir numa leve inclinação. Ora, como
nasceram horizontalmente (porque toda sedimentação é horizontal), se estão
subindo foi porque uma pressão debaixo para cima, ou uma compressão dos lados,
as fez subir.
— Um parigato — explicou Emília, e
Narizinho quis saber que pressão fora aquela.
— Não sei — disse o Visconde. —
Talvez do tempo em que a crosta da terra começou a resfriar-se e encolher-se. Formou-se aqui uma ruga.
Caminharam um pouco mais.
— Notem — ia dizendo o Visconde —
que as camadas vão subindo sempre, e sempre paralelas. Quer dizer que quando
sofreram a pressão já estavam formadas e arrumadinhas umas sobre as outras.
Caminharam mais uma dezenas de
metros.
— Olhem que lindo! — exclamou o
Visconde, detendo-se. — Há aqui uma belíssima falha.
— Que é?
— Prestem atenção. As camadas
sofreram neste ponto um desastre sério. Partiram-se e o lado de lá afundou,
escorregou para baixo.
— É mesmo! — gritou Pedrinho. —
Ficaram desencontradas. A camada de argila desceu ao nível da camada de pedregulho...
Que engraçado...
— Pois é isto que os geólogos chamam
uma falha, fenômeno que tem muita importância, quando se fazem estudos para
petróleo.
Nisto Narizinho, que se adiantara,
gritou:
— Corra, Visconde! Venha ver uma
curiosidade. As camadas sofreram aqui uma tal reviravolta que até ficaram de pé.
Emília foi a primeira que chegou lá.
— Chi! Que catástrofe horrível.
Estão depezinhas como paus de lenha no lenheiro de tia Nastácia.
O Visconde explicou:
— Este fenômeno é muito frequente.
Nas convulsões que a crosta da terra sofreu, as camadas que vêm vindo na
horizontal, ou levemente inclinadas, sofrem muitas vezes destas reviravoltas.
Mais adiante é possível que de novo apareçam na mesma inclinação com que vinham
vindo.
E assim foi. Cem metros adiante as
camadas voltavam a ter a mesma inclinação do começo.
Terminado o estudo do barranco, o
Visconde disse:
— Muito bem. Temos agora de examinar
aquele corte da estrada que vai para a fazenda do Coronel Teodorico.
— Para quê?
— Para ver se as camadas de lá têm
correspondência com estas. Se tiverem, poderemos tirar algumas deduções
interessantes.
O tal corte da estrada ficava bem
longe dali — a uns três quilômetros. O Visconde foi explicando pelo caminho:
— Se as camadas do corte
corresponderem às do barranco e estiverem com a direção mudada, isto é, se se
inclinarem para baixo em vez de irem subindo, isso provará que este campo já
foi montanha.
— Montanha, aqui nesta planície,
Visconde?
— Sim. Pode ter sido uma grande
montanha que a Erosão destruiu. Lá no barranco vemos que a Erosão continua no seu trabalho de destruir o morro. Cada ano o
barranco está maior, e daqui a uns séculos quem passar por aqui já não
encontrará mais morro nenhum.
— As chuvas, as enxurradas levam a
terra do morro para o Ribeirão do Caraminguá; o Caraminguá a leva ao Rio
Paraíba; e o Paraíba a leva para S. João da Barra, onde a despeja no Oceano
Atlântico.
— Que desaforo! — exclamou
Narizinho. — Então a terra deste morro de vovó vai parar em São João, lá no
Estado do Rio? Mas isso é uma ladroeira...
— A Erosão e os rios mudam a face da
terra, transportam as rochas dum ponto para outro sem o menor respeito aos
proprietários do solo. Dona Benta que perca o amor a este morro. A maior parte
já foi reduzida a areia e carregada para longe; o resto irá também, não tenham
disso a menor dúvida.
Chegaram ao corte da estrada. O
rosto do Visconde iluminou-se.
— Exatamente o que eu esperei! — disse ele ao examinar
o corte. — As camadas que estudamos no barranco têm sua continuação aqui. Cá
está a camada de arenito, e a de conglomerado, e a de argila, com a única
diferença da direção. No barranco as camadas subiam; aqui descem. Isto prova o
que imaginei: estamos em cima dum anticlinal já em grande parte destruído pela
erosão.
— Que engraçado! — exclamou
Pedrinho. Agora compreendo o riso do Visconde depois que deu para estudar
Geologia. Como tudo se esclarece! Como fica interessante! Aquele barranco e
este corte nunca me fizeram vir à cabeça a menor ideia. Agora já me falam,
dizem coisas, contam pedaços da vida da terra. Que engraçado!...
— Pois é isso, Pedrinho. Para o
geólogo, o chão, os barrancos, as buraqueiras, as perambeiras, as boçorocas, as
ravinas, as margens dos rios, os cortes das estradas de ferro, tudo são páginas
do livro da natureza, onde ele lê mil coisas que jamais passaram pela cabeça
dos ignorantes.
— Que gostoso é saber, hein,
Narizinho?
— Nem fale, Pedrinho. Cada vez tenho
mais dó dos analfabetos.
— Muito bem — disse o Visconde. —
Isto aqui está provado que é um anticlinal. O barranco lá longe e este corte
aqui nos permitem verificar a correspondência das camadas e sua inclinação. Mas
a Erosão destruiu o alto do anticlinal; só deixou as encostas. O barranco lá e
o corte aqui estão nas encostas do anticlinal destruído. Temos agora de nos dar conta de uma coisa: as camadas geológicas
são como as capas das cebolas de cabeça. Há sempre uma debaixo da outra, de
modo que ainda que não estejamos vendo, podemos, por um esforço de imaginação,
figurar as camadas que não foram destruídas pela erosão e continuam bem
arrumadinhas debaixo desta terra, até bem no fundo, onde não há mais rochas
sedimentárias porque já é o cristalino.
— Que cristalino é esse?
— O cristalino é um modo de tratar
as rochas ígneas que estão sempre por baixo, servindo de alicerce às camadas
sedimentárias. Se fizermos aqui um buraco, iremos indo, indo sempre a furar
sedimentos, até
chegarmos à rocha ígnea, ou
cristalina.
— Sei — disse Pedrinho. — Até
alcançarmos as rochas que ainda hoje estão como eram no começo do mundo, quando
a crosta ainda não estava modificada pela erosão.
— Isso mesmo. O trabalho da erosão é
superficial. O fundo ela não toca.
— Bem feito! — exclamou Emília, que
já estava a implicar-se com a grande destruidora.
— Pois eu queria ver como é uma
dessas rochas do fundo, que nunca foram bulidas pela erosão.
— Muito fácil — respondeu o
Visconde. — O granito, que você conhece, é uma delas. Os movimentos da crosta
(os movimentos orogênicos, como dizem os sábios), trazem à superfície,
em muitos pontos, bocados dessas rochas, que embora atacadas pela erosão ainda
se acham em grande parte intactas. As pedreiras donde se extraem os
paralelepípedos de calçar ruas são rochas ígneas lá do fundo que subiram até à
superfície.
— Trazidas pelos vulcões?
— Não. As rochas que os vulcões
trazem são muito diferentes do granito. O granito também esteve derretido, mas
esfriou no fundo, fora do contato com o ar — por isso é diferente das rochas
vulcânicas.
— Nesse caso não pode haver petróleo
nessas rochas ígneas — observou Pedrinho.
— De fato não há. Petróleo só
aparece nas rochas sedimentárias. Se por acaso alguém encontrar petróleo numa
rocha ígnea, é que o petróleo foi para lá, não que tenha nascido lá.
O petróleo emigra muito; forma-se num lugar e muda-se para
outro.
— Obra do eterno parigato — observou
Emília.
— Isso mesmo. As pressões
subterrâneas fazem que ele, que é líquido, mude de casa quando começam a
comprimi-lo demais no ponto em que se formou.
— E o petróleo é encontrado assim
liquidozinho como sai dos poços? — perguntou a menina.
— Não. O petróleo não existe solto,
em lagoas subterrâneas, como muita gente pensa. Existe espalhado entre os
vãozinhos das areias ou de outras rochas porosas. Os geólogos dizem camadas
portadoras. Uma camada portadora tem que ser porosa, isto é, ter vãozinhos
onde o petróleo se acomoda. Se a camada não é porosa, ele não encontra espaço
onde alojar-se. Por isso essas camadas de argilas só ajudam o petróleo dum
jeito: formando as capas impermeáveis que não o deixam fugir.
Pedrinho estava pensativo. Por fim
falou:
— Uma coisa anda me preocupando,
Visconde — disse ele. — Estou vendo que os tais estudos geológicos só são
possíveis quando há muitos barrancos e buracões. E quando não há nada disso?
Quando o terreno é todo uma planície imensa, recoberta de vegetação?
— Bom, aí o geólogo não pode ver
nada e portanto não pode tirar conclusões. Tem de "pedir água."
— A quem?
— À Geofísica.
— Que é isso?
— Geofísica é a ciência de ver.
apalpar, medir as
rochas que estão lá no fundo.
— Ver, como, se estão lá no fundo?
— Ver é um modo de dizer. Em vez de
vez eu devia ter dito adivinhar. A Geofísica consiste na aplicação de uns
tantos princípios da Física, por meio dos quais os sábios adivinham o que não
podem ver, nem apalpar. Espécie de Raio X do fundo da terra. Os Raios X nos
permitem ver alguma coisa através dos corpos opacos. A Geofísica também nos
permite estudar uma porção de coisas lá no fundo.
— Que coisas, por exemplo?
— Permite-nos, por exemplo, saber
até que profundidade vão as camadas de rochas sedimentárias.
— E tem importância isso?
— Muita. Se em certo ponto a massa
de rochas sedimentárias é muito grande, ou vai até muito fundo, está claro que
poderá conter muito mais petróleo do que numa camada menos possante, ou menos
espessa.
— E que mais?
— Também permite descobrirmos
anticlinais e domos de sal.
— Que é isso?
— Domos de sal são grandes acúmulos
de sal de cozinha que em muitos pontos se erguem e empurram as camadas
sedimentárias para cima. Nas encostas desses domos de sal acumula-se quase
sempre o petróleo. A Geofísica permite descobrir tais domos e determinar
certinho a área que eles ocupam.
— E que mais?
— Muita coisa mais, como, por
exemplo, determinar as falhas existentes num campo petrolífero. E
determinar as intrusões de rochas ígneas. E verificar se os gases de petróleo
chegam até à superfície. Muita coisa. A Geofísica é uma ciência de tal modo
preciosa para os petroleiros que sem ela eles não dão um passo. Antes de
começar um poço mandam fazer o estudo geológico do terreno; depois mandam fazer
o estudo geofísico; só então furam. E por isso estão furando hoje com
muitíssimo mais acerto do que antigamente.
— Erravam muito antigamente?
— Nem fale! Em cada cem poços
abertos nos Estados Unidos, parece que só três alcançavam o petróleo. Era o
mesmo que dar tiro sem pontaria, ou de olhos fechados. Está claro que às vezes
matavam algum passarinho — por acaso...
— E hoje?
— Ah, hoje tudo mudou. Só dão tiro
com pontaria. O número de poços que os petroleiros perdem reduziu-se
enormemente. Os primeiros estudos geofísicos sérios que tivemos no Brasil foram
feitos no Riacho Doce, em Alagoas. Há lá um petroleiro chamado Edson, e um
governador de Estado, de nome Osman, que até merecem estátuas de ouro! Graças a
eles, o Brasil começou a estudar petróleo a sério, cientificamente, com vontade
de achar — e vocês vão ver que em consequência disso o primeiro poço de
petróleo do Brasil vai ser em Alagoas.
— Protesto! — berrou Emília. — O
nosso tem que ganhar a corrida — tem que chegar na frente.
O Visconde ia responder quando soou
o berro de tia
Nastácia lá longe:
— A janta tá na mesa, cambada! Tem
lambari frito...
Na voz de lambari frito, os meninos
esqueceram a
Geologia e botaram-se para casa, na
volada. Só ficou por ali, pensativo, de mãozinha no queixo, o grande sabugo
geológico.
— Hum! hum! — monologou ele depois
de muito matutar. — Macacos me lambam se aqui não houver petróleo...
CAPÍTULO
7: DEPOIS DO ALMOÇO
Comidos os lambaris do almoço, a
meninada voltou correndo ao campo, interessadíssima na continuação do estudo
geológico.
— Mas quais são as condições que
devemos descobrir nestes terrenos para termos a certeza de que podem conter
petróleo? — foi perguntando Pedrinho.
— Várias — respondeu o Visconde. —
Temos, primeiro, de verificar se são sedimentárias as rochas...
— Isso já vimos que são.
—...e se têm possança. E se há
camadas porosas, capazes de armazenar o petróleo. E se há camadas impermeáveis
entalando essas camadas porosas. E se não há muita intrusão de rochas
eruptivas, porque estas pestes, quando se introduzem numa camada portadora de
petróleo, é para escangalhar tudo, destruir tudo com o seu calor brutal. E se
há anticlinais bem formados onde o petróleo se acumule. E se há pela superfície
algum sinal qualquer de petróleo, como xisto ou arenito betuminoso. E qual a
idade do terreno...
— Idade do terreno? — repetiu
Narizinho. — Esse ponto não foi estudado.
— Os geólogos dividem os terrenos em
várias idades ou períodos. E como o petróleo quase sempre aparece
em certos terrenos, tem muita importância conhecer a idade das rochas dum campo
petrolífero.
— Reduza isso a troco miúdo,
Visconde, que não estou entendendo muito bem — reclamou Emília.
— Vou explicar — assentiu o
Visconde. — Bem lá no fundo há as massas de rochas eruptivas sobre que se
assentam as camadas de rocha sedimentária. São rochas duras, cristalinas, que
vão amolecendo até se confundirem com a massa derretida do centro. A crosta
solidificada da terra é coisinha mínima comparada com o volume da terra
inteira. Corresponde a menos que uma casca de laranja, para a laranja.
— Então se descascarmos a terra ela
fica nova mente uma bola de fogo?
— Sim. Se arrancarmos a crosta da
terra, o nosso planetinha volta a ser a bola de fogo, o solzinho que já foi no
tempo em que começou a regirar pelo espaço.
Os olhos de Emília brilharam.
Lembrou-se da viagem ao céu e de todas as coisas prodigiosas que se deram ali
no sítio e viu no descascamento da terra uma aventura nova, nunca sonhada nem
pelos loucos mais varridos.
— Que estupendo, Narizinho! —
exclamou ela arregalando os olhos brilhantes, — Está aqui uma aventura bem
digna de nós: descascarmos a terra, como quem descasca uma laranja
mexeriqueira!...
— Lá vem, lá vem! — disse a menina.
— Eu já
andava admirada do tempo que você
passou sem abrir a torneirinha...
Emília pôs-lhe a língua e o Visconde
continuou:
— Estava eu dizendo que a grossura
da casca da terra é mínima. As perfurações que o homem faz para petróleo
parecem-nos muito profundas porque somos uns microbinhos de duas pernas. São
profundas para nós. Para a terra, correspondem a simples picadas de alfinete.
— Então um poço de 1.000 metros é
uma simples picada de alfinete?
— Claro que sim. Basta fazer o
cálculo. Que diâmetro tem a terra?
Narizinho, que sabia de cor,
"cantou" logo:
— De polo a polo, a terra mede
12.640 quilômetros de diâmetro.
— Muito bem. Logo, um poço de 1.000
metros, ou 1 quilômetro, representa apenas 1/12.640 do diâmetro da terra. Se eu
tivesse aqui o quadro-negro, desenharia a terra e esse poço, ambos na mesma
escala, para vocês verem que um buraco de 1.000 metros não passa de picadinha
de ponta de alfinete. E que é a própria casca da terra senão uma película? Já
vimos que o calor central aumenta de um grau cada 25 metros. Isso quer dizer
que a 100 quilômetros de profundidade temos a temperatura de 4.000 graus, mais
que suficiente para manter todas as rochas no tal estado de fusão que nem olhar
a gente pode, porque cega. Mas se procurarmos relacionar esses 100 quilômetros
da casca com o diâmetro da terra, acharemos a fração 1/126, apenas...
A pouca distância dali havia uma
laranjeira carregada. Pedrinho foi escolher uma das laranjas mais taludas para
verificar a proporção entre a casca e o diâmetro. Fez suas medições e disse:
— Esta laranja tem 126 milímetros de
diâmetro, e a casca tem três milímetros de espessura; logo, esta casca
representa para esta laranja muito mais do que a crosta da terra representa
para a terra. Para a casca da laranja estar na mesma proporção da crosta da
terra, devia ter só um milímetro de espessura.
— Puxa! Que "finura" —
exclamou Narizinho. — A crosta da terra então deve corresponder a uma casca de
pêssego...
— Exatamente — concordou o Visconde.
— A relação entre a crosta da terra e o diâmetro da terra deve ser a mesma que
entre uma película de pêssego e o diâmetro do pêssego.
Desde aquele momento Emília passou a
caminhar muito ao de leve, na pontinha dos pés — de medo que seu peso-pluma
rasgasse nalgum ponto a película de pêssego que chamamos crosta da terra...
— Com essas cascas todas estamos mas
é esquecendo o petróleo — advertiu Pedrinho. — Volte ao assunto, Visconde.
O Visconde voltou.
— Sim. Estávamos falando sobre a
idade das rochas. As primeiras camadas de rocha sedimentária que lá no fundo
repousam sobre as rochas cristalinas, pertencem à Era Azoica. Azoica quer
dizer sem vida.
Picam lá os terrenos arqueanos,
ou antiquíssimos, onde nunca há petróleo, nem nenhum sinal de fósseis, já que
naquele tempo ainda não existia vida.
— E em cima dos terrenos arqueanos?
— Em cima dos terrenos arqueanos vêm
as camadas da Era Paleozoica, ou Primária, onde aparecem os
primeiros fósseis de algas marinhas e as primeiras conchas, isso bem embaixo;
mais para cima começam a aparecer outros fósseis, como os dos fetos, e grande
abundância de cascas de moluscos. E ainda mais para cima surgem os fósseis dos
primeiros sáurios e dos vegetais que formam as mais velhas hulhas.
— E depois?
— Depois temos a Era Mesozoica,
ou Secundária, cujos terrenos se compõem de argilas, piçarras, calcários
de conchas. Surgem fósseis de plantas já bastante adiantadas, como as
coníferas, as cicadáceas, os grandes fetos arbóreos; e também fósseis de sapos
gigantescos, sáurios enormes, plesiossauros, ictiossauros, lagartões voadores,
toda essa bicharada que até parece pesadelo, quando a vemos reconstruída nas salas
dos museus paleontológicos. São as camadas mais românticas da crosta da terra.
A vida naquele tempo era muito mais violenta que hoje, de modo que o Mesozoico
parece um verdadeiro romance de monstruosidade.
— Que pena não termos nascido nessa
época! — suspirou Emília. — O mundo está hoje uma vergonha em matéria de
bichos, sobretudo aqui no Brasil. Umas paquinhas, umas capivaras e umas tais
onças aí pelos
fundões, que a gente nunca vê. Só se
salva a África, com uma bicharia ainda bem bonita — girafas, rinocerontes,
hipopótamos, leões...
Mas o Visconde não concordou:
— Se vivêssemos naquela época,
Emília, teríamos uma vidinha bem curta. Bastava que passasse por nós um simples
mesossauro, com a sua cabeça de metro e meio de comprimento. Lambia-nos a todos
como boi de carro lambe os capins da beira da estrada...
— Que prosa esta Emília! — murmurou
Narizinho.
— Queria ter nascido naquele tempo
dos bichões absurdos, justamente ela que nem tem corpo para encher a cova do
dente dum deles...
— E depois desse período truculento?
— perguntou Pedrinho.
— Depois do Secundário temos a Era
Cenozoica, ou Terciária, onde também aparecem muitos fósseis de
animalões que já não existem, como os mastodontes, os dinotérios, os mamutes.
Mas tanto a flora como a fauna desse período já começam a dar ideia das de
hoje. E, finalmente, temos a Era Quaternária, que é a mais moderna, a
nossa. Neste período os fósseis encontrados são dos mesmos animais e das mesmas
plantas que conhecemos. Já não aparecem os colossais bicharocos do período
anterior. Foi quando apareceu na terra o bicho-homem.
Emília, que não se consolava —
murmurou suspirando: — "Que azar eu ter nascido agora! Meu temperamento é
secundário..."
— E qual o melhor período para
petróleo? — quis saber Pedrinho.
— Ah, é o Terciário. Os melhores
campos petrolíferos do mundo são em terrenos dessa época.
Até ali tudo correra muito bem,
porque eram coisas que estavam nos livros. Mas quando tiveram de ver no chão se
realmente existiam todas as condições favoráveis para a existência do petróleo,
o sabuguinho científico começou a mostrar exigências excessivas. Pedrinho
danou. Viu logo que naquele andar passariam pelo menos um ano em estudos
teóricos antes de darem começo ao poço — e como era o poço o que mais
interessava, convidou Narizinho e Emília para outra greve.
— Sim — disse ele — porque nesta
toadinha do Visconde ficamos toda a vida a estudar coisas dos livros e nada de
perfuração. Nosso Visconde é livresco demais. Temos que declarar greve. Topam?
— Topamos — concordaram as duas, também
já cansadas de ciência teórica.
Pedrinho voltou-se para o sábio e
disse:
— Feche o livro, Visconde.
Resolvemos dar começo ao poço já, já, já.
O Visconde fez cara feia.
— Mas como pode haver poço sem
ciência, menino? Que bobagem é essa?
— Bobagem ou não, queremos começar o
poço imediatamente. Está decidido por maioria de votos — três contra um.
— Mas se nem acabamos de fazer o estudo geológico do terreno! Depois dele ainda temos de fazer o
estudo geofísico, homessa!
— Faz de conta que já estão feitos —
berrou Emília. — Faz de conta que foram feitos por uns sábios da Alemanha que
mandamos vir, não acha, Pedrinho?
— Claro que sim. Os tais estudos
geofísicos tanto estão feitos que tenho aqui os mapas — disse Pedrinho fingindo
abrir no chão um enorme rolo de papel de desenho. Venham ver.
Todos se curvaram em redor do mapa
de mentira.
— Aqui está tudo explicadinho —
disse ele, — Os sábios alemães marcaram neste ponto um anticlinal magnífico,
sem falha nenhuma, entupido de petróleo lá embaixo. Temos agora de localizar
o anticlinal do terreno. Olhem: começa na porteira do pasto e vai até lá
no corte da estrada que estivemos estudando. Melhor fincarmos na terra várias
estacas para que fique tudo bem marcadinho e não haja enganos depois. Se
furarmos bem no alto do anticlinal, sai gás, segundo as teorias do Visconde; se
furarmos nas encostas, sai petróleo; e se furarmos muito embaixo, no pé das
encostas, sai água salgada. Vê como eu sei? Vamos agora estaquear o terreno.
Pedrinho sacou do facão de mato que
trazia à cintura e cortou umas vinte estacas.
— Venha atrás de mim com o feixe,
Narizinho, e vá me dando uma por uma.
A menina obedeceu. Sobraçou o feixe
de estacas e as foi dando a Pedrinho, que as fincava em terra depois de fazer
ponta com o facão. Num instante o anticlinal que os alemães haviam marcado no mapa ficou todo estaqueadinho no
terreno.
— Pronto! — exclamou o
"engenheiro" enxugando o suor da testa. — Essas estacas maiores
marcam o topo do anticlinal, os pontos onde há gás. Aquelas ali marcam as meias
encostas, boas para perfurar. Que acha, Visconde, da minha marcação?
O sabugo geológico respondeu, depois
de alisar as palhinhas do pescoço, que não havia nenhuma objeção a fazer.
— Então, pronto! — gritou Pedrinho.
— Hurra! Hurra! O principal está feito: marcar cientificamente o lugar exato
onde abrir a perfuração. O resto é canja.
Mas apesar de ser canja, Pedrinho
engasgou. Não sabia o que fazer depois da marcação do ponto certo. Teve de
recorrer ao Visconde.
— Vamos lá, Visconde, conte como é o
resto.
O Visconde explicou que o resto era
furar, sendo para isso indispensável adquirir uma boa sonda de perfuração e
todas as máquinas e coisas acessórias.
— Em que consiste a sonda?
— Num complicado aparelho
perfurador, com uma torre de uns trinta metros de altura e um motor a vapor ou
a óleo que mova o aparelho. E oficina mecânica para consertos, etc. Antes,
porém, acho que você deve providenciar a água e o combustível para a caldeira —
e também as casas para acomodação das máquinas e operários.
— Água — resolveu Pedrinho — eu puxo
num
encanamento lá do Córrego do
Caraminguá; e para combustível temos de tirar lenha no Capoeirão dos Tucanos.
Quanto de lenha é preciso?
— Quanto mais melhor — respondeu o
Visconde.
— É bom termos sempre uma boa
reserva — aí uns 500 metros cúbicos. A caldeira vai consumir de vinte a trinta
metros por dia.
Pedrinho deu ordem à boneca para que
cuidasse da lenha. Emília aplicou o faz-de-conta, e num momento dez carros de
boi começaram um vaivém contínuo do capoeirão até ali. Serviço rápido como o
relâmpago.
— Pronto, Pedrinho! Empilhei lenha
até demais — 523 metros cúbicos segundo a nota que meus carreiros apresentaram
— disse ela dando a Pedrinho um papel com garranchos.
— Bom. Água e lenha já temos — disse
ele. — Agora é preciso que você, Narizinho, se encarregue das casas e do
barracão para as máquinas.
A menina também aplicou o
faz-de-conta, de modo que num instante surgiu da terra um excelente barracão de
madeira, com telhado de zinco, para as máquinas; e a cem metros dali uma série
de casas para operários, muito bonitas e higiênicas, tão bonitas que Pedrinho
achou demais.
— Demais, não! — protestou ela. —
Quanto melhor acomodarmos nossos homens, melhor eles trabalham. Não concordo
com o sistema de tratar os operários como se fossem pedras insensíveis. As
casinhas têm tudo dentro — até geladeira e rádio...
— E esta casa aqui? — perguntou
Pedrinho, vendo uma distanciada da vila operária.
— Pois aqui é o escritório — o seu
escritório, Pedrinho, já que é você o Superintendente do campo. E aquela mais
pimpona, acolá, é o bangalô do perfurador que temos de mandar vir do
estrangeiro.
— Muito bem — disse Pedrinho tomando
conta do escritório. — Vou fazer o pedido das máquinas necessárias. Temos de
comprá-las na América do Norte, porque no Brasil não há disso.
Abriu vários catálogos em inglês e
pôs-se a folheá-los. Eram gravuras e mais gravuras de máquinas e mais máquinas,
numa procissão sem fim. Um catálogo enorme, aí como um dicionário dos gordos.
Pedrinho tonteou no meio de tantas máquinas e peças que ele não entendia. Teve
de recorrer aos conhecimentos do Visconde.
— Estou tonto, Visconde. Há aqui uma
ferramentalhada que não tem fim. Será preciso encomendar este catálogo inteiro?
O Visconde fez uma pequena preleção
sobre sondas.
— Há sondas de dois tipos — disse
ele. — Umas perfuram por meio da batagem. A terra vai sendo martelada por uma enorme e pesadíssima talhadeira chamada trépano,
e as pancadas vão desagregando as rochas, esfarelando-as.
— E para tirar do buraco a rocha já
esfarelada? — perguntou Pedrinho.
— Há dois sistema. Um é, depois de
martelar por certo tempo, retirar do poço o trépano para, com uma caçamba
própria, extrair todo o material escavado. Outro sistema é injetar água dentro
do poço por meio duma bomba fortíssima. A água lá do fundo faz lama com o
material escavado, lama que sobe e sai pela boca do poço. A água limpa entra
com forte pressão por dentro das hastes do trépano e a lama sai por fora das
hastes. Este processo é mais aperfeiçoado que o da caçamba.
— Se é o mais aperfeiçoado, quero
esse. Aqui tudo há de ser a última palavra da técnica. E o outro tipo de sonda?
— O outro é o tipo rotativo, o mesmo
sistema dos trados de furar madeiras grossas. Em vez de trépano que desagregue
as rochas à custa de tanto martelar, há na extremidade da haste uma broca que
gira sobre si mesma e vai roendo, desgastando as rochas. Este sistema tem a
vantagem de andar mais depressa que o outro.
— Pois então fica adotado o sistema
rotativo — resolveu Pedrinho.
— Espere, Senhor Superintendente! —
gritou o Visconde. — O sistema rotativo não há dúvida que é ótimo, mas depende
do terreno. Em terrenos próprios dá para
furar 50 ou 60 metros por dia. Mas se há camadas de certas rochas muito duras,
ou certos conglomerados, ele falha — não rende nada ou rende muito menos que a
batagem.
— Então que fazer aqui no sítio, se
não sabemos que camadas vamos encontrar? — perguntou Pedrinho atrapalhado.
— Minha opinião — respondeu o
Visconde — é que venha uma sonda mista, de batagem e rotação ao mesmo tempo.
Quando as camadas permitirem o emprego das brocas rotativas, furaremos com
elas; quando não permitirem, furaremos com os trépanos.
— Ótima solução, Visconde! — disse
Pedrinho. — Encomendarei uma sonda mista, está resolvido. E que mais é
necessário?
— A caldeira, o motor, os tubos...
— Que tubos?
— Os tubos de aço para revestimento
da perfuração. Não é só ir furando, não, Senhor Superintendente! O furo tem que
ser revestido de canos de aço.
— Que maçada! Por que isso?
— Por vários motivos — evitar
desmoronamentos, fechar as águas...
— Que águas, sabugo de Deus?
— Quando a gente perfura, encontra
pelo caminho lençóis subterrâneos de água doce, que se formam com a infiltração
das chuvas. Essas águas têm de ser fechadas por meio dos tais tubos, senão —
sabe o que acontece?
—?
— Acontece o seguinte: logo que o
furo toca num lençol de petróleo, a água, que está saindo sempre, desce e
mete-se pelo lençol de petróleo adentro, e empurra o petróleo para longe dali.
As águas são eternas, não param de correr por causa da infiltração das chuvas,
que é constante. Mas o coitado do petróleo não tem chuva de óleo que o
abasteça, de modo que cede diante da água — e vai indo, vai indo, vai se
afastando do campo petrolífero...
Por isso os petroleiros dizem que a
água é a maior inimiga do petróleo.
— Bem, já sei — disse Pedrinho. — A
entubação é para fechar as águas. E que mais?
— Ferramentas miúdas e mil coisas. É
indispensável uma boa oficina mecânica para reparos dos maquinismos. O melhor é
você encomendar uma sonda mista completa, com capacidade aí para uns 1.500
metros. E que venham os tubos de revestimento necessários.
Pedrinho foi à máquina de escrever
redigir a carta de encomenda.
— Por carta, Pedrinho? — reclamou
Emília. — Leva muito tempo, rapaz! Peça logo por telegrama urgente e exija que
a ferralhada esteja aqui amanhã bem cedo.
— Absurdo, Emília, não dá tempo.
— Dá sim — insistiu ela. — Eles que
se utilizem do meu poderoso "Faz-de-Conta nº 7", o maior avião de
carga do mundo. Dessa maneira teremos tudo aqui amanhã antes do almoço.
Pedrinho compreendeu que realmente
não havia outro jeito e redigiu o telegrama.
Restava calcular o preço da
encomenda e mandar os dólares.
— Venha fazer a conta, Narizinho,
você que é a matemática.
Narizinho calculou pelos preços do
catálogo a importância total do pedido.
— Anda em 105.742 dólares — disse
ela mostrando a conta.
E agora? Onde o dinheiro para a
remessa? Só mesmo a Emília. Pedrinho chamou Emília.
— Olhe, Emilinha, encarregue-se você
desta parte financeira. Dê um jeito de o dinheiro ser entregue hoje mesmo à
firma McGowen & Tuttle, de Nova Iorque. Veja um bom banco para fazer a
remessa.
— Banco? Não me fio em bancos,
Pedrinho. Vou fazer o dinheiro chuviscar em cima da cabeça de Mister McGowen.
Quer ver? E voltando-se para o céu, gritou:
— Nuvenzinhas, nuvenzonas, que
cochilando passais pelo azul! Correi até à casa de Mister Mc... Mc o quê,
Pedrinho?
— McGowen — gritou o menino do fundo
do escritório.
—... de Mister McGowen e
despejai-lhe na cabeça uma chuva de 105.742 pingos doláricos — por conta da
Companhia Donabentense de Petróleo.
Disse e foi ter com o Visconde.
— Pronto! Mister McGowen vai ficar
tonto com a nossa chuvinha de ouro. As nuvens, mal me ouviram, botaram-se a
galope. Já devem estar chegando.
— E agora? — perguntou Narizinho. O
Visconde estava exausto.
— Agora? — disse ele deitando-se no
chão. — Agora um descansinho. Uf! Como trabalhamos hoje!...
E limpou na manga o suorzinho da
testa.
CAPÍTULO
8: MONTAGENS
Durante o jantar Dona Benta
perguntou a Narizinho que é que os havia conservado fora de casa o dia inteiro.
— Ah, vovó não sabe! É o poço...
— Que poço?
— O poço de petróleo que vai salvar
o Brasil — o primeiro poço, com uma produção de mil barris por dia.
— Dez mil! — protestou Emília. — Não
faço por menos.
— Ou isso. Já completamos os estudos
geológicos e geofísicos; já estaqueamos o terreno; já construímos as casas dos
operários, o barracão das máquinas, o escritório e o bangalô de Mister
Kalamazoo, o perfurador que mandamos vir da América. Também já encomendamos a
maquinaria toda, a sonda, os tubos de revestimento. Um dinheirão, vovó! Mais de
cem mil dólares.
Dona Benta, que começara a trinchar
uma galinha assada sorriu. Andava tão afeita àquelas maluquices de seus
netos...
— Mas esse Mister Kalamazoo fala
português?
— Não; só inglês. É americaníssimo.
— E como se entenderá com vocês? —
indagou ela, pondo no prato de Narizinho um pedaço de peito.
— Com intérprete. Quindim será o
intérprete. Como ele é natural do Uganda, uma possessão inglesa da África, sabe
inglês na ponta da língua.
— Na ponta do chifre! — emendou
Emília.
— E que nome vai ter o poço? Porque
todos os poços têm nomes, ou números.
Os meninos, que ainda não haviam
pensado naquilo, entreolharam-se; e Emília, a sapeca dadeira de nomes às
coisas, mais uma vez impôs o seu capricho.
— Vai chamar-se o Caraminguá nº 1 —
improvisou ela — em homenagem ao nosso ribeirãozinho. Os outros terão outros
nomes, porque a Donabentense vai abrir pelo menos cinquenta poços naquele
anticlinal.
— Que Donabentense é essa?
— O nome da companhia, vovó —
respondeu Narizinho. — Antes que pensássemos no assunto, Emília já veio com
esse nome, que ficou. Companhia Donabentense de Petróleo em
homenagem à senhora...
— Muito bem — disse Dona Benta,
pondo no prato de Pedrinho uma coxa. — Vejo que Emília está começando a me
adular — prova de que anda querendo qualquer coisa. Prego sem estopa você não
prega, não é, Emília?
A boneca fez focinho de lebre.
Durante o jantar inteiro só se falou
na perfuração. Iam extrair do poço milhares de barris de óleo, montar uma
refinaria, inundar o Brasil de gasolina, querosene, óleo lubrificante, óleo combustível, supergás e dezenas de
outros produtos do petróleo. Dinheiro ganhariam tanto, que a dificuldade seria
saber o que fazer dele. Pedrinho só pensava numa coisa: viajar, conhecer mundo.
— Por que, vovó, como posso saber de
que modo empregar meus capitais, se nada conheço do mundo? Tenho de,
primeiramente, estudar o mundo para verificar o que o mundo mais precisa, não
acha?
— Muito bem pensado — concordou Dona
Benta.
— E você Narizinho? Que vai fazer do
dinheiro?
— Meu sonho é construir hospitais,
escolas, creches, bibliotecas, coisas de utilidade geral. Há tanta pobreza e
desgraça na terra...
— Quer dizer que será uma
rockefellerzinha. O velho Rockeffeller, depois de ter ganho montões e montões
de ouro, ficou sem saber o que fazer daquilo. E fundou o Instituto Rockefeller,
cuja função é gastar seus milhões em coisas de benefício universal. Esse
instituto beneficia todos os países, inclusive o nosso. A grandiosa Escola de
Medicina de S. Paulo, lá defronte ao Cemitério do Araçá, foi presente dele. Não
há país do mundo, seja a França ou a China, onde o Rei do Petróleo não despeje
benefícios. E você, Visconde?
Como todos os verdadeiros sábios, o
Visconde não entendia nada de dinheiro — e engasgou com a pergunta. Emília
tomou a palavra.
— Vai comprar uma cartolinha nova e
um remédio para o bolor — disse ela. — E eu...
— Ah, você! — exclamou Dona Benta. —
Imagino
o que não será — quanta maluquice!
Vamos, diga. Que vai fazer do dinheiro?
— Botá-lo a juros para ir juntando
sempre mais, mais, mais...
Aquela resposta espantou a todos.
Emília sempre fora uma ciganinha, mas ninguém jamais supôs que também fosse
usurária.
— A que juros? — perguntou Dona
Benta, por curiosidade.
— O mais alto possível — 10% ao mês,
se não puder ser a 12...
— Explique-se, Emília. Não estou
entendendo bem.
— Minha ideia é esta. A verdadeira
vocação dos homens é escravizarem-se ao dinheiro. Assim que uma pessoa sacode
no ar um pacote de notas, gritando: — "Quem quer? Quem quer?"
imediatamente aparecem mil mãos estendidas, dizendo: — "Eu quero! Eu
quero!" E o dono das notas distribui o dinheiro mas prende aquelas mãos
com algemas de aço — os juros. Os homens, donos dessas mãos, tornam-se escravos
do dador do dinheiro; passam a viver para ele, a trabalhar para ele, a só
pensar nele, porque o juro é uma coisa que cresce sempre, dia e noite, faça sol
ou faça chuva, seja Domingo de Ramos ou terça-feira de carnaval. Essas
criaturas ficam escravas pelo resto da vida — por gosto, por vontade própria,
só porque alguém lhes mostrou dinheiro e elas não resistiram à tentação de
pegá-lo. Todo mundo faz dívidas — as gentes, as empresas, os municípios, os
estados, as nações, os impérios. E todo mundo anda pedindo dinheiro emprestado, isto é, estendendo as mãos para que os donos do
dinheiro as algemem. E se acontece que um desses escravos pague a dívida, a
tentação é de fazer outra — e faz, e escraviza-se novamente. Saudades da
escravidão!...
Ora, isso quer dizer que a vocação,
o gosto supremo dos homens é tornarem-se escravos do dinheiro. Muito que bem:
pois se é assim, quando eu ficar milionária vou dar aos homens o gosto imenso
de se escravizarem ao meu dinheiro, bem algemadinho com juros de 10 ou 12% ao
mês. Tia Nastácia não diz sempre que o que é de gosto regala a vida?
—
Já se viu que malvada? — murmurou Dona Benta.
—
Prosa dela, vovó — disse Narizinho. — Emília, quando tiver dinheiro, o que vai
fazer é associar-se ao Visconde para entupir os sertões do Brasil com feras trazidas
da África. Já pilhei uma conversa dela nesse sentido. Emília confessou que seu
temperamento era "feroz" e "secundário" — isto é, amigo das
feras monstruosas que enchiam o mundo no Período Secundário. Como já não há
disso, pretende encher o Brasil de feras africanas — leões, hipopótamos,
rinocerontes, girafas, zebras, etc. Eu sei, eu sei...
O assunto continuou naquele tom até
a sobremesa — um gordo mamão mandado pelo Coronel Teodorico. Comido o mamão,
saíram na disparada a fim de receberem Mister Kalamazoo, que fora chamado por
telegrama e vinha num dos aviões-relâmpagos da Emília.
Não tardou que o ar zumbisse e um
ponto móvel
aparecesse no azul.
— É ele! — gritaram todos.
E era de fato Mister Kalamazoo. O
avião pousou no pasto e de dentro saiu um americano enorme, corado, de sapatões
grossos, a mascar chiclete. Os meninos correram-lhe ao encontro.
— How do you do, Mister
Kalamazoo? — disse Pedrinho — e engasgou. Todo o seu inglês era aquilo. E como
Narizinho ainda sabia menos e o Visconde nem um yes, tiveram de recorrer
ao Quindim.
— Traga depressa o intérprete,
Emília! — ordenou Pedrinho.
Enquanto o americano retirava do
avião suas bagagens, Emília foi e veio com o rinoceronte.
O susto de Mister Kalamazoo valeu a
pena, mas afinal acomodou-se e teve com Quindim uma grande prosa em inglês, da
qual os meninos só pescavam, aqui e ali, um yes e um no. Depois
que o americano se recolheu ao seu bangalô para descansar da viagem,
Pedrinho correu a ouvir as impressões do intérprete.
— Que tal o nosso perfurador,
Quindim?
— Inda não sei — disse ele. —
Conversamos longamente sobre perfurações e vários assuntos de petróleo, mas não
sei...
— Que é que não sabe?
— Não sei se este homem merece
confiança. Pode ser um agente dos tais trustes que não querem que o Brasil tenha
petróleo; pode ser um perfurador subornado, que venha
sabotar o nosso poço... Os meninos ficaram apreensivos. Muito sério o perigo,
na realidade. No negócio do petróleo dão-se traições tremendas, sabotagens,
incêndios, mortes trágicas...
— Mas acha-o com cara de sabotador
de poço? — insistiu Pedrinho.
— Os sabotadores não trazem nenhum S na testa — respondeu Quindim. — Apenas
estou avisando. Sinto um cheiro de sabotagem no ar...
— Como fazer, então? Nosso contrato
com esse homem já está assinado...
Quindim refletiu uns instantes.
— O jeito que acho é o seguinte: eu
monto guarda ao poço dia e noite. De medo do meu chifre, pode ser que ele
engula qualquer sabotagem que tenha na intenção.
— Ótimo! — gritou Pedrinho. — E
também fica de guarda o Visconde, que é entendidíssimo em perfurações. Se o
Visconde perceber qualquer coisa, qualquer manobra suspeita, pisca para você —
e você avança de chifre apontado, como fez com os detetives na caçada da onça.
Entendido?
A coisa ficou arrumada assim. Mister
Kalamazoo seria o perfurador, mas com quatro olhos permanentes em cima dele —
os dois do rinoceronte e os dois do Visconde.
— Ótimo, ótimo — continuou Pedrinho.
— E o americano de nada desconfiará, porque a presença dum intérprete na sonda
se justifica. Quanto ao Visconde, que é apenas um sabugo, ele não causa
desconfiança a ninguém
que não seja vaca. Só vaca desconfia
de sabugo de cartolinha...
Na manhã seguinte chegaram os aviões
emilianos com todas as peças da sonda. Que ferralhada infinita, Santo Deus!
Peças e mais peças, tubos e mais tubos, caixas e mais caixas disto e daquilo.
Parecia incrível que para abrir um buraco de dois palmos de diâmetro fosse
preciso tanta coisa.
E veio também a turma de operários
especialistas contratada por Mister Kalamazoo, gente de várias nacionalidades —
um rumaico, dois alemães, dois argentinos. Os petroleiros só arranjam bons
especialistas nos países que já têm exploração de petróleo.
Além da turma de perfuradores havia
um ferreiro, dois mecânicos, um foguista e dois ajudantes, "paus para toda
obra". E também um geólogo--químico para fazer análises de materiais,
classificar fósseis, etc.
Começou a montagem da sonda. Foram
construídos quatro alicerces para os quatro pés da torre — alicerces de tijolos
bem cimentados. E a torre de ferro foi sendo articulada peça por peça, andar
por andar, até o último, que era o décimo, a 33 metros de altura. Assim que a
armação ficou pronta, os meninos subiram pela escadinha até o alto, para gozar
o panorama.
— Que lindo é o sítio de vovó olhado
daqui! — exclamou a menina. — Lá está o Caraminguá fazendo voltas e mais
voltas, com aquela preguiça dele. E lá está a estrada com a vendinha do Elias
Turco...
— Até da fazenda do Coronel
Teodorico a gente vê
um pedaço, o terreiro, os
chiqueiros, o pomar, o mastro de Santo Antônio — ajuntou Pedrinho.
O Visconde só via a paisagem
geológica.
— Reparem como estava certa a minha
teoria da erosão do Morro Pelado, com a sua barreira que não passa dos restos
da encosta norte da montanha desaparecida. A erosão comeu a montanha inteira,
só deixando esses pedaços. No lugar onde ela foi, temos agora o baixadão do
pasto da Mocha.
Emília divertia-se em dar
cuspidinhas para baixo.
— Para suicídio — disse ela — isto
aqui ainda é melhor que a tal Rocha Tarpeia que Dona Benta contou — aquela
rocha feia que existia em Roma, de cima da qual eram jogados ao precipício os
traidores. A Tarpeia tinha 32 metros — menos um que esta torre. Quer dizer que
minhas cuspidas duram no ar um metro mais que os criminosos romanos jogados da
Tarpeia.
Narizinho trocou uma olhadela com
Pedrinho. Emília os desnorteava. A propósito de tudo dizia sempre coisas
imprevistas.
O Visconde explicou a razão da
torre.
— Tudo isto, só para criar um ponto
de apoio aqui em cima, que é esta roldana, disse ele apontando para a grossa
roldana fixada no décimo andar. Neste ponto de apoio passa o cabo de aço que
sustenta as hastes.
— E por que é a torre assim tão
alta? — perguntou o menino.
—
Para facilitar e apressar as manobras. As hastes, que tem cada uma 7 metros, são
atarrachadas umas nas
outras, formando uma só, que pode ir
até 3.000 metros e mais de profundidade. Mas a broca que fica na extremidade
inferior tem que ser retirada do poço depois de algumas horas de trabalho.
— Para quê?
— Para mudança. Depois dumas horas
de trabalho a broca perde o corte. Tem que ser trocada.
— Que trabalheira, Santo Deus! —
exclamou Pedrinho. — Pensei que era só ir furando...
— A trabalheira é grande, sim, e só
nas manobras de descer e subir as hastes os perfuradores consomem várias horas
cada dia, e tanto mais quanto mais o poço se aprofunda.
Depois da explicação os meninos
desceram da torre e foram visitar a casa das máquinas e as oficinas. A um canto
erguia-se a enorme caldeira, dando ideia dum rinoceronte de ferro. Nela
queimava-se a lenha para produzir a vapor que movia todas as máquinas da sonda.
— Quantos cavalos? — perguntou
Pedrinho ao foguista.
— Cem — respondeu um operário de
cara suja de carvão, que outra coisa não fazia senão botar lenha na fornalha e
olhar os manômetros que marcam as pressões.
— Essa história de cavalos eu não
entendo bem — disse Narizinho. — Volta e meia ouço dizer: automóvel de 50
cavalos, motor de 20 cavalos — e não vejo cavalo nenhum. Que é isso Visconde?
— É uma medida de força, como o
quilo é uma medida de peso. O cavalo, ou H. P. (iniciais de Horse
Power, Cavalo-Força, em inglês) é uma força de 75 quilogrâmetros.
— Fiquei na mesma. Não sei que é
quilogrâmetro.
— Quilogrâmetro é a força capaz de
erguer um peso
de 1 quilo à altura de um metro, em
um segundo. Só isso.
— Quer dizer então que esta caldeira
de 100 cavalos capaz de erguer um peso de 7.500 quilos à altura de um metro, em
um segundo, não é isso?
— Perfeitamente.
— Então bate o Quindim — observou
Emília. — Num segundo Quindim não ergue 7.500 quilos a um metro de altura. Não
tem jeito. Mas levantar do chão esse peso, isso ele levanta, aposto.
O Visconde explicou que o vapor
produzido naquela caldeira era levado por um encanamento até às máquinas da
sonda, sendo com a força desse vapor que tudo lá se movia.
— E por que assentaram a caldeira
aqui, tão longe da sonda, cinquenta metros?
— Porque aqui se lida com fogo e num
acampamento petrolífero é necessário conservar o fogo bem longe do poço. Perigo
de incêndio.
A água para o abastecimento da caldeira
vinha do Caraminguá, onde fora colocada uma bomba tocada por um motorzinho a
óleo. Mas não vinha diretamente; primeiro enchia um grande reservatório, ou
tanque, cavado na terra, a uns cem metros dali, num alto do terreno. Logo que o
tanque se encheu, Emília soltou nele dois peixinhos pescados com peneira no
córrego. E um sapinho verde.
Em seguida o Visconde mostrou a
forja do ferreiro, onde os trépanos eram temperados e afiados.
Na oficina mecânica havia tornos de
tornear ferro, máquinas de furar ferro, rebolos de esmeril e mil ferramentas
miúdas, torqueses, alicates, limas, fresas, puas, martelos, serras,
talhadeiras, bigornas, etc. Mister Kalamazoo dirigia o serviço em mangas de
camisa e cachimbo na boca; tinha esse ar de homem que entende de tudo e tudo
resolve num ápice. Todos lhe perguntavam coisas e a todos ele dava ordens muito
certas. Era uma perfurador de grande prática adquirida nos campos de petróleo
do Oklahoma, onde abrira mais de cem poços. Infelizmente só falava inglês, de
modo que apenas Quindim aproveitava as muitas coisas interessantes que ele
dizia nos momentos de folga. E acabaram grandes amigos. O americano contava
histórias do Oklahoma, que Quindim pagava com histórias do Uganda. Mas apesar
dessa amizade o rinoceronte não deixava de mantê-lo em perpétua vigilância.
— Estes trustes mundiais de petróleo
são o diabo — dizia ele. — Fazem coisas do arco-da-velha. De modo que apesar da
simpatia que Mister Kalamazoo me inspira, eu o trago sempre de olho — e o
Visconde também. O Visconde, esse, virou uma verdadeira sarna. Não o larga um
só instantinho. O que vale é que Mister Kalamazoo, como é grandalhão demais,
nem enxerga o sabuguinho de cartola. Às vezes até tropeça nele...
Rapidamente tudo ficou pronto para o
início dos trabalhos de perfuração. Que homens aqueles! Faziam tudo tão
direitinho como os célebres anões dos contos de fadas. Só uma vez Mister
Kalamazoo perdeu as estribeiras e berrou desaforos que os meninos não
entenderam por serem em inglês. Isso porque a bomba de injetar água no poço, ao ser experimentada, engasgou — e ele atribuiu o
defeito à imperícia do mecânico que a havia montado.
Tiveram de desmontá-la para ver o
que era, e com grande espanto descobriram um peixinho entalado na válvula. Um
dos peixinhos da Emília...
— Incrível a curiosidade deste
burrico! — disse a boneca. — Escapou do tanque, onde o pus, para vir pelo
encanamento espiar os trabalhos da sonda. Agora está aí, morto, mortíssimo —
vítima da sua curiosidade científica...
E tratou de enterrá-lo debaixo duma
árvore, num tumulozinho de pedra em que havia a seguinte inscrição: Aqui jaz
o primeiro mártir do petróleo brasileiro.
Em cima do túmulo, em vez de cruz,
botou um anzol...
CAPÍTULO
9: COMEÇA O POÇO
Bem de madrugada, no dia seguinte, o
foguista acendeu fogo na caldeira para que os trabalhos da perfuração do
Caraminguá nº 1 pudessem começar às 8 horas, como havia determinado Mister
Kalamazoo. Era um grande acontecimento, que Pedrinho resolveu festejar com uma
carteira de traques mandada vir da venda do Elias Turco. Infelizmente os
traques, como tudo naquela venda, eram falsificados, e só um ou outro rebentou,
muito chochamente.
Dona Benta e a negra foram
convidadas para assistirem à inauguração.
— Nossa Senhora! — exclamou tia
Nastácia ao ver a torre de perto. — Quanto ferro! Neste andar Seu Pedrinho muda
o "semblante" do sítio, Sinhá. A coisa já está ficando que a gente
não conhece mais nada. Virando uma cidadinha estrangeira, com essas casas de
operários e o "bangalão" do Mister. E as caras? Tudo esquisito.
Aquele ali, vermelho como um presunto. Aqueles lá, de cabelo igualzinho cabelo
de milho novo. Credo!...
Dona Benta deu parabéns a Mister
Kalamazzo pela perfeição com que organizara o trabalho. E vendo o rinoceronte sempre de olho ferrado no americano:
— Que tanta atenção e aquela,
Pedrinho? Quindim não perde um só dos movimentos do Mister...
O menino cochichou ao ouvido de Dona
Benta: — "Ele é o nosso espião; está de guarda ao americano por causa da
sabotagem..."
D. Benta sorriu.
Às oito horas um sino tocou, anunciando
o começo do serviço. Os operários dirigiram-se para a sonda.
Começou a batagem. A máquina fazia
um movimento de vaivém, puxando e largando o cabo de aço, que subia até à
roldana de cima, dava volta e descia, tendo na ponta a haste do trépano. A cada
um desses movimentos o cabo erguia o trépano a um palmo de altura e o largava;
no largar o trépano caía com a força do peso sobre a rocha do chão; desse modo
ia desagregando, esfarelando essa rocha.
Um verdadeiro movimento de mão de
pilão que sobe e desce sem parar, fazendo pum-pã, pum-pã, pum-pã... O
barulho de pum era a subida do trépano; o barulho de pã era a
descida, com o choque na rocha. Só se ouvia esse barulho e só se via o pedaço
de haste que ficava para fora do poço, a subir e a descer na extremidade do
cabo.
Quando Narizinho explicou a tia
Nastácia o que era aquilo, a negra fez cara triste.
— Tenho dó das minhocas — disse ela.
— Esses malvados estão macetando as coitadinhas...
— Boba! Lá na profundidade em que o
trépano está não existem minhocas — só rochas.
— Credo! — murmurou a negra, que não
sabia o que era rocha.
Pedrinho contou a Dona Benta todo o
trabalho da sonda. Mostrou a bomba de injeção, isto é, a bomba que está
constantemente injetando água no poço, por dentro do oco das hastes.
— Lá no fundo — disse ele — essa
água injetada forma lama com o material escavado pelo trépano, e pela pressão
da água injetada a lama vai subindo até derramar-se para fora, na boca do poço.
É o meio de extrair o material escavado. Do contrário a rocha moída ficava no
fundo, atrapalhando o trépano, que bateria só nele, sem progredir.
— Há outro sistema de tirar o
material — a juntou Narizinho. — Por meio da caçambagem. Depois de perfurar um
certo tempo, tira-se fora o trépano e desce-se uma caçamba para recolher o
material escavado. Mas o nosso processo de injeção de água é mais aperfeiçoado.
Dona Benta achou graça da sabedoria
técnica da menina.
As batidas eram incessantes, pum-pã,
pum-pã, pum-pã, numa toada tão monótona que até dava sono. A distração
dos meninos ficou sendo marcar um ponto de referência na torre a fim de
acompanhar a lenta descida da haste. Numa hora de pum-pã a haste descia
aí um meio metro mais ou menos, conforme a resistência da rocha perfurada.
Depois de três ou quatro horas de
trabalho Mister Kalamazoo fez um sinal. O manobrista da máquina puxou uma
alavanca. Tudo parou.
— Que há? — quis saber Pedrinho.
— Há que eles vão emendar mais uma
haste — respondeu o Visconde.
— Ahn! É assim! — murmurou Dona
Benta.
— Estou compreendendo a razão
daquela pilha de hastes ali fora.
— Pois é, vovó — disse Pedrinho. —
Temos naquela pilha as hastes necessárias para descer até 1.500 metros de
profundidade. Vão sendo sucessivamente atarrachadas para formar um
"sistema rígido", como diz o Visconde.
Dona Benta riu-se.
Mister Kalamazoo dividira o pessoal
em três turmas, cada uma com oito horas de trabalho, de modo que o serviço
fosse contínuo pelas 24 horas do dia. Mas era trabalho monótono. Um pum-pã
de dia e de noite, só interrompido pelas paradas para colocar nova haste, ou
mudar o trépano.
Quando chegou a hora de mudar o
trépano, os meninos prestaram toda a atenção. Os homens suspenderam o trépano
até acima da boca do poço e o desatarracharam. Estava com o corte completamente
rombudo. Foi substituído por um do mesmo calibre, bem afiado. Enquanto isso, o
primeiro usado era posto numa carreta sobre trilhos e levado à oficina do
ferreiro. Os meninos acompanharam a carreta, com Emília ajudando a empurrar.
Lá na oficina a carreta parou diante
da forja. O ferreiro prendeu o trépano com as correntes dum moitão, ergueu-o e
depositou-o dentro da forja, cobrindo-o de pedaços de coque. Fez fogo, que
assoprou com um fole enorme. O coque ficou em brasa e o ferro do trépano foi
avermelhando até chegar no ponto. O ferreiro manobrou de novo o moitão para
tirá-lo da forja e colocá-lo sobre a bigorna, onde o foi malhando até
restabelecer o corte perdido.
— Interessante como o ferro se torna
maleável quando aquecido — observou Dona Benta, que também viera assistir à
operação.
Terminado o conserto, o moitão
trabalhou de novo, erguendo o trépano de cima da bigorna e descendo-o num
tanque com água.
— Para dar têmpera — respondeu o
ferreiro. — Quando se aquece o aço, ele perde a tempera, fica ferro mole; para
que novamente ganhe a sua dureza de aço, tem que ser resfriado bruscamente na
água.
Enquanto o ferreiro cuidava daquele
trépano, lá na sonda os operários concluíam a colocação do novo, e o serviço
recomeçou, pum-pa, pum-pã, na monótona toada de sempre.
Dentro dum puxado coberto de zinco
havia pelo chão grande número de trépanos de todos os calibres, desde os de
dois palmos de diâmetro, uns monstros, até os pequenos de três polegadas.
— Por que essa diferença? —
perguntou Pedrinho.
O Visconde explicou que o poço,
iniciado com um diâmetro grande, iria diminuindo à medida que se aprofundasse.
— Começamos com o diâmetro de 20
polegadas — disse ele — e iremos tocar no petróleo com o diâmetro de 4 apenas.
Isso por causa das entubações. À medida que o poço se aprofunda, tem de ser
entubado cada vez que atravessa um lençol de água.
— Para fechar a água, sei — disse
Pedrinho.
— Exatamente. E cada vez que é
entubado, só pode continuar com um diâmetro menor, porque então o trépano passa
a trabalhar dentro do entubamento feito. Se aparece mais embaixo outro lençol
de água, temos que entubar novamente, para fechar esse outro lençol de água.
Para isso colocamos tubos de menor diâmetro dentro dos tubos que já estão no
poço. E a perfuração prossegue com trépanos menores, para caberem dentro desses
tubos de menor diâmetro — e assim por diante.
Tia Nastácia gritou lá da varanda
que o almoço estava na mesa. Todos correram para a boia, menos o Visconde. O
coitadinho jurara a si próprio não largar de Mister Kalamazoo nem um segundo.
O som das pancadas do trépano
chegavam à casa de Dona Benta.
— Lá está o pum-pã — disse
ela. — Temos de ouvir esse som dia e noite até que o poço chegue ao fim.
Pedrinho, de ouvido atento,
murmurou:
— Que som lindo, vovó! Som que
contenta o coração...
— Sabe por quê? Porque cada golpe
significa um avançozinho para o fundo, para lá onde está o petróleo e,
portanto, um passo para a grande vitória. A beleza do som não está nele, está
em você, Pedrinho.
Acabado o almoço, Emília foi dar
farelo de pão ao peixinho que restava no tanque, e os outros correram à sonda.
Sentaram-se e ficaram até a tarde, ouvindo o pum-pã, vendo a haste
descer lentissimamente, como ponteiro de relógio, e assistindo às
manobras de colocar novas hastes e substituir o trépano.
E assim se passaram duas semanas. O
poço já estava a mais de cem metros de profundidade. Certo dia Mister Kalamazoo
examinou, conjuntamente com o geólogo-químico, a lama saída do poço e ambos
assentaram em qualquer coisa. Em seguida o americano deu uma ordem. O
maquinista parou a máquina.
— Que há? — perguntou Pedrinho ao
Visconde.
O Visconde respondeu, depois de uma
consulta a Quindim:
— Eles vão mudar de sistema. Acham
que o terreno está ótimo para ser perfurado com a rotativa.
— Bravos! — exclamou Pedrinho, que
já se sentia cansado com o monótono de até ali. — Novidade! Venham novidades!
Para passar dum sistema a outro
foram necessárias muitas manobras; tiraram-se umas peças e colocaram-se outras;
por fim tudo ficou pronto. Pedrinho prestava toda a atenção. O que mais
estranhou foi que a broca, arrumada em substituição do trépano, não era broca;
não passava dum pedaço de cano de aço, aí da espessura de menos de dois
centímetros, sem corte, sem dentes, sem nada.
O menino ficou intrigado. Se não
tinha dentes, como que aquilo, rodando no fundo do poço, conseguia brocar a
rocha?
Tudo arrumado, a broca rotativa
desceu ao fundo do poço e foi posta em movimento. Começou a girar sobre si
mesma. Um silêncio. Acabara-se o pum-pã do trépano. A haste acima da
boca do poço, girando, mostrava que a broca lá embaixo também girava. E como a
haste descia mais depressa do que no sistema de trépano, Pedrinho viu que
Mister Kalamazoo acertara com a mudança.
— Mas como desce? Como a broca
perfura? — pensava ele consigo. — Se é um simples cano de aço sem dentes, sem
corte, sem nada, como podia corroer a rocha? Mistério. Não conseguindo por si
mesmo resolver o enigma, apelou para o Visconde.
— É o seguinte — explicou o
sabuguinho científico:
— Mister Kalamazoo, quando a broca
vai começar a trabalhar, despeja no fundo do poço um punhado de aço granulado.
— Que aço granulado é esse?
— Uns carocinhos dum aço duríssimo,
assim do tamanho de chumbo de caçar paca. A broca vai comprimindo esse aço
granulado contra a rocha e a esfarela.
— Ahn! Isso sim! — exclamou o menino
com o rosto iluminado. — Eu até já estava com dor de cabeça de tanto parafusar
no assunto. Aço granulado, sim...
E foi ao depósito de materiais em
procura do tal aço. Encontrou um caixão cheio. Examinou aqueles grãozinhos,
apertou um nos dentes para verificar se de fato não era chumbo e com um punhado
no bolso correu para o mostrar a Dona Benta, pensando consigo: "Ela vai
ficar ainda mais boba do que eu."
De fato Dona Benta ficou boba, não
muito, porque era filósofa, mas meio boba.
— Veja só! — disse ela. — Com estas
coisinhas de nada conseguem-se efeitos tão grandes. Realmente, a aparência é de
chumbo de caça.
Pedrinho também mostrou o aço
granulado a tia Nastácia, na cozinha. Mas foi inútil. A negra riu-se.
— Isto é chumbo de caçador, menino.
Não está vendo?
Para tia Nastácia tudo quanto era
metálico e redondinho havia de ser chumbo de caça e pronto. O menino tentou
convencê-la.
— Chumbo é mole, boba, você bem sabe
disso. E estes carocinhos a gente pode martelar com toda a força que não
achatam, quer ver? — e trouxe o martelo e bateu neles com tanta força que um
ficou encravado na cabeça do martelo.
— Convenceu-se? — exclamou Pedrinho
vitorioso. Mas a negra, que era teimosa, veio com uma das suas.
— Isso só quer dizer que é chumbo
duro — disse ela. — Não pense que me tapeia, não. Se é de "meta" e redondinho, está claro que é chumbo — isso desde que Nosso
Senhor fez o mundo. Esta negra é velha, mas não é boba, não.
Pedrinho contou o caso a Dona Benta,
achando que só à força de trépano seria possível abrir aquela cabeça dura.
O químico-geólogo era um moço muito
distinto, parecido com o Clark Gable. Vinha sempre jantar com Dona Benta, com a
qual conversava durante horas, em inglês. Chamava-se Mr. Champignon, filho de
francês e americana. Numa dessas prosas, Dona Benta perguntou:
— Meu caro Mr. Champignon, o poço já
está a 300 metros e nada ainda de óleo. A que profundidade supõe que poderemos
encontrar qualquer coisa?
— Meus cálculos — respondeu o
químico — são para 600 metros, isso com base nos estudos comparativos que fiz
entre estes terrenos e os do Texas, onde trabalhei muito tempo. Mas o Visconde
calcula em mais — calcula em 800 metros.
O fato de aquele cientista americano
citar com tanta seriedade a opinião do Visconde fez Dona Benta sorrir.
— Aqui entre nós, Mr. Champignon —
disse ela em seguida — acha que o Visconde seja realmente um sábio de verdade?
Não tem qualquer dúvida sobre a ciencinha dele?
O químico-geólogo possuía a alma
pura, dessas onde os sentimentos invejosos não entram. Respondeu com o coração
nas mãos:
— Acho, sim, minha senhora. Acho que
o Senhor Visconde de Sabugosa do Poço Fundo (que é como a Senhorita Emília me
disse que ele se chama), é na realidade um grande sábio. E isso me assombra
extraordinariamente, porque, afinal de contas, não passa dum sabugo. Logo que
aqui cheguei meu queixo caiu; primeiro, ao ver um sabugo vivente; depois, ao
verificar que era falante; e por fim, ao reconhecer nele um sábio — mas sábio
de verdade, desses que descobrem coisas e mudam as diretrizes da civilização.
— Será possível, Mr. Champignon?
— Perfeitamente, minha senhora. Já
escrevi a uma sociedade científica da América sobre o estranho fenômeno. Mandei
um memorial sobre o Visconde. Estou convencido, entretanto, de que ninguém me
levará a sério — e não me queixo. Eu faria o mesmo. Se me falassem dum sabugo
assim, eu não acreditaria. Mas vi. Estou vendo, e sou forçado a concordar com
Shakespeare quando disse que há na terra e no céu mais coisas que o supõe a
nossa vã filosofia. O Visconde, minha senhora, ainda há de assombrar o mundo —
quando o mundo puser de lado a incredulidade e prestar atenção nele.
Dona Benta ficou pensativa. Que
mistério, a Natureza! E como ainda está atrasada a ciência dos homens! O que
ela observava naquele sítio também punha-a atrapalhada, com as ideias zonzas.
Tudo coisas que só vendo. Contadas lá fora ninguém acreditaria. O fenômeno
emiliano, por exemplo.
Emília nascera simples boneca de
pano, morta, boba, muda como todas as bonecas. Mas misteriosamente se foi transformando em gentinha. Todos ainda a tratavam de boneca,
por força do hábito apenas, porque na realidade Emília era gente pura, de
carne. Fazia tudo que as gentes fazem — comia com ótimo apetite, bebia,
pensava, tinha um coraçãozinho lá dentro, e alma e tudo. Como explicar este
mistério, esta transformação duma feia boneca de pano em gente?
A mesma coisa com o Visconde, um
reles sabugo que ela vira tia Nastácia apanhar ao pé do cocho da vaca. Pois não
estava agora transformado em sábio — e em sábio tão sabido que até tonteava o
pobre Mr. Champignon?
Dona Benta suspirou.
— Se este meu sítio não é um sonho —
disse de si para si — é então a coisa mais espantosa que o mundo ainda viu.
E beliscou-se para ver se estava
dormindo ou era sonho. Doeu. Logo, não era sonho.
CAPÍTULO
10: EM MARCHA
Aos 230 metros de profundidade a
perfuração alcançou um lençol de água, ou um "horizonte aquífero",
como dizia o Visconde. Assim que a água transbordou pela boca do cano-guia,
Pedrinho correu a prová-la. Estavam todos ansiosos por verem surgir água
salgada, sinal da formação marinha daqueles terrenos.
Não era salgada.
— Ainda é água de cima — explicou
Mr. Champignon, depois de analisá-la no pequeno laboratório montado perto da
sonda. — Tem a mesma composição das águas da superfície. Mas de repente daremos
em água que já não é de chuva, e sim fóssil — água retida no seio da terra há
milhares e milhares de anos.
No jantar daquele dia Pedrinho
repetiu a história da água fóssil, que muito interessou Dona Benta. Ao ouvir
falar em água salgada, Tia Nastácia bateu palmas.
— Que bom! Se é salgada, a gente
seca ela e faz sal — e fica livre das ladroeiras do Elias. Aquele centurião
cobra Crf 1,50 por um saquinho de sal que não dá para nada, o peste...
A água que saía do poço transbordava
numa vasão
de 200 litros por hora. Mr.
Kalamazoo, depois duma conferência com Mr. Champignon, resolveu fechá-la.
— Temos que entubar e cimentar —
disse ele. A operação do entubamento do poço divertiu muito os meninos, por ser
novidade. O poço fora perfurado até os 230 metros com um diâmetro de 35
centímetros, de modo que cabiam nele os tubos de 30 centímetros. E Mister
Kalamazoo mandou que os operários trouxessem para ali 46 tubos desse diâmetro,
tirados da pilha competente.
— Por que 46? — indagou Narizinho.
— Porque cada tubo tendo 5 metros,
46 tubos têm 230 metros — ou seja a profundidade do poço — respondeu o
Visconde.
Os tubos de revestimento, vindos da
América, achavam-se empilhados em vários montes, conforme o calibre. Havia o
monte dos de 35 centímetros de diâmetro; o monte dos de 26; o monte dos de 22;
o monte dos de 18 e finalmente o monte dos de 12 centímetros.
— Em cada um desses montes —
explicou o Visconde — há 1.500 metros de tubos, exceto no primeiro, em que só
há 400. Quer isso dizer que podemos realizar cinco entubações sucessivas, uma
dentro da outra.
— Que desperdício! — exclamou
Emília. — Se eu fosse dirigir o trabalho, faria a entubação dum modo muito mais
econômico.
— Como?
— Em vez de cada vez entubar de cima
para baixo, com uma entubação dentro da outra, eu entubava em continuação,
está entendendo?
Pedrinbo enrugou a testa, sinal de
que não estava entendendo.
— Sim — explicou Emília. — Fazia
como nos telescópio: uma entubação mais fina continuava do ponto em que a outra
parasse — e desenhou no chão a sua ideia.
— É mesmo! — exclamou Pedrinho
entusiasmado.
— Você fez uma grande descoberta,
Emília. Vamos propor a Mister Kalamazoo o sistema emiliano.
Mas a descoberta da Emília não
passava de descoberta de pólvora. Coisa velha, esse processo de entubar telescopicamente,
com grande economia de tubos.
— Mas tem um grave defeito — disse o
perfurador.
— Raro as águas ficam perfeitamente
fecha das, e por isso esse sistema, apesar de mais econômico, nunca é usado. O
outro, embora caro, garante o fechamento das águas dum modo absoluto.
Os operários trouxeram para ali os
canos de 30 e deram começo à entubação. Cada tubo era agarrado pelo moitão,
suspenso na vertical em cima do tubo-guia e enfiado nele até só ficar de fora
um palmo. Nesse palmo de fora os "gatos" agarravam, mantendo o tubo
em suspenso; e o moitão erguia um segundo tubo, que era atarrachado nele. Desse
modo desceram ao fundo do poço os 46 tubos, formando de alto a baixo uma coluna
contínua.
— Sim, senhor! — disse Narizinho. —
Serviço bem
feito. Mas o que mais admiro é o
moitão.
Para ele não há peso. Ergue tudo no
ar com a maior facilidade. Que grande invenção!
— Realmente — concordou o Visconde.
— Esse meio inventado pelo homem de multiplicar a força torna possível os
maiores prodígios. Até locomotivas gigantescas são levantadas no ar como se
fossem de paina, por meio de guindastes que não passam destes mesmo moitão
aperfeiçoado. Cada cano desses, sabe quanto pesa?
— Calculo em dez arrobas.
— Suba! Pesam 300 quilos — e no
entanto esse moitãozinho os ergue no ar como se fossem paus de lenha leve.
Depois de descidos os canos, Mister
Kalamazoo tratou da cimentação. Para isso fez o seguinte: Primeiro deixou a
coluna de canos suspensa um palmo acima do fundo do poço. Depois injetou dentro
dela uma boa quantidade de cimento bem mole, que, por meio da força da bomba,
foi comprimindo um tampão colocado sobre a massa de cimento. Foi comprimindo,
comprimindo, até que o cimento saiu todo da coluna de tubos, deu volta e se
espalhou por fora da coluna, enchendo o vão entre ela e as paredes do poço. E
como era cimento de secar em contato com a água, foi secando e obturando o
lençol de água.
Pronto. A água em cima parou de
vasar. Estava fechada. Podiam recomeçar a perfuração. Mas Mister Kalamazoo só
retomou o trabalho depois duma parada de três dias para que o cimento
endurecesse completamente.
Recomeçado o trabalho da perfuração
com as rotativas, Mister Kalamazoo notou que o avanço não estava rendendo nada.
Caiu a uma miséria de centímetros por dia, em vez de metros.
— Temos de voltar ao trépano — disse
o americano.
— Essa camada lá embaixo a rotativa
não fura.
— Como ele sabe que tem de voltar
aos trépanos?
— indagou Pedrinho.
— Saber propriamente ele não sabe —
explicou o Visconde. — Nos poços de exploração a gente nunca sabe de nada com
certeza. Imagina apenas, supõe.
— Que história de poço de
exploração é essa?
— Poço de exploração é o primeiro
que se abre numa zona. Corresponde portanto a um pulo no escuro. O perfurador
não possui dados para saber que terrenos vai atravessar, que águas e quantas
vai encontrar, etc. Tem que ir apalpando, experimentando. E é o que vai fazer o
trépano. Como qualquer coisa está impedindo que a broca roa as rochas, ele vai
experimentar o trépano — mas sem saber se dará resultado.
— E se não der?
— Terá então de recorrer a outro
meio qualquer, não sei. Talvez lance mão da broca de diamantes, que é a
tira-prosa das rochas muito duras. Depois de aberto o poço de exploração, tudo
fica imensamente facilitado. Surgem os poços de produção — ou poço de
exportação, como dizem os perfuradores na sua língua de acampamento.
— Facilitado por quê?
— Porque já sabem como é o terreno
lá no fundo,
quantos horizontes aquíferos há, a
que profundidades, e de que rochas são formadas as camadas, etc. Sabem tudo e,
portanto, adotam a sonda mais própria para o caso, e não erram, e não apalpam,
e fazem o trabalho com rapidez muitíssimo maior. O primeiro poço é sempre o
mais demorado e caro.
— O primeiro é o poço-osso — disse
Emília — os demais são os poços-canja, não é isso?
O Visconde não respondeu; não
gostava do modo de falar da Emília, que lhe parecia cafajéstico.
Colocado o trépano, recomeçou o pum-pã,
do qual os meninos já andavam com saudades. De nada valeu. A coisa não ia.
Mister Kalamazoo cocou a cabeça. Súbito plaf!, um desastre. De tanto
bater na misteriosa rocha, uma haste se enfraqueceu na emenda e quebrou.
Lá se foi para o fundo o trépano com todo o resto da coluna de hastes...
Os dois americanos conferenciaram
uns minutos sobre a situação. Só havia uma coisa a fazer: salvar as hastes e o
trépano caídos no poço.
— Vamos ter pescaria — cochichou o
Visconde.
— Bravos! — exclamou Emília batendo
palmas. — Pescaria é comigo — e que lindo se pescam um peixe fóssil de milhões
de anos atrás!
— Peixe fóssil, nada! Vão pescar o
trépano que caiu no poço, só isso.
Os meninos acompanharam com a maior
curiosidade a operação da pesca do trépano. Emília assanhadíssima e sempre com
esperança do peixe fóssil, não arredou pé dali. Nem almoçar foi nesse dia.
Primeiramente, Mister Kalamazoo estudou
com muito cuidado a situação. Mediu as hastes que ficaram fora do poço para
achar a profundidade exata em que se dera a ruptura: 189 metros.
— All right! — rosnou ele.
Quer dizer que há lá dentro 26 hastes.
— Que conta é essa? — indagou a
menina.
— Muito simples — respondeu o
Visconde. — Como cada haste tem 7 metros, ele dividiu 189 por 7 para saber
quantas hastes ficaram dentro do poço
— Mas então errou, porque 189
divididos por 7 dá 27 e não 26. Errou por uma.
— Essa que falta é a haste-guia e o
trépano. Ele fez o desconto.
Para realizar a pescaria, o
americano desceu um aparelho chamado "pescador", com garras dispostas
de modo a prender solidamente a ponta da haste quebrada logo que tocasse nela.
Esse aparelho foi fixado numa coluna de hastes e descido cuidadosamente. Quando
ia chegando aos 189 metros, Mister Kalamazoo mandou que o manobrista movesse a
máquina o mais devagar possível, e ficou com a mão apoiada na coluna
descendente para, por meio das menores vibrações, perceber o momento em que o
pescador tocasse na ponta da haste partida.
— Veja a atenção dele — observou o
Visconde. — Está de olhos fechados para não distrair-se com coisa nenhuma,
rodeado dos operários imóveis, todos guardando o maior silêncio. Como não pode
ver com os olhos da cara, Mister Kalamazoo está vendo com o tato, à moda dos
cegos. Tem que guiar-se pela vibração do metal.
E assim foi. A coluna de haste com o
pescador na ponta foi descendo, descendo em marcha lentíssima, até que o
americano ergueu bruscamente a mão — sinal ao manobrista para parar. A máquina
parou. Mister Kalamazoo abriu os olhos. Pelo tato sentira que o pescador tinha
tocado na ponta da haste quebrada.
Restava agora manobrar
delicadamente, erguendo e baixando a coluna de pesca, numa série de tentativas,
até que a ponta da haste quebrada entrasse dentro das garras do pescador. Sua
mão, pousada de leve, não saía da coluna descendente, para sentir o que se
passasse lá embaixo. Súbito:
— All right! — exclamou. —
Está presa.
E estava mesmo. A ponta da haste
quebrada fora segura pelas garras do pescador. A operação seguinte seria torcer
a coluna de pesca até que uma das hastes da coluna caída cedesse numa emenda
qualquer e se desatarraxasse.
As hastes são atarrachadas umas nas
outras por meio de luvas. Havia lá no fundo, portanto, 24 luvas, emendando 26
hastes. A que estivesse menos bem apertada, essa destorceria primeira.
— Mas os perfuradores ficam danados
— explicou o Visconde — quando em vez de destorcer-se uma das luvas bem
debaixo, destorce-se uma de cima.
— Por quê? — indagou Pedrinho.
— Porque destorcendo uma bem debaixo
eles sacam fora, duma vez, um bandão de bastes, ao passo que destorcendo em
cima só sai uma ou duas hastes, obrigando-os a muito mais trabalho.
Daquela vez os operadores tiveram
sorte. A luva que cedeu foi a que ligava a vigésima haste à vigésima primeira,
de modo que ao suspenderem a coluna de pesca saíram duma assentada 20 hastes.
Só ficaram no poço as 6 restantes.
Repetiram-se as manobras de pesca e
por fim as 6 hastes finais também saíram. Restava pescar a haste-guia com o
trépano na ponta, operação feita com um pescador de tipo diferente e que correu
sem novidades.
Foi um alívio quando o trépano
apareceu à boca do poço, com cara de cachorrinho que quebrou a panela (Emília).
Uma hora apenas tinha durado a pescaria. Tempo magnífico. Há pescas
dificílimas, que duram semanas, até meses. Mister Kalamazoo recolheu um
pedacinho de rocha encravado numa fenda do trépano. Achando-a esquisita, levou
Mr. Champignon.
A opinião do químico-geólogo não se
fez esperar.
— Diábase — disse ele depois do
exame. — Demos em cima duma camada de diábase.
O Visconde explicou aos meninos que
a tal diábase era uma rocha eruptiva muito dura de furar, que aparece em intrusões, por entre as camadas sedimentárias.
— Uma peste de dureza — disse ele. —
Mister Kalamazoo vai suar na ponta do nariz.
E suou. Apesar dos cálculos
otimistas de Mr. Champignon sobre a provável espessura da intrusão eruptivas,
Mister Kalamazoo levou um mês para perfurar dez metros — e não viu sinal de
fim. Estava com medo que a intrusão se prolongasse por cem ou duzentos metros,
o que seria uma tremenda maçada. Felizmente a hipótese não se realizou. Aos
doze metros a eruptiva chegava ao fim.
O processo usado para perfurar essa
rocha foi o da coroa de diamantes, isto é, uma broca com seis diamantes
encravados no aço, só com as pontinhas de fora. O diamante é o corpo mais duro
que existe; corta a todos os outros e não é cortado por nenhum.
Na perfuração rotativa a rocha é
roleteada, de modo que dentro do oco da broca vai ficando um cilindro tão bem
calibrado como se feito ao torno.
Depois da broca perfurar aí uns dois
metros, o oco da broca fica totalmente cheio por esse cilindro e é preciso
arrancá-lo fora. O modo de fazer isso é interessante. Por meio da bomba de
injeção o perfurador faz cair dentro da broca um punhado de pedregulho. As
pedrinhas entalam-se entre o cilindro da rocha e as paredes internas do tubo da
broca, amarrando o cilindro. Depois disso a máquina dá um puxão para cima. O
cilindro da rocha quebra-se na base e pode ser retirado do poço.
Com muita dificuldade os meninos
levaram para
casa um desses cilindros de diábase,
para o mostrar a Dona Benta.
— Veja que bonito, vovó! Um rolete
de diábase cortado à força de diamantes.
Dona Benta muito admirou aquela
rocha quase negra, de granulação finíssima, como a das lousas — e mandou que a
levassem para a cozinha.
— Tia Nastácia anda reclamando um
tamborete. Isso dá um tamborete de primeira ordem.
A negra assombrou-se de que lá no
fundo da terra existissem pedras com aquele formato que "até parecia
feito."
— Não existem não — explicou
Pedrinho. — Este cilindro foi feito — foi cortado num maciço de rocha por meio
da broca de diamantes.
A negra riu-se.
— Diamantes, eu sei disso! O Mister
achou essa pedra lá no fundo e agora está inventando essa história de cilindro
e diamantes. Tomara ele ter um diamante para botar no anel do dedo. Pensa que
sou boba?
A perfuração prosseguiu sem
novidades, com rotativa, até aos 500 metros, cota em que, subitamente, irrompeu
nova água à boca do poço. Mister Kalamazoo provou-a, com uma careta.
— Salt water! — exclamou. —
Água salgada!
Era um grande acontecimento.Os
meninos correram a provar e também fizeram caretas. No maior assanhamento
recolheram numa lata vários litros e foram para casa a fim de assombrar Dona
Benta.
— Água salgada, vovó! — gritou
Pedrinho da porta.
— Água fóssil. Água que esteve presa
no fundo da terra alguns milhões de anos. Prove.
Dona Benta provou, com a mesma
careta de Mister Kalamazoo.
— Venha ver, Nastácia!
A negra apareceu, de colher de pau
na mão.
— Água salgada, veja! Do poço. Água
fóssil — atropelou Narizinho — fazendo a negra provar.
— Chi! Salmoura pura — disse ela
careteando também. — Que seria o malvado que despejou sal no poço? Tão caro —
mil e quinhentos o saquinho — e gente desperdiçada estragando sal para salgar
água de peixe podre...
Custou convencê-la de que era uma
salmoura natural que vertia do poço em grande quantidade. Isso a deixou
radiante.
— Ora graças! A gente secando no
fogo uma salmoura dessas fica sal no fundo — sal igualzinho àquele que a gente
compra. Podemos secar bastante água desse poço e fazer um monte de sal para
cozinhar um mês inteiro — e pelo menos nesse mês a gente não engorda a barriga
daquele turco ladrão. Mil e quinhentos por um saquinho de nada, Sinhá. Onde já
se viu sal pelo preço que o turco está vendendo? Vá ser ladrão na terra dele,
credo!...
Pedrinho arredou as panelas do fogão
e pôs ao fogo o tacho de fazer marmelada, com a salmoura fóssil dentro, e ficou
ali até que toda a água se evaporasse e uma camadinha
de sal aparecesse no fundo. A negra dava risadas de gosto, à lembrança da peça
que iriam pregar no Elias Turco.
O jantar daquela noite (saiu muito
atrasado o jantar) foi temperado com o sal pré-histórico do Caraminguá nº 1 —
um sal enterrado havia milhões de anos e agora posto de novo em circulação
graças à iniciativa dos meninos petroleiros.
Emília levou para a mesa um pires
com uma pitada. Volta e meia punha a ponta do dedinho na língua e depois no sal
— e na língua outra vez, fazendo uma careta de gosto.
— Isso é que é sal! — dizia. — Pena
não terem também pescado um peixe fóssil — dos que moravam nessa água salgada
no tempo em que ela foi mar. Teríamos então um quitute completo, tirado do
guarda-comida subterrâneo do globo terráqueo.
— Seria perigoso — advertiu
Pedrinho.
— Por quê?
— O Visconde fala dum peixe de nome
anfioxo, que na opinião dele foi um dos antepassados do homem. Sendo assim,
você correria o risco de comer um seu tatatatatataravô fóssil...
— Mas eu sou boneca — disse Emília.
— Não pertenço à raça humana.
— Morda aqui! — exclamou o menino
espichando o dedo. — Você é tão gente como eu. É gentíssima até. Essa história
de boneca, Emília, ninguém mais engole...
CAPÍTULO
11: PETRÓLEO, AFINAL!
Depois dos 700 metros os meninos
notaram que o perfurador e o químico-geólogo vinham prestando muita atenção aos
testemunhos extraídos do poço. Eles chamavam testemunhos aos tais cilindros de
rocha obtidos por meio da perfuração rotativa. Num galpão armado à esquerda da
sonda esses testemunhos iam sendo dispostos uns em cima dos outros, formando
altas colunas, com papeletas indicativas das profundidades. Desse modo ficava
perfeitamente visível a constituição do subsolo daquela zona.
Pedrinho aproveitou-se da vantagem
para desenhar em várias folhas de papel-cartão emendadas o Corte Geológico
dos Terrenos de Vovó, de acordo com as indicações de Mr.
Champignon. Marcava no papel, com riscos horizontais, as camadas atravessadas,
indicando a espessura de cada uma e o material de que eram compostas. Esse Corte
Geológico foi pregado na parede da sala de jantar, em diversas secções,
ocupando-a toda.
Certo dia, ao extrair um testemunho,
o rosto de Mister Kalamazoo iluminou-se. Era um cilindro de arenito um tanto
diverso dos anteriores na cor e também mais poroso.
O americano chamou o químico-geológo e por algum tempo conferenciaram, com
muitos exames e cheiramentos do cilindro. Mr. Champignon levou um pedaço para o
laboratório. Quando voltou tinha a cara risonha.
— Sim — disse ele. — É um arenito
gasífero, sinal evidente de que estamos bem perto do petróleo.
Disseram isso em inglês, que o
rinoceronte imediatamente traduziu para o Visconde e este correu a contar aos
meninos.
— A broca está perfurando uma camada
de arenito poroso gasífero, isto é, impregnado de gás de petróleo. Quer dizer
que estamos perto dum horizonte petrolífero.
A alegria foi imensa. Houve hurras e
pinotes. Pedrinho foi correndo dar a boa notícia a Dona Benta.
— Gás, vovó! Acaba de sair um
arenito poroso impregnado de gás — de gás de petróleo! Ora, onde há fumo, há
fogo. Logo, se temos gás de petróleo, então é que o petróleo está perto. Um não
anda sem o outro.
— A que profundidade, meu filho? —
Setecentos e cinquenta metros.
— Então o nosso viscondinho vai ganhar
de Mr. Champignon, pois previu o petróleo a 800 metros. É um danado...
Dada a boa notícia, Pedrinho voltou
para a sonda na volada, de medo que o petróleo jorrasse na sua ausência. Mas
não jorrou. A perfuração ainda prosseguiu por mais uns trinta metros sem
alcançar o petróleo; mas cada novo testemunho que saía vinha com mais
evidências dele. O
arenito poroso já não era gasífero e
sim gordurento, a ponto de sujar as mãos de quem o pegava. Destilando um pouco
desse arenito, Mr Champignon obteve um frasco dum óleo pardo-esverdeado, que
classificou de excelente petróleo parafinoso — um dos melhores tipos que
existem.
Depois dessa prova os dois
americanos conferenciaram animadamente. Mr. Champignon era de parecer que se
suspendesse o trabalho da perfuração e se esvaziasse o poço. Calculou que a
coluna de água lamacenta que enchia o poço estava exercendo uma pressão de 9U
atmosferas, o bastante para impedir que o petróleo viesse à tona, caso já
tivessem penetrado num horizonte petrolífero dos não muito grandes. Mas Mister
Kalamazoo, que com a sua longa prática de poços adivinhava as coisas, resolveu
perfurar um pouco mais, e o poço no dia seguinte chegou aos 798 metros.
— Agora, sim — disse ele, vendo a
boca do cano-guia referver de borbulhas de gás ascendente. — Podemos esvaziar o
poço, depois de colocado o blowout preventer,
Blowout preventer não passa do nome inglês do registro ou torneirão que
se coloca na boca do poço para impedir que o petróleo jorre e inunde tudo.
Pronuncia-se blôáut priventer.
Um fato daquela importância
precisava ser sabido lá em cima — e Pedrinho despachou Emília na carreira com
recado a Dona Benta.
Emília saiu voando.
— Dona Benta! — gritou ela ao
chegar. — Já vão botar no poço o blowout preventer e Pedrinho quer que a senhora corra à sonda quanto antes por que "a coisa
está por um fio."
Dona Benta, ignorante do que fosse blowout
preventer, fez cara de interrogação muda. Emília explicou tratar-se
do registro, do torneirão que impede que o petróleo faça asneiras.
Percebendo que se tratava de negócio
sério, Dona Benta chamou tia Nastácia e botou um xalinho ao ombro, depois de
caçoar com Emília dizendo que ela, às vezes, bem precisava dum blowoutezinho
quando asneirava demais. Em seguida murmurou, voltando-se para a negra:
— Será possível que estes diabinhos
tirem mesmo petróleo?
— E Sinhá ainda duvida? — respondeu
a preta. — Que é que não fazem? Depois que deram comigo na lua, cozinhando para
S. Jorge, com aquele dragão horrendo no quintal, eu não duvido de mais nada
nesta vida...
Enquanto caminhavam, uma grande
agitação refervia na sonda. Por descuido no embarque das peças, na América,
houve troca de caixões, e em vez de vir a caixa com as peças do blowout
preventer, veio um com... dois aparelhos de rádio!
— Sabotagem! — gritou Pedrinho. — Juro
como foi sabotagem daqueles trustes malvados. E agora Visconde?
O Visconde não sabia o que
responder. Era um caso novo, nunca discutido nos tratados de petróleo que ele
andava lendo. E o pior de tudo foi que justamente naquele instante um ronco
subterrâneo se fez ouvir, e logo depois as borbulhas do poço pipocavam com
redobrada violência.
— Estamos perdidos! — gritou Mister
Kalamazoo.
— O petróleo vai sair e não temos
meio de fechar o poço — e no seu desespero deu murros na cabeça e puxões nos
cabelos louríssimos.
— Que há? — perguntou Dona Benta,
que vinha chegando com a preta e a Emília. — Será que Mister Kalamazoo
enlouqueceu?
— É que não há blowout preventer!
— respondeu Pedrinho muito aflito. — Sabotaram a remessa de materiais, mandando
numa caixa, em vez do blowout preventer, dois aparelhos de rádio,
imagine...
— E agora?
— Agora eles não sabem o que fazer.
O gás está borbulhando com força cada vez maior. A coluna de água do poço, que
pesa 90 atmosferas, está resistindo por enquanto. Mas quando não puder mais
resistir ao impulso do petróleo? Aí então vai tudo pelos ares e o petróleo
derrama-se por estes campos, e enche o Caraminguá e inunda tudo e a senhora
leva a breca, tal qual a companhia americana que faliu por ter tirado petróleo
demais...
— Nossa senhora! — exclamou Dona
Benta pondo as mãos. — Que vai ser de mim, Santo Deus?
— O pior — continuou Pedrinho — é
que Mister Kalamazoo perdeu completamente a cabeça. Olhe o desespero dele...
— A cabeça não digo — observou
Emília — mas os cabelos vai perder todos, se continua a arrancá-los assim...
Nesse momento o estrondo subterrâneo
roncou mais forte.
— Chi! — exclamou tia Nastácia. —
Trovoada no fundo da terra é coisa que nunca vi. Vai chover grosso às
avessas...
A situação era verdadeiramente
trágica. Mr. Champignon deixou-se cair sentado sobre um trépano, com a cabeça
entre as mãos. Estava arrasado. Mister Kalamazoo andava de um lado para outro a
ameaçar os céus com os punhos fechados e a dizer nomes que deviam ser feíssimos
— e felizmente só Quindim entendia. Vendo os chefes naquele estado de
desespero, os operários olhavam--se atônitos, sem saberem o que fazer. Dona
Benta, tomada de medo, caiu sentada, com aquela sua célebre sufocação cardíaca
dos momentos perigosos. E os roncos subterrâneos cada vez mais fortes... E a
boca do poço cada vez mais borbulhante de gás...
No meio de tanto horror, só Emília e
o Visconde conservavam-se absolutamente donos de si. Foram conferenciar com
Quindim. Conferência rápida. Quindim aprovou a ideia de Emília e levantou-se do
chão onde estava deitado. Pesadamente encaminhou-se para a sonda, seguido do
Visconde, enquanto Emília voava ao escritório.
Ao chegar à sonda Quindim entrou e,
com enorme assombro de todos, plantou-se sentado em cima do cano-guia!
Apesar do seu desespero, Mister
Kalamazoo não pôde deixar de rir-se. Em toda a sua longa vida de perfurador,
jamais tivera ensejo de ver um blowout preventer daquela marca —
blowout paquidérmico!
— Pronto! Está tudo salvo! — gritou
o Visconde. — A coluna d'água do poço faz sobre o petróleo que quer subir um
peso de 90 atmosferas. Quindim pesará outras tantas atmosferas — e com todas
essas atmosferas somadas juro que escoramos o petróleo até que o blowout
chegue.
Estas últimas palavras fizeram
Mister Kalamazoo arregalar os olhos.
— Até que o blowout chegue,
Visconde? — repetiu ele. — Que história é essa?
— Sim, até que chegue da América.
Emília foi ao escritório fazer a encomenda. Basta que Quindim escore o petróleo
uns vinte minutos e teremos aqui o blowout preventer.
O americano ficou na mesma.
— Sim — continuou o Visconde. —
Emília vai pedir o blowoout com a maior urgência. Já pediu. Olhe a
carinha dela...
Emília vinha voltando, muito
lampeira, de mãos à cintura.
— Pronto! — exclamou ao chegar. —
Pedi à fábrica que mandassem imediatamente o blowout esquecido e
passei-lhes uma descompostura tremenda. Em quinze minutos teremos o torneirão
aqui.
O absurdo era tamanho que Mister
Kalamazoo sentiu ímpetos de amassar Emília com um soco.
— Temos o blowout aqui, como,
boneca duma figa? — berrou ele.
— Figa é o seu nariz, sabe? —
respondeu ela abespinhada. — Pedi o blowout à fábrica sim, com ordem para que o mandassem com a maior rapidez pelo "Faz-de-Conta
nº 4", que é o avião mais veloz da minha empresa.
Mister Kalamazoo suspirou e foi
sentar-se no trépano ao lado de Mr. Champignon. E também enterrou a cabeça
entre as mãos, no maior desnorteamento da sua vida.
Minutos se passaram. Quindim, firme
em cima do poço, somava o seu peso ao peso da coluna d'água e ambos iam
escorando o petróleo, o qual roncava lá no fundo cada vez mais furioso por
sair. Súbito, um zunido distante atraiu a atenção de todos. Um ponto negro
apareceu no céu azul. Era o avião da Emília. Chegou. Posou. O piloto fez sinal
aos operários e gritou-lhes:
— Trago aqui uma grande caixa,
pesadíssima. Venham retirá-la.
Os operários foram e arrastaram a
caixa até à sonda. Abriram-na.
— Mais rádio? — gritou Pedrinho
aproximando-se. Não. Dessa vez a encomenda viera certa: um blowout preventer
novinho.
Quando Mister Kalamazoo viu que era
mesmo um blowout, seu assombro não teve limites. Ficou completamente
bobo. Impossível compreender o milagre. Por fim acordou do estuporamento e
correu a colocar a peça chegada. Mas era impossível atarrachá-la no cano-guia,
com o rinoceronte sentado em cima — e tirar Quindim dali era soltar o petróleo.
Que fazer?
— I will take a chance —
murmurou ele, como quem diz: Vou arriscar. Deu ordem aos operários para que
limpassem e engraxassem a rosca do cano-guia e a do blowout, e depois de
tudo arrumado do melhor jeito pediu a Quindim que pulasse fora. Quindim
pulou e os operários, sem perda de um segundo, ergueram a pesada peça e
puseram-se a atarrachá-la no cano-guia. Mas com a saída de Quindim a coluna
d'água do poço não escorou o petróleo e começou a jorrar a metros de altura,
enlameando tudo.
— Hurry up! Hurry up! era só
o que sabia dizer Mister Kalamazoo. Depressa! Depressa! E nunca homem nenhum
foi tão bem obedecido. Os operários trabalharam como relâmpagos de pernas e
braços. Num instantinho o blowout foi atarrachado.
E não sem tempo. Assim que os homens
deram a última volta na rosca tiveram de fugir dali aos pinotes, porque o
petróleo ganhara grande impulso e arremessara para o ar, com enorme violência,
o resto da coluna d'água. Uma chuva de lama barreou a torre de alto a baixo,
espirrando até em Dona Benta e tia Nastácia, distantes dali. Em seguida o jorro
de lama avermelhada foi substituído por um jorro negro, tão violento que
arrebatou a parte superior da torre.
Todos correram para longe, numa
gritaria.
— Petróleo! Petróleo!
Era o petróleo, afinal! Era o jorro
de petróleo salvador do Brasil, que se levantava numa coluna magnífica até
quarenta metros para o céu. Lá fazia uma curva de repuxo na direção do vento e
caía sob forma de
chuveiro forte. E como aconteceu que
Dona Benta, tia Nastácia e os meninos estivessem na direção do vento, foram
colhidos pela chuva de óleo, ficando completamente empapados...
Emília e o Visconde avançaram, por
dentro da chuva negra, até à roda do blowout, que torceram a fim de
fechar o registro. Foram fechando-o e, à medida que o registro se fechava, o
repuxo de petróleo foi diminuindo, baixando, até que cessou de todo. O
Caraminguá nº 1, o primeiro poço de petróleo no Brasil, estava controlado —
isto é, de freio nos dentes, humilde como um cavalo que abaixa a crista diante
da força do peão!
Um hurra tremendo ecoou. Os
operários batiam palmas e gritavam, saudando o maravilhoso acontecimento.
Tinham sido os obreiros do Poço Número 1 — o poço que iria mudar os destinos de
um país, arrancando-o da sua eterna anemia econômica para lançá-lo na larga
Avenida do Progresso Sem Fim.
— Viva Mister Kalamazoo! — gritou
Pedrinho.
— Viva Quindim o blowout de
carne! — gritou Emília.
— Viva o Visconde, o grande geólogo!
— gritou Narizinho.
Os operários, reunidos a pouca
distância, acompanhavam as aclamações dos meninos.
— Vocês esqueceram do pobre Mr.
Champignon — lembrou Dona Benta.
— Viva Mr. Champignon! — gritou
Narizinho.
O químico-geólogo, lá da porta do
laboratório, agradeceu a homenagem com uma curvatura de cabeça.
— Tudo está ótimo — disse Dona
Benta. — Mas toca a voltar para casa correndo. Estamos todos que nem pavios de
lampião de querosene...
Realmente assim era. Ninguém
escapara ao banho de óleo negro. O pobre Visconde, então, que era sabugo e
portanto mais absorvente que os de carne, esse ficou empapado até à medula.
— Nós ainda nos arranjamos com um
bom banho — disse Dona Benta. — Mas o Visconde, não sei. Só se tia Nastácia o
ferver um dia inteiro no tacho de fazer marmelada. Como há de ser, Nastácia?
— Deixe ele comigo que dou jeito,
Sinhá — respondeu a negra, pegando no Visconde e examinando-o.
— Chi! Está que nem uma esponja. O
jeito que vejo é um só: mudar o corpinho dele — botar um sabugo novo...
Em casa Nastácia pôs a ferver várias
tachadas e latas de água e foi buscar seis pães de sabão na venda do turco.
Nunca o pessoal do sítio se ensaboou com tanta fúria. Até cacos de telha
entraram em cena. Mas o petróleo do Caraminguá nº 1 era terrível. Entranhava
tão fundo que apesar das lavagens todos ficaram com um cheirinho de querosene
durante três dias.
As roupas foram empilhadas num monte
no quintal para uma fervura de horas. (Mas mesmo depois da fervura ficaram por
muito tempo com um vago "perfumezinho" a petróleo.)
Lá na sonda os americanos, os operários
e o
rinoceronte fizeram o mesmo.
Lançaram-se no ribeirão para uma lavagem a fundo...
Emília, no seu banheirinho, estava a
esfregar-se furiosamente com um caco de telha. De repente disse:
— O petróleo pode ser uma excelente
coisa, pode ser a riqueza das nações, pode ser ouro líquido ou o que quiserem.
Mas no corpo da gente é, com perdão da palavra, uma grandissíssima porcaria...
Dessa vez não houve quem não
concordasse.
CAPÍTULO 12: O ABALO DO PAÍS
A abertura do Caraminguá nº 1, com uma
vasão de barris por dia, começou a espalhar-se fulminantemente pelo País
inteiro. Os jornais deram a notícia, com base numa comunicação mandada por
Pedrinho; mas como essas notícias sensacionais são muitas vezes peta, todos se
mantiveram na dúvida. Um deles publicou o comunicado de Pedrinho com este
título: Si non é vero... Outro escreveu que quando a esmola é demais
o santo desconfia.
Pedrinho danou e mandou segundo
comunicado, convidando os incrédulos a virem ver. Desde que se tratava dum
fato, nada mais simples do que averiguá-lo. Que viessem ver, cheirar, provar o
magnífico petróleo parafinoso do poço aberto no sítio de Dona Benta.
Esse novo comunicado de Pedrinho,
que ele assinara com o seu futuro nome de gente grande, Pedro Encerrabodes de
Oliveira, causou sensação, apesar da esquisitice do sobrenome Encerrabodes, que
levava o povo a rir-se e pilheriar. Quem era esse tal Encerrabodes? Ninguém
sabia. Só as crianças do Brasil sabiam que Pedro Encerrabodes de Oliveira não
podia ser outro senão Pedrinho, o neto de Dona Benta Encerrabodes de Oliveira.
— É Pedrinho! É Pedrinho! —
afirmaram as crianças de todo o país. — É o neto de Dona Benta! Ele disse que
ia tirar petróleo e tirou mesmo!...
Mas as gentes grandes, marmanjões
pretensiosos, riram-se das crianças, dizendo: "Há de ser então uma das
muitas maluquices do tal sítio de Dona Benta, que o tal Lobato vive contando.
Brincadeira."
Certo jornal do Rio de Janeiro,
porém, criou coragem e mandou um seu repórter investigar o que havia. O
repórter foi recebido por Dona Benta.
— Minha senhora — disse ele —
circulam boatos de que foi aberto aqui em suas terras um poço de petróleo. Mas
ninguém lá fora acredita nisso; primeiro, porque está oficialmente assentado
que o Brasil não tem petróleo; segundo, porque o petróleo surgiu justamente
aqui no seu sítio, que tem fama de maluco; terceiro, porque a comunicação aos
jornais foi feita por um Senhor Encerrabodes que ninguém nunca viu mais gordo.
Apesar disso, o meu jornal encarregou-me de chegar até aqui para ver o que há.
Dona Benta desceu os óculos para a
ponta do nariz.
— Foi bom que viesse, meu senhor.
Por estranha que pareça a notícia, é a verdade pura. Meus netos meteram-se a
estudar geologia com o Visconde de Sabugosa e convenceram-se da existência do
petróleo aqui no sítio. E como são levados da breca, arranjaram sonda,
perfurador, operários especialistas e puseram-se a furar. Passaram meses nisso,
até que enfim o petróleo apareceu num
grande jato de 40 metros de altura, que nos deixou a todos como pintos pelados que
caem no melado.
O repórter refranziu a boca num
risinho de incredulidade. Evidentemente aquela velhota estava a mangar com ele,
ou então era uma caduca que não sabia o que dizia. E respondeu zombeteiro:
— Pois muito bem. Se saiu petróleo
em quantidade para um banho em todos da casa, eu também queria tomar meu
banhozinho de petróleo. É possível?
— Acho que sim — respondeu Dona
Benta. — Mas isso não é comigo. Vou chamar meu neto para que ele satisfaça o
seu desejo de banho.
E voltando-se para a cozinha:
— Nastácia, onde andam os meninos?
— Na sonda, Sinhá — respondeu a
preta. — Sinhá bem sabe que eles só aparecem por aqui quando a fome aperta.
— Chame Pedrinho — ordenou Dona
Benta. Tia Nastácia foi à janela e deu um assobio agudo. Momentos depois o
menino aparecia na varanda.
— Que há, vovó?
— Há aqui este senhor, repórter do
"Correio da Manhã", que veio ver se é possível tomar um banho de
petróleo. Diz que lá fora ninguém acredita na descoberta do petróleo aqui no
sítio, nem sabem quem é o tal Encerrabodes que mandou a comunicação aos
jornais.
Pedrinho mediu o repórter de alto a
baixo.
— Pedro Encerrabodes, neto aqui de
vovó, sou eu, o autor da notícia aos jornais. Quanto ao banho que o senhor deseja, basta que me siga. Vai ser prontamente banhado.
Aquele modo seguro de falar encabulou o repórter, cujo risinho de ironia ficou
um tanto desmanchado; e o mais que pôde dizer foi: "Pois estou às suas
ordens."
Pedrinho conduziu-o à sonda. Assim
que viu aquele acampamento petrolífero, com uma torre aprumada para o céu, e
máquinas de todos os lados, e oficinas e casas de operários, o repórter
amarelou. Seria verdade? Um americano grandalhão estava a conversar com outro
sujeito também com cara de americano. Pedrinho apresentou-lhes o repórter.
— Mister Kalamazoo, permita-me que
lhe apresente aqui o repórter do "Correio da Manhã." Ele veio de
longe para tomar um banho de petróleo, porque é dos tais São Tomes do ver para
crer.
— How do you do sir? — rosnou
o americano, moendo a mão do repórter com um shakehand de quebrar
diábase.
— E aqui temos Mr. Champignon, nosso
químico-geólogo — continuou Pedrinho, indicando o outro americano.
— How are you? — disse este,
acabando de moer a mão do jornalista com outro shakehand de 20
atmosferas.
O repórter suava frio sacudindo a
mão no ar. Mesmo assim arregalou os olhos quando Pedrinho fez a apresentação do
Visconde de Sabugosa e do Quindim. Seu espanto foi imenso, ao dar com o
rinoceronte. Quis fugir. Quis sacar do revólver para abater aquele monstro
africano que o olhava com uma estranha expressão de bondade.
Vendo, porém, que o paquiderme não
se movia, aquietou-se, com o suor a pingar-lhe da testa em gotas graúdas.
— Pois é — disse Pedrinho. — São
estes os homens que nos abriram o poço do Caraminguá nº 1, o qual está
controlado por um possante blowout preventer e tem capacidade para 500
barris por dia.
Narizinho e Emília aproximaram-se.
— Esta aqui é minha prima — disse o
menino — e esta outra é a celebérrima Emília de Rabicó. Nós apenas
"sapeamos" o serviço do petróleo. Quem tudo dirige é ali Mister
Kalamazoo, auxiliado por Mr. Champignon. No começo tivemos receio de que nos
sabotassem o poço, mas hoje gosto de confessar em público que as nossas
desconfianças não tinham fundamento. Ponho a minha mão no fogo pela lealdade
desses dois homens e de todos os operários que eles trouxeram.
O repórter nem sabia o que dizer, de
tanto que tudo ali lhe atrapalhava as ideias. Seria possível, então? Seria
possível que o comunicado dos jornais representasse a verdade pura?
— Senhor Encerrabodes — disse ele —
confesso o meu desnorteamento absoluto. Vim cá certo de não ver coisa nenhuma,
pois a comunicação feita aos jornais tem todas as aparências duma engenhosa
mistificação. Mas este campo petrolífero esta sonda, estas máquinas, estes
homens louros, tudo isto me faz crer que pelo menos intenção de descobrir
petróleo existe aqui. Mas entre intenção de tirar petróleo e petróleo de
verdade vai uma grande distância. Eu só me daria por cabalmente convencido se visse, cheirasse, provasse o petróleo supostamente
produzido aqui.
— Nada mais fácil — disse Emília. —
Nós provamos tudo quanto afirmamos, embora o mundo se recuse a acreditar em
certas coisas, como, por exemplo, a nossa viagem ao céu. Há de crer que muita
gente ainda duvida disso, apesar de termos trazido de lá a prova — um anjinho
de asa quebrada! Com o petróleo, porém, a coisa muda. É só abrirmos a torneira
ali no blowout e pronto: está provado o petróleo.
O tom seguro daquela criaturinha,
que positivamente era uma boneca falante, tonteou o repórter. Novas gotas de
suor pingaram-lhe da testa. Chegou a duvidar de si, a pensar que estivesse
sonhando; e disfarçadamente beliscou a perna para ver se estava mesmo acordado.
Viu que estava e suspirou. Na verdade não compreendia nada de nada de tudo
aquilo.
— Pois muito bem — disse ele por
fim. — Mostrem-me o petróleo e estará tudo acabado.
Pedrinho cochichou qualquer coisa ao
ouvido do Visconde, o qual foi conferenciar com Quindim, o qual chamou Mister
Kalamazoo, trocando com ele várias palavras. All right — foi a resposta
do americano com um pisco para Pedrinho.
— Muito bem — murmurou este,
compreendendo a significação da piscadela. — O senhor repórter vai sentar-se
aqui por um momento, enquanto Mister Kalamazoo mexe no blowout. O blowout
é o registro que fecha o poço. Abrindo esse registro, o petróleo jorra.
Prepare-se,
pois, para assistir a um belíssimo
jorro de petróleo.
O pobre repórter, que nunca tinha
visto petróleo, sentou-se no ponto indicado pelo menino, justamente num lugar
de vento a favor, de modo que quando o petróleo jorrasse a chuva do repuxo
viria cair bem em cima dele. Não desconfiou de nada, nem desconfiou de o
deixarem ali sozinho e se passarem todos para o lado oposto.
Mister Kalamazoo dirigiu-se ao blowout
e torceu a manivela. Imediatamente um jorro potentíssimo de petróleo negro
elevou-se no ar a dezenas de metros de altura, abriu-se lá em cima em penacho e
desceu sob forma de chuva grossa bem sobre o ponto onde se achava sentado o
mísero repórter.
Que banho! O jornalista fugiu dali
com quantas pernas tinha, mas não escapou de ficar empapado até à medula dos
ossos. E quando parou a cinquenta metros de distância e olhou para trás, o que
viu foi o americano fechar o torneirão, pondo fim ao tremendo repuxo de óleo
negro.
Os meninos correram ao encontro do
homem petrolizado.
— Então? Está convencido? — indagou
Pedrinho. O repórter nem falar podia. O petróleo entrara-lhe pela boca, ouvidos
e nariz, causando-lhe um mal medonho. Cuspia, espirrava, tentava limpar a boca
— mas limpar como, se as mãos, o lenço, tudo não passava dum empapamento de
petróleo?
— Ele é capaz de morrer envenenado —
disse Mr. Champignon, e ordenou aos operários que o conduzissem ao ribeirão e o
lavassem a fundo. O pobre repórter foi levado ao rio, despido e ensaboado por
dez mãos calosas, ásperas como lixa. E como suas roupas ficassem inutilizadas e
nenhum dos homens da sonda lhe quisesse ceder um terno, o remédio foi
vestirem-no com uma saia e um velho casaco de Dona Benta, enquanto tia Nastácia
lhe fervia, secava e passava as roupas com que viera.
Teve de dormir no sítio, porque sua
roupa só ficaria pronta na manhã seguinte — além de que a brincadeira o deixara
completamente derrancado.
— Uf! — exclamava o mísero na
varanda. — Fui bem castigado da minha incredulidade, mas acho que abusaram de
mim. Não era necessário irem tão longe.
— Longe, meu caro? — disse Dona
Benta. — Mas não foi o senhor mesmo quem me disse, aqui nesta varanda, que
desejava um banho de petróleo? Pedrinho nada mais fez do que satisfazer o seu
pedido.
— Sim, mas eu estava caçoando. Disse
aquilo por brincadeira.
— E nós também lhe demos o banho de
petróleo por brincadeira — disse Emília. — Tudo brincadeira.
— É, mas quase me iam envenenando.
Como eu não esperasse a tal chuva de petróleo, deixei-me colher por ela
— e bebi, sim, bebi petróleo. Ugh!
Que gosto horrível! Tenho a impressão de que nunca mais me sairá da boca...
— Tout passe, tout casse, tout
lasse — murmurou Dona Benta, repetindo um verso de Vítor Hugo. — Tudo passa, meu senhor. Esse gosto de petróleo em sua boca
passará também. Sossegue.
Tia Nastácia deu-lhe um chá de losna
bem forte e arrumou-lhe uma boa cama no quarto de Pedrinho. O repórter
deitou-se cedo, não querendo nem que lhe falassem em jantar. Impossível comer
qualquer coisa com aquele horrível gosto na boca.
No dia seguinte amanheceu melhor, e
assim que tia Nastácia lhe levou as roupas fervidas, lavadas e passadas, ele
despiu-se da saia e do casaco de Dona Benta e envergou-as. E tratou de
raspar-se dali.
— Minha senhora — declarou ao
despedir-se. — A tragédia de ontem servirá para uma coisa: fazer que o Brasil
inteiro acredite no grande milagre realizado neste sítio. A descoberta do
petróleo representa um fato de significação mais alta do que podemos conceber.
Representa algo mais importante do que a própria independência do Brasil. No
dia 7 de setembro o Brasil proclamou a sua independência política, mas só agora
acaba de proclamar a sua independência econômica. Em que dia foi?
— O poço jorrou no dia 9 de agosto —
respondeu Narizinho.
— Pois o 9 de agosto vai ficar
imortalizado na história do nosso País. A República Argentina considera feriado
nacional o dia 19 de dezembro, data do aparecimento do petróleo em Comodoro
Rivadávia. Breve teremos aqui no Brasil o 9 de agosto transformado em data nacional,
ao lado do 7 de setembro. Este comemora a nossa
independência política; o 9 de agosto comemorará a nossa independência
econômica.
— Muito satisfeita fico de que assim
seja — disse Dona Benta. — Eu estou que não caibo em mim de contente, porque
foram meus netos os heróis da grande façanha. Começaram a coisa brincando e
tudo acabou a sério. Graças a eles, ao Visconde e ao Quindim, temos petróleo —
o Brasil tem petróleo e, portanto, o elemento básico para tornar-se uma nação
rica e poderosa. Pode escrever no seu jornal que não existe no mundo nenhuma
avó mais feliz do que eu.
— Nem mais rica! — berrou Emília. —
O poço está dando 500 barris por dia. A Cr$ 30,00, são 15 mil cruzeiros por
dia. Qual é a avó por esses mundos a fora que tem, ali na batata, 15 mil
cruzeiros por dia?
Os olhos do repórter brilharam.
Quinze mil cruzeiros por dia! Quatrocentos e cinquenta mil por mês! Cinco
milhões e quatrocentos mil por ano! Uma verdadeira mina. Ah, se ele pudesse
tirar uma casquinha... Se aquela velha se apaixonasse por ele...
Logo depois da partida do repórter
os jornais do Brasil inteiro puseram de lado as notícias de crimes americanos e
das mexericagens políticas para só tratar do petróleo. Petróleo! Petróleo! A
descoberta do petróleo no Brasil! Um poço de 500 barris por dia no sítio
de Dona Benta! A avó milionária! Cinco milhões e quatrocentos mil cruzeiros por
ano, só do primeiro poço! O banho de petróleo! A chuva de petróleo! Um sabugo
científico que é um formidável geólogo! Um rinoceronte que sabe inglês e não chifra gente! Mister Kalamazoo e Mister Champignon!
Essas notícias sensacionais
determinaram uma verdadeira romaria ao sítio. Automóveis e mais automóveis,
cheios de figurões, apareciam por lá, um atrás do outro. Engenheiros,
industriais, capitalistas, curiosos — não havia quem não viesse ver, cheirar,
provar o petróleo de Dona Benta.
Telegramas foram enviados para a
América do Norte. O Rockefeller mandou oferecer pelo sítio 5 milhões de
dólares.
— Não vendo por preço nenhum — foi a
resposta de Dona Benta. — De que me adianta uma bolada de 5 milhões de dólares?
No que empregar isso? Onde encontrar um sitiozinho como este, tão cheio de
árvores velhas, de recordações agradáveis — e tão rico em petróleo? Não, não e
não.
Na impossibilidade de adquirir o
maravilhoso sítio, os especuladores trataram de segurar as terras vizinhas. A
fazenda do Coronel Teodorico, um sapezinho sem valor nenhum, foi vendida por 10
milhões de cruzeiros. O Elias Turco cedeu o ponto da sua venda por 500 mil
cruzeiros — e lá se foi para a Turquia, com grande contentamento de tia
Nastácia. A negra nunca lhe perdoou o desaforo de pedir Cr$ 1,50 por um
saquinho de sal.
— Que vá furtar na terra dele — foi
o seu comentário quando soube da notícia.
Um sitiante de nome Chico Pirambóia,
caboclo opilado que mal tirava das suas terras (dez alqueires) o necessário para não morrer de fome, vendeu a propriedade por
230 mil cruzeiros — e ainda levou o capadinho de ceva e a cabra.
Organizaram-se logo companhias
petrolíferas para fazer estudos nas terras em redor do sítio de Dona Benta e
perfurar. A vila próxima, que era um vilarejo ordinaríssimo, com duas vendas
ainda piores que a do Elias Turco, a igrejinha muito pobre, um farmacêutico
caolho, dois curandeiros e um antigo coronel da guarda nacional, começou a
transformar-se com rapidez vertiginosa. O preço das casas e terrenos subiu a
galope. Casebres que antes do petróleo não alcançavam nem 800 cruzeiros, eram
vendidos por 30, 40, 50 mil cruzeiros. Casas novas, bonitas, começaram a
erguer-se nos terrenos vagos. Vinha gente de fora aos bandos — gente das
companhias de petróleo e aventureiros. Surgiram casas de sorvete, um cinema,
dois, três, dez bares. Depois, um cabaré com umas francesas roucas, onde às
vezes rebentavam brigas medonhas.
— Isso é que não está direito —
comentou tia Nastácia. — Nossa vila sempre foi uma coisa quietinha,
sossegadinha — agora está que nem aquela fita que eu vi uma vez, cheia de
homens com cintos cheios de balas, que bebem nos balcões e de repente sacam do
revólver e espatifam o lampião do forro e garram a moer gente com cada soco que
parece martelada. Credo! Eu até nem tenho mais coragem de chegar até lá.
Tia Nastácia em toda a sua vida, só
tinha assistido a uma fita de cinema. "Os Bandoleiros do Far West",
em
que havia tanto tiro em lampião, e
tantas lutas corpo-a-corpo e tantos murros de arrebentar cara, que ela nunca
mais quis saber de cinemas. "Credo!" — dizia lembrando-se da fita.
"Eu estava vendo a hora em que aqueles homões vinham de lá pra cima da
gente nas cadeiras, de tiro e soco, não deixando um vivo. Suei frio daquela
vez, mas nunca mais. Cruz, credo, canhoto..."
CAPÍTULO 13:
GRANDES MUDANÇAS NA VILA
Com o aparecimento do petróleo, a
conversa nos serões de Dona Benta tornou-se exclusivamente petrolífera. Quem
falava era sempre o Visconde, sabidinho como ele só. No dia imediato ao banho
do jornalista, sua dissertação foi sobre o modo de refinar o petróleo bruto.
— Porque o petróleo bruto — disse
ele — só serve para queimar. Mas se o refinarmos, obteremos uma porção de
produtos de muito valor, como a benzina, a gasolina, o querosene, o supergás, o
óleo combustível, o óleo lubrificante, as parafinas, as vaselinas, o asfalto, o
coque de petróleo e mais numerosos produtos de menor importância. Os petróleos
brutos variam muito. Uns são bastante ricos em produtos voláteis; outros não
dão produtos voláteis; outros só dão produtos voláteis, como o de Montechino,
na Itália, que rende 95 por cento de gasolina e querosene.
— Noventa e cinco por cento? —
admirou-se Pedrinho. — Então é quase todo ele gasolina e querosene...
— Exatamente. Já os petróleos
americanos, embora variem dum ponto para outro, dão em média 20 por cento de
gasolina, 38 por cento de querosene, 15 por cento de gás e 25 por cento de óleo combustível.
— Nesse caso, é inteirinho
aproveitável — advertiu o menino.
— Sim. O que se perde não passa de 2
por cento, uma ninharia.
— Que mina? E como se faz para
refinar?
— O petróleo bruto é uma mistura de
vários hidrocarbonetos diferentes, uns gasosos, como o metana que vem
dissolvido nos líquidos; outros líquidos; outros sólidos, como a parafina. A
refinação é o processo que separa os vários hidrocarbonetos.
— Em que consiste?
— Cada um desses hidrocarbonetos,
cuja mistura forma o petróleo bruto, tem a sua temperatura própria de ebulição.
— Ebulição é fervura, não é?
— Sim. Ebulição é o ponto em que os
líquidos começam a ferver e a evaporar-se. Ora, esses hidrocarbonetos do
petróleo bruto fervem desde 35 até 600 graus.
— Estou começando a entender — disse
Pedrinho.
— Estou na pista. Continue,
Visconde.
— O petróleo bruto — continuou o
Visconde — é aquecido em grandes caldeiras; quando a temperatura chega a 35
graus, começam a evaporar-se os hidrocarbonetos mais voláteis, os quais passam,
em estado de vapor, para o reservatório onde se resfriam e se condensam, isto
é, voltam ao estado líquido. Mas o calor da caldeira continua a crescer,
chegando até 600 graus, e
pelo caminho vão se evaporando mais
este e mais aquele hidrocarboneto, conforme o grau de ebulição de cada um;
evaporam-se e passam em estado de vapor para os tais reservatórios onde se
resfriam. Aos 600 graus evaporam-se os mais pesados e pronto. Dali por diante é
inútil aquecer. Não sai mais nada. Tudo que tem valor já se evaporou; fica
apenas um resíduo que, conforme a qualidade do petróleo, pode ser o mazu (óleo
combustível), ou o coque de petróleo. Nos começos da indústria o único produto
que se tirava do petróleo era o querosene, empregado na iluminação e ainda hoje
muito usado no mundo inteiro, inclusive entre nós. Não há casa de caboclo por
esses matos que não tenha sua lamparina de querosene.
— Por sinal que é uma coisa horrível
— observou Emília. — Além de dar uma luz que nem é luz, de tão fraca e feia,
ainda deita um penacho de fumo negro imundíssimo. E de respirar aquilo de
noite, a caboclada fica com o nariz preto por dentro...
— Então perdiam a gasolina, a
benzina e os outros produtos de tanto valor hoje? — perguntou Pedrinho.
— É verdade. Tudo isso era deitado
fora. Só aproveitavam o querosene. Hoje os petroleiros choram as enormes
quantidades da preciosa gasolina que antigamente era jogada fora por não ter
aplicação nenhuma. Mas o motor de explosão veio mudar tudo. A gasolina passou
para a frente, como o mais precioso produto do petróleo. Se correm no mundo milhões
de automóveis e aviões a ela o devemos.
— Quer dizer que os petroleiros de
hoje se esforçam sobretudo para obter a gasolina...
— Isso mesmo. Se pudessem,
reduziriam o óleo bruto só a gasolina — e quase o conseguem.
— Como?
— Por meio do cracking.
Ninguém entendeu.
— Cracking — explicou o
Visconde — vem do verbo inglês to crack, partir, quebrar. E quando
dizemos o cracking significamos um certo processo de destilar petróleo,
no qual as moléculas dos hidrocarbonetos pesados quebram-se, dando
origem a hidrocarbonetos leves.
— Explique isso por miúdo — pediu
Pedrinho.
— Foi uma das numerosas descobertas
devidas ao Acaso. Num dia frigídissimo de 1861, estava um trabalhador tomando
conta duma caldeira de óleo bruto ao fogo. A destilação já ia bem adiantada,
quase no fim, de modo que só saía um fiozinho de hidrocarboneto do mais
pesados. Esse operário, porém, era malandro. Ao ver-se ali sem fiscal,
aproveitou o ensejo para uma fugida. Entupiu de combustível a fornalha e
raspou-se. Picou horas na pândega. Quando voltou, abriu a boca. A caldeira
quentíssima, estava jorrando um produto claro, idêntico ao da destilação das
matérias mais voláteis. Era gasolina outra vez...
— Que engraçado!
— Os donos da fábrica puseram-se a
estudar o
fenômeno. Repetindo a experiência,
viram que sob a ação dum calor muito forte as moléculas dos óleos pesados se
quebravam, produzindo as essências mais leves. Foi assim que começou no mundo
esse importantíssimo processo do chacking — ou do arrebentamento das
moléculas.
— Quer dizer que por esse processo
pode-se transformar querosene em gasolina?
— Perfeitamente. Aqui no sítio,
quando montarmos a nossa refinaria, poderemos produzir mais ou menos gasolina,
conforme for do interesse da Companhia Donabentese.
— Pois vamos tratar disso sem demora
— berrou Emília. — Mister Kalamazoo disse a Quindim que está com todos os
estudos e plantas da nossa refinaria já prontinhos. Além disso...
Não concluiu. Alguém batia na porta.
Narizinho foi ver.
— Oh, o Coronel Teodorico! Entre,
faça o favor. Vovó? Está, sim. Vou chamá-la...
O Coronel Teodorico era um homem
moreno, gordo, duns sessenta anos, com uma verruga no nariz e forte chumaço de
cabelos nos ouvidos.
Dona Benta apareceu.
— Como está passando a comadre? —
disse ele, apertando-lhe a mão. — Desde que saiu o petróleo, eu ainda não tive
um minutinho para chegar até cá. Só agora.
— É verdade então, compadre, que
vendeu a sua fazenda por 10 milhões de cruzeiros?
— O povo exagera seu pouquinho,
comadre. Vendi, sim, não por dez, mas por um milhão e duzentos mil cruzeiros.
Foi negócio, hein?
— Foi e não foi, compadre. A
fazenda, antes de sabermos que havia petróleo aqui, era uma propriedade do
valor duns setenta contos, não acha?
— Verdade. Foi o preço que sempre
pedi por ela — e não achei. O melhor que me chegaram foram sessenta e cinco.
Agora me ofereceram um milhão de cruzeiros, e como eu fizesse cara muito
esquisita (era de espanto), eles pensaram que eu estivesse achando pouco e
foram chegando mais 200 mil. Eu não quis saber de histórias. Me veio uma tontura
na cabeça, e foi quase sem eu querer que minha boca respondeu:
"Fechado!" No dia seguinte "vinheram" passar a escritura e
bateram em cima da mesa os pacotes...
O Coronel estava orgulhosíssimo com
a façanha, mas Dona Benta torceu o nariz.
— Pois, meu caro compadre, acho que
fez um péssimo negócio. Sua fazenda tem a mesma formação geológica do meu
sítio, sendo muitíssimo provável que também nela haja petróleo, e muito. Por
que não mandou, antes de vendê-la, fazer uns estudos geológicos e geofísicos?
O Coronel cocou a cabeça, com um
risinho de esperteza matuta nos lábios.
— Eu, a ser verdadeiro, comadre, nem
entendo, nem acredito em nada dessas histórias. Sou homem da roça, como meu pai e meu avô, criadores de porcos e plantadores de
milho. De ciência não pesco um xis — nem acredito. Minha fazenda não valia mais
de setenta mil cruzeiros. Peguei por ela um milhão e duzentos mil. Que mais
poderia eu querer?
— Compadre — disse Dona Benta — o
seu mal sempre foi a falta de estudos. Se os tivesse, ou se frequentasse aqui
os nossos serões para ouvir as conversas geológicas do Senhor Visconde, juro
que não venderia a fazenda nem por 10 milhões. Aquilo vale ouro, compadre. A
sua invernada de engorda está no eixo do nosso anticlinal.
Falar em anticlinal para um coronel
da roça é o mesmo que falar do binômio de Newton para tia Nastácia. Dona Benta
chamou o Visconde.
— Explique aqui ao compadre o que é
um anticlinal petrolífero e mostre como o nosso anticlinal se prolonga pelas
terras dele.
O coitadinho do Visconde tudo
explicou com a maior clareza possível. Mas o miolo dum criador de porcos de
sessenta anos está endurecido. Não recebe mais nada. O Coronel limitou-se a
rir-se do sabuguinho científico.
— Basta — disse ele por fim. — Estou
muito velho para essas coisas de ciência. Se o "anticriná" daqui
entra na minha fazenda, então melhor para quem a comprou. Que se arranjem, que
tirem muito petróleo e façam bom proveito. Não sou ambicioso. Esta dinheirama
está até me
atrapalhando a vida. Chovem em cima
de mim tantos negócios ótimos que a dificuldade está na escolha.
— Cuidado com esses negócios ótimos,
compadre! Sei dum sujeito que herdou 500 mil cruzeiros e os empregou em cinco
negócios ótimos, cada qual melhor que o outro. O coitado ficou tão limpo que
hoje é zelador dum cemitério.
— Sei disso, comadre. Já vivi
bastante. Conheço o mundo. Mas o dinheiro meu ninguém me tira.
— E que vai fazer agora?
— Estou pensando em me mudar para o
Rio de Janeiro...
— Olho vivo com os grandes centros,
compadre! Nós, que passamos a maior parte da nossa vida nestes desertos,
ficamos meio bobos. Qualquer pirata das avenidas nos embrulha. Há por lá uns
tais passadores do conto-do-vigário que são umas pestes.
O Coronel Teodorico deu uma risada
gostosa.
— Comadre, o espertalhão capaz de
embrulhar o Coronel Teodorico Fagundes da Costa Picanço ainda não nasceu,
acredite...
—
Assim seja — disse Dona Benta. — Meus votos são para que o compadre tenha um
resto de vida feliz e nunca se arrependa de ter vendido as suas terras.
O
Coronel conversou ainda sobre várias coisas e depois de tomar o cafezinho de
tia Nastácia e de comer meia peneira de pipocas, levantou-se.
— Pois então adeus, comadre. Lá do Rio
lhe
escreverei, mandando meu endereço. A
senhora sempre foi a melhor das vizinhas. Não brigamos nunca — nem daquela vez
em que a sua vaca Mocha entrou na minha roça de milho e fez aquele estrago.
Sempre que precisar dalguma coisa lá na "Corte", é só mandar um
bilhetinho.
— Muito agradecida, compadre. Também
eu aqui fico ao seu inteiro dispor. Quando cansar-se da civilização e quiser
uma temporada de descanso, escreva-me. Terá sempre um talher na mesa da sua
velha comadre. Eu não saio. Continuo na roça.
— Roça, comadre? A senhora chama
roça a isto por aqui? Foi roça! Hoje está virando cidade com uma fúria louca. A
vila está que está que ninguém mais se conhece. Ontem repeti três vezes a
sessão do Cine Tucano Amarelo. Aquilo é que é cinema!
— E essa transformação da vila não
parará mais — disse Dona Benta. — Sei de muitas companhias de petróleo que já
se formaram, e de outras que estão se formando para pesquisar petróleo na zona.
Logo teremos aqui uma cidade à moda americana, movimentadíssima, que mudará
tudo — os costumes e as gentes.
— As gentes já não são as mesmas,
comadre. Quando atravessei a vila para chegar até cá, só topei com duas ou três
caras das de dantes. Tudo mais é estranja — uns louros, outros de cabelo de
fogo. E ali na perneira, no blusão, no chapéu de cortiça, no cachimbo. O que eu
quero é sumir daqui. Meu tempo, minha gente, minha, vida no Tucano Amarelo
acabou. Tudo por causa desse petróleo
que ali o Senhor Pedrinho tirou — concluiu o Coronel sacudindo o dedo para o
menino. — Esse seu neto vai longe, comadre...
O Coronel despediu-se também dos
meninos, montou a cavalo e partiu. Dona Benta ficou de olhos nele até que se
sumisse na volta da estrada. Sim, o petróleo começava a mudar tudo, não havia
dúvida. Os velhos conhecimentos, os velhos hábitos, as velhas tradições — tudo
isso tinha de desaparecer diante da americanização que a indústria traz. E Dona
Benta sentiu uma ponta de saudade do sossego antigo.
No dia seguinte tiveram a visita do
Chico Piramboia, que também vendera o sítio e se preparava para "afundar
no mundo." Era um caboclão dos legítimos, xucro até mais não poder.
— Dona Benta — disse ele — vou-me
embora com os pacotes no bolso. Esta gente enlouqueceu. Não entendo mais nada
de nada. Pois então não é loucura me darem 230 mil cruzeiros por aquela pinoia
do meu sítio — dez alqueires de sapezal que nunca valeu nem mil cruzeiros.
— Não é loucura não, Chico. É apenas
o petróleo. Quem deu 230 mil cruzeiros pelo seu sítio vai tirar dele alguns
milhões. Você não pensou nisso.
— A senhora está se referindo ao tal
"criosene?" Ah, então a senhora, que é uma velha de juízo, também
"aquerdita" nisso? "Criosene" nada. O que deu nessa gente
foi loucura, isso ninguém me tira da cabeça. Eu vou fugindo daqui com os cobres
antes que eles se arrependam e me
assaltem a casa pra pegar outra vez os pacotes.
— Então guarda consigo o dinheiro,
Chico? Não sabe que é perigosíssimo?
— Onde eu "haverá" de
guardar então?
— No banco, homem de Deus! Para isso
é que há bancos.
Chico Piramboia deu uma grande
risada, muito parecia com a do Coronel Teodorico.
— Banco! Banco!... Tinha graça eu
guardar 230 mil cruzeiros, dinheirinho novo, num banco — prós outros tomar
conta dele. Ah, ah, ah!...
Um mês mais tarde Dona Benta teve
notícia dos dois matutos — do compadre Teodorico e do Chico Piramboia. Este
fora vítima dum assalto à mão armada em pleno dia, e como levasse todo o seu
dinheiro num lenço vermelho, ficou sem o dinheiro e sem o lenço. Moeram-no a
pancadas. Não fosse a sua natureza extraordinariamente rija de caboclo criado
na miséria do sapezeiro e já estaria no outro mundo.
Com o Coronel Teodorico, então,
aconteceu uma que até parece pilhéria. Ele nunca havia ido ao Rio de Janeiro,
de modo que admirou tudo, principalmente os bondes elétricos. E tanto admirou
os bondes elétricos e falou daquilo, que afinal o "dono dos bondes"
apareceu, fez camaradagem com ele e acabou levando-o a um bar. Lá fez vir
cerveja e contou o excelente negócio que era ter bondes que cobram 20, 30 e 40
centavos de cada pessoa que entre neles para ir daqui até ali.
— Lá isso é — disse o Coronel. —
Tenho me regalado de andar de bonde, e para me distrair vou contando as pessoas
que entram e fazendo a conta dos níqueis que pingam. Que é negócio, isto é.
Quanto acha que rende um bonde por dia?
O dono dos bondes provou que cada
carro dava uma renda de dez contos diários — dez contos líquidos, fora todas as
despesas. Mas também disse que como fosse dono de "bondes demais" (mil
e tantos), não fazia questão de vender dois ou três aos amigos — a cinquenta
mil cruzeiros cada um. Melhor negócio era impossível. Se ele vendia alguns
bondes, era só para servir aos amigos, e também porque andava até enjoado de
tanto bonde e tanto dinheiro. Além disso, simpatizara-se muito com o Coronel,
em quem via um homem inteligente, esperto, de ótimo coração e, portanto,
merecedor de entrar no Rio de Janeiro com o pé direito.
O Coronel Teodorico Fagundes da
Costa Picanço comoveu-se com o elogio e fechou negócio de quatro bondes a 50
mil cruzeiros cada um — total: 200 mil cruzeiros...
— Pobre do meu compadre! — suspirou
Dona Benta quando soube da história. — Sua sorte foi ter comprado apenas
quatro. Se adquirisse vinte e quatro bondes, estaria a estas horas tão limpo
como o Chico Piramboia...
E voltando-se para Pedrinho:
— Aproveite a lição, meu filho.
Quando propuserem a você um negócio "bom demais", fique de orelha em
pé,
perguntando lá por dentro:
"Onde está o gato?" Há sempre um gato escondido em todos os negócios
da China, que os piratas propõem às criaturas de boa-fé...
CAPÍTULO 14:
PIRATAS DO PETRÓLEO
O poço Caraminguá nº 1 determinou
uma mudança completa na zona. Todas as terras mudaram de dono; e no caso de um
ou outro proprietário mais cabeçudo, que teimava em não vender, a questão se
resolvia por meio dum contrato para a exploração do subsolo. Os petroleiros
querem o que está lá no fundo, não o que existe na superfície.
Formadas as companhias e adquiridas
as terras, começaram em todas as direções os estudos geológicos e geofísicos.
Os bois dos pastos, afeitos aos vaqueiros, de pé no chão e chapéu de palha na
cabeça, estranhavam aquela gente esquisita, de cachimbo na boca, perneiras e
capacete de explorador africano. E ainda mais o que eles faziam. Andavam com
uns aparelhos que boi não sabe o que é, medindo o chão, espiando por uns
canudos e dando tiros. Não tiros de espingardas, mas uns tiros surdos,
esquisitíssimos e que não matavam nada.
Eram as explosões subterrâneas do processo
sísmico, um dos processos geofísicos empregados. Eles explodem uma dinamite
num buraco, e em vários pontos, longe dali, recolhem, por meio de instrumentos
especiais, as ondas
vibratórias causadas pela explosão.
E conforme essas ondas se modificam pelo caminho, eles ficam sabendo de várias
coisas lá no fundo da terra.
E ao mesmo tempo que faziam esses
estudos, iam depositando enormes quantidades de materiais de perfuração em
vários terrenos adquiridos. Eram torres e mais torres, caldeiras, montes de
tubos de revestimento, hastes e mais hastes, enormes carretéis de cabos de aço,
etc. Mas as atividades das novas companhias se acentuavam sobretudo rente às
divisas do sítio de Dona Benta.
Mister Kalamazoo ficou de orelhas em
pé. Andou a cavalo espiando as divisas, em companhia de Mr. Champignon, e
depois de cuidadosa observação foi conversar com Dona Benta, que era a diretora
da Companhia Donabentense de Petróleo. Mister Kalamazoo já falava regularmente
o português.
— Minha senhora — disse ele — temos
de tomar providências imediatas contra o banditismo petrolífero. No meu passeio
de hoje, vi que os piratas se preparam para roubar uma boa parte do petróleo
aqui do sítio. Temos que organizar a defesa.
Dona Benta não compreendeu. Apesar
de diretora da Donabentense, a maior companhia de petróleo do Brasil, ela não
entendia grande coisa do assunto. Felizmente o Consultor Técnico da companhia,
o Visconde de Sabugosa, era uma verdadeira sumidade. Mas Dona Benta não queria
que Mister Kalamazoo desconfiasse da sua ignorância, e por isso respondeu com
grande
superioridade:
— Perfeitamente, Mister Kalamazoo.
Já pensei nisso e estou a organizar o nosso plano de defesa. Hoje mesmo terei o
prazer de submetê-lo à sua apreciação e à de Mr. Champignon.
O americano retirou-se, admirado da
proficiência técnica da boa senhora — e Dona Benta chamou o Visconde.
Veio o sabuguinho científico, mais a
Emília.
— Senhor Visconde — disse a velha —
Mister Kalamazoo acabar de sair daqui. Contou umas histórias de que não pesquei
nada. Acha que devemos organizar a defesa do nosso campo petrolífero, ameaçado
pelos piratas do petróleo. Que quer dizer isso, Visconde?
O sabuguinho riu-se.
— Ah, sei. Pirata do petróleo são os
que abrem poços nas divisas dum campo petrolífero para roubar parte das
existências desse campo. Um poço de petróleo drena, ou puxa o petróleo num raio
de muitas dezenas de metros, de modo que cada poço que abrem nas divisas do
sítio puxará uma boa parte do petróleo daqui do sítio.
— Hum! — estou percebendo a marosca
— murmurou Dona Benta — e mandou que Emília chamasse Pedrinho.
— Meu filho — disse ela logo que o
menino apareceu — traga-me aqui a planta do sítio.
Pedrinho trouxe um rolo de papel de
desenho, que abriu diante dela, no chão. O sítio tinha divisas muito regulares,
formando um paralelogramo. Depois de examinar
a planta por algum tempo, o Visconde tomou a palavra.
— A presunção — disse ele — é de que
temos petróleo em todos os trinta alqueires cá do sítio. Logo, se os piratas
abrirem quatro poços, perto de cada canto das divisas, acabam roubando pelo
menos um quarto do petróleo do sítio.
— E como evitar isso? — perguntou
Dona Benta.
— Dum modo muito simples — respondeu
o Visconde. — Abrindo nestes quatro cantos quatro poços do lado de cá, nas
nossas terras, assim — e desenhou como era.
— Desse modo a senhora contrapirateia,
e o petróleo que eles roubarem ficará compensado pelo que a senhora rouba deles
— e senhora ainda sai ganhando, porque tira deles mais do que eles podem tirar
da senhora, como se verifica do meu desenho.
— Mas se nas terras deles não houver
petróleo, nem nos cantos do meu sítio?
— Nesse caso a senhora perde o latim
e eles também. Mas a única forma de defesa é essa.
Dona Benta ficou a meditar uns instantes;
depois chamou Pedrinho.
— Dê ordem a Mister Kalamazoo,
Pedrinho, para perfurar quatro poços de defesa, um em cada canto do sítio.
Já...
Ao receber a ordem, Mister Kalamazoo
muito se admirou da sabedoria de Dona Benta, uma velha que jamais saíra da roça, e no entanto entendia até da técnica
da pirataria do petróleo. E montando a cavalo foi a um dos cantos norte do
sítio estudar o terreno.
Logo que chegou à divisa deu com uma
turma de operários para lá da cerca, ocupados no descarregamento de caminhões com
material de sondagem. Dirigia-os um engenheiro cor de fiambre, de cachimbo na
boca. O americano de Dona Benta pulou a cerca e foi ter com ele.
— Hello, John Casper!... How
do you do? — exclamou Mister Kalamazoo, com cara alegre.
O outro também o reconheceu imediatamente.
Haviam trabalhado juntos num campo
de petróleo do Oklahoma. Houve apertos de mão e troca de amabilidades.
Depois entraram no assunto.
— Vai perfurar aqui? — perguntou
Kalamazoo.
— Sim, para a Companhia Atarip de
Petróleo, dona destes terrenos.
O americano de Dona Benta arreganhou
os dentes num sorriso de quem sabe a significação da palavra Atarip — e
respondeu:
— Mas o golpe falhará, John, porque
acabo de receber ordem da Companhia Donabentense para abrir, ali junto à cerca,
uma perfuração de defesa.
O engenheiro John Casper
empalideceu. Aquela notícia vinha estragar-lhe todos os planos. Mas como nessas
lutas do petróleo é preciso mostrar muita indiferença, apenas rosnou um frio Go
ahead! como quem
diz: Pois abra.
Mister Kalamazoo pulou de novo o
aramado e marcou o local da perfuração de defesa, que seria o Caraminguá nº 2.
Em seguida montou e tocou para o
outro canto norte. Encontrou lá a mesma coisa. Numerosos operários
descarregavam materiais de sondagem além da cerca.
— A quem pertence isto? — indagou
Mister Kalamazoo do homem de perneira que dirija os trabalhos.
— Mind your busines — foi a
insolente resposta do "perneira", como quem diz: Cuide da sua vida e
não se meta.
— "Bom — pensou consigo Mister
Kalamazoo — já temos por cá a luta pelo petróleo, com todos os seus mistérios e
desaforos." — Correu os olhos pelo material. Era da mesma fábrica do de
John Casper — sinal evidente de que pertenciam à mesma empresa.
— All right! — exclamou então
Mister Kalamazoo. A Atarip está sem sorte, porque a Donabentense vai localizar
aqui o Caraminguá nº 3...
O "perneira" voltou o
rosto bruscamente, tirando dos lábios o cachimbo.
— Número 3, hein? Há então um nº 2?
— Não há ainda, mas vai haver, meu
caro amigo. O Caraminguá nº 2 será aberto no canto norte, bem defronte do
Atarip nº 1, a cargo de Mr. John Casper...
O "perneira" desapontou
duma vez e, furioso da vida, deu um tremendo pontapé numa pobre touceira de
barba-de-bode que viu na sua frente.
— So long! — murmurou Mister
Kalamazoo, retirando-se e tocando para as divisas do sul. Ao chegar ao primeiro
canto da divisa sul viu que a Atarip também estava lá, em plena atividade.
Dirigiu-se ao outro canto: a mesma coisa — a Atarip lá estava desembarcando
materiais.
— Não há remédio — disse ele a Mr.
Champignon logo que voltou ao acampamento. — A medida tomada pela Diretora da
Donabentense é das mais oportunas. A Atarip já deu começo aos trabalhos de
quatro poços nas divisas do nosso campo — nos cantos. Temos de agir sem demora
na defesa.
A abertura dos novos Caraminguás
correu muito mais fácil que a do primeiro. A constituição dos terrenos estava
já conhecida de modo que Mister Kalamazoo pôde não só escolher a sonda mais
adequada como ainda prever as entubações de revestimento que tinha de executar.
No primeiro poço ele fizera três
entubações para o fechamento das três águas encontradas; nos novos poços,
porém, só entubaria quando chegasse à última água, fechando assim, duma vez, os
três horizontes aquíferos. Desse modo economizavam--se duas entubações e duas
colunas de tubos, além de ser possível alcançar o horizonte petrolífero com um
diâmetro maior — 22 centímetros em vez de 18.
O tipo de sonda escolhido foi o
"Rotary", não mais o tipo misto usado no Caraminguá nº 1. A
experiência deste poço indicou que podiam perfurar rotativamente do começo ao
fim, sem necessidade de trépanos.
Encomendadas as quatro sondas novas,
tudo chegou com a presteza do costume, porque os aviões comerciais da Emília
estavam cada vez mais aperfeiçoados. Foi com verdadeiro assombro que os
engenheiros da Atarip viram tais aviões pousarem e descarregarem todas as
peças, inclusive as caldeiras pesadonas. Era um milagre que eles não podiam
compreender.
O cálculo desses engenheiros, quando
souberam que a Donabentense ia contrapiratear, fora que antes dum ano esta
empresa não abriria os quatro poços. Ora, ficando eles assim com um ano de
avanço, poderiam, na pior hipótese, roubar um ano de petróleo do sítio. E se
cada poço da Atarip desse o mesmo que o Caraminguá nº 1, isto é, 500 barris por
dia, os quatro poços dariam, nesse ano de avanço, 720.000 barris, dos quais a
quarta parte saída dos terrenos de Dona Benta. A quarta parte de 720.000 são
180.000. A 30 cruzeiros, cinco milhões e quatrocentos mil cruzeiros! A Atarip,
portanto, roubaria de Dona Benta, num ano, a gorda quantia de cinco milhões e
quatrocentos mil cruzeiros.
Mas a chegada dos aviões emilianos
com o novo material de sondagem da Donabentense veio estragar completamente os
planos da companhia pirata.
Outra desvantagem da Atarip era não
conhecer o terreno a perfurar. Bem que eles tentaram obter informes técnicos da
perfuração do Caraminguá nº 1. Nada conseguiram. Os dois americanos e os
operários da Donabentense souberam guardar o mais rigoroso segredo — e os
meninos também.
Certo dia um agente secreto da
Atarip, que andava rondando a casa de Dona Benta, pilhou Emília de jeito,
sozinha na porteira da estrada, e veio com uns oferecimentos de doces (que
Emília recusou) e umas perguntinhas ingenuamente manhosas dessas de plantar
verde para colher maduro. Mas Emília, que tinha faro de cão perdigueiro,
percebeu logo que estava diante do inimigo. E tapeou o perguntante com
respostas muito direitinhas, mas erradas. O agente saiu dali contentíssimo com
as preciosas informações colhidas — informações, entretanto, que só serviram
para causar distúrbios e atrasos nas perfurações da Atarip. E tal foi o
desastre, que o chefe dessa companhia acabou botando o agente no olho da rua,
com um valente pontapé no fim da espinha.
— "Seu cachorro! Vá dar informações
falsas na casa do diabo!"
Enquanto do lado da Atarip tudo eram
desastres e mais desastres, atrasos e mais atrasos, os novos poços da
Donabentense corriam a galope. O Caraminguá nº 1 levara oito meses para ser
aberto. Já o Caraminguá nº 2 chegou aos 800 metros num mês O caraminguá nº 3 em
menos: 27 dias. O Caraminguá nº 4, ainda em menos: em 24 dias. E o Caraminguá nº
5 realizou o milagre de perfurar-se em 12 dias apenas.
Esta maravilhosa façanha escangalhou
com os projetos maliciosos da Atarip, de modo que o ladrão saiu logrado. Em vez
de os piratas roubarem o petróleo de Dona Benta, foi Dona Benta quem roubou o
petróleo deles. Resultado: a Atarip abriu falência.
Com os quatros Caraminguás novos a
produção do sítio ficou elevada a 2.500 barris por dia — um colosso.
— E agora? Que vamos fazer de tanto
petróleo?
O Visconde respondeu a essa pergunta
apresentando um projeto de refinaria a ser montada, não ali, mas junto a um
excelente porto de mar.
— As refinarias — explicou ele —
devem ser montadas em pontos comercialmente estratégicos, de modo a facilitar a
distribuição dos produtos. Montaremos a nossa refinaria nesse porto, levando
para lá o petróleo bruto.
— Como? — perguntou Dona Benta.
— Por meio dum oleoduto —
canalização ou pipe-line, como dizem os americanos. O melhor meio de conduzir
o petróleo é esse — o mesmo usado para conduzir água para as grandes cidades.
Mas um serviço de oleoduto é
complicado. Temos de montar grandes reservatórios no ponto final, e pelo
caminho estações de bombeamento e aquecimento.
— Para quê? — perguntou Pedrinho.
— Porque a canalização segue subindo
e descendo morros, de modo que de distância em distância se tornam necessárias
bombas que puxem o petróleo.
—
E o aquecimento?
—
No tempo frio o petróleo fica tão viscoso que não corre com facilidade dentro
dos canos. Torna-se preciso aquecê-lo de espaço em espaço.
— Oh, mas uma coisa assim deve ficar
num dinheirão...
— Isso fica. Na América o custo duma
milha de oleoduto anda aí entre 18 a 20.000 dólares. Dá para cada metro um
custo de 11 a 12 dólares.
— Duzentos e tantos cruzeiros na
nossa moeda! — calculou Narizinho. — É carete...
— Mas no fim sai mais barato que
tudo — explicou o Visconde. — Na América o transporte de petróleo pelos
oleodutos fica na metade do preço cobrado pelas estradas de ferro.
— E de que grossura são os canos?
— Varia. Há oleodutos de todos os
diâmetros, desde 5 até 30 centímetros.
— E onde há mais oleodutos no mundo?
— perguntou a menina.
— Vai ser aqui no Brasil, mas, por
enquanto é nos Estados Unidos — o país "mais" em tudo. Em 1928 eles
tinham 160.000 quilômetros de pipe-lines com capacidade para o
transporte de 150 milhões de toneladas de óleo por ano. Haviam custado, sabem
quanto? A ninharia de 950 milhões de dólares...
— Upa! Mais de 15 bilhões de
cruzeiros na nossa moeda, o dólar a 16 cruzeiros — calculou de cabeça
Narizinho. — É dinheiro...
Pedrinho assustou-se com aqueles
algarismos.
— Maçada! Onde havemos de obter
dinheiro para uma coisa que sai tão cara?
— Onde? Homessa! No fundo dos poços
— respondeu o Visconde. — O petróleo é ouro-líquido, não sabe? Com os 2.500
barris diários que Dona Benta possui aqui,
podemos perfeitamente construir o oleoduto que eu estudei. Não tem mais de 300
quilômetros e portanto custará... quanto, Narizinho?
A menina calculou instantaneamente:
— A 200 cruzeiros o metro, seriam 60
milhões de cruzeiros.
— Pois é isso — disse o Visconde. —
Com a renda dos cinco Caraminguás Dona Benta paga esse oleoduto em dois anos e
pico.
— E o dinheiro para a montagem da
refinaria lá no porto?
— Aparece — respondeu o Visconde. —
Basta que Dona Benta anuncie ao mundo que quer construir uma refinaria e dispõe
de 2.500 barris de petróleo diários, para que chovam em cima dela propostas de
empréstimos a juros baratíssimos. Além disso, nós não vamos ficar só com os
cinco Caraminguás. Podemos abrir mais cinco, mais dez, mais vinte — e de dentro
da terra sairá todo o dinheiro preciso para essas grandes obras. O oleoduto e a
refinaria que projetei não ficarão em mais de 150 milhões de cruzeiros.
O Visconde de Sabugosa nunca teve um
vintém furado, mas para falar em milhões não havia outro. Jogava em cima da
mesa da discussão 150 milhões de cruzeiros, com o mesmo cinismo com que tia
Nastácia jogava cinco dentes de alho dentro duma panela...
CAPÍTULO
15: A DINHEIRAMA
Enquanto não se construíam a
refinaria e a canalização, era preciso fazer qualquer coisa do petróleo — e o
remédio foi vendê-lo em estado bruto às pequenas refinarias já existentes no
País. Eram refinarias montadas para extrair gasolina e querosene do óleo bruto
importado do estrangeiro. Assim que elas souberam que havia petróleo no sítio
de Dona Benta, mandaram para lá seus representantes fazer propostas.
Quem discutiu com eles foi
Narizinho, recentemente nomeada Diretora Comercial da Companhia. Dona Benta era
a Diretora Geral. O Visconde, o Consultor Técnico. Emília, a Diretora dos
Transportes e Quindim, o Encarregado Geral da Defesa.
Narizinho recebeu os homens e
discutiu muito bem a questão do preço, não pedindo nem de mais nem de menos.
— Vou fazer um precinho de amigo —
disse ela. — Dez centavos o litro. Serve?
Os homens acharam baratíssimo,
porque andavam comprando óleo importado por preço três vezes maior. Mas,
ciganos como são todos os comerciantes, torceram o nariz, dizendo que era preço muito alto. O cálculo deles
fora que como Dona Benta não tinha meios de se aproveitar do petróleo,
vendê-lo-ia por qualquer preço e ofereceram 5 centavos.
Narizinho danou, e depois de
consultar Dona Benta, respondeu-lhes da seguinte maneira:
— O preço que dei foi muito bem
estudado por vovó, que não é nenhuma cigana, mas também não é boba. Os
senhores, entretanto, além de bobos são uns ciganos, e para castigo das duas
coisas eu só dou agora o petróleo a 12 centavos o litro. Dez centavos é o nosso
preço e 2 centavos fica sendo a taxa do castigo.
Os homens riram-se.
Nesse caso, não fazemos negócio e
quero ver o que sua avó faz do petróleo. Narizinho respondeu:
— Vovó tem sessenta e cinco anos e
nunca precisou do petróleo para viver. Nem nunca aturou ninguém. É
independentíssima. Se não achar quem lhe pague o petróleo pelo preço que pede,
pensam que ela se amola? Ah, ah, ah! Fecha os poços para só abri-los quando
estiver com o oleoduto e a refinaria montados — e os senhores ficam bigodeados.
Não temos pressa nenhuma em vender o nosso petróleo. Passem muito bem.
Vendo aquela firmeza da Diretora
Comercial, os ciganos cocaram a cabeça.
— Pois bem — disseram eles. —
Aceitamos o seu preço de dez centavos.
— Meu preço é 12, já disse. E amanhã
será 13. Nós aqui não somos brincadeira de ninguém.
Os ciganos pararam com a ciganagem e
fecharam a compra de todo o petróleo produzido pelos cinco Caraminguás à razão
de 12 centavos o litro.
— Mas há de ser entregue na nossa
porta — disseram eles, querendo novamente tapear a menina.
— Estão muito enganados — respondeu
ela. — Esse preço é aqui na boca dos poços. O transporte corre por conta dos
compradores.
A segurança com que ela falou meteu
medo aos ciganos, os quais assinaram os contratos sem mais um pio.
O problema do transporte é sempre um
tanto sério. Não havendo oleoduto que leve o petróleo aos centros de consumo, o
remédio é recorrer a carros-tanque, ou a navios-tanques se a viagem tem que ser
por mar.
Os compradores tiveram de arranjar
caminhões-tanques que levassem o petróleo dali até à primeira estação de
estrada de ferro, e tiveram ainda de fornecer à estrada de ferro vagões-tanques
que levassem o petróleo até às cidades onde tinham as refinarias.
O Visconde falou dos caminhões e
carros-tanques. O caminhão-tanque não passa dum reservatório de ferro sobre
rodas, com capacidade para uma, duas ou três toneladas de petróleo; e o
carro-tanque é um vagão comum de estrada de ferro, composto de rodas e um
grande reservatório "hermeticamente fechável" em cima, com capacidade
para 20 ou 30 toneladas.
— E o navio-tanque?
— E um enorme reservatório de ferro,
"hermeticamente fechável" e que ocupa um navio de capacidade muito grande. Há navios-tanques que carregam 500
toneladas de petróleo e outros que carregam 5.000. Os Estados Unidos tinham, em
1927, 412 navios-tanques, com a tonelagem total de 2.372.000 toneladas.
— Que horror! E a Inglaterra, que
tem fama de ter mais navios que os outros países?
— A Inglaterra, nesse ano, tinha
mais navios-tanques que os Estados Unidos, mas com menor capacidade. Tinha uma
frota de 479 navios-tanques, com capacidade para 2.248.000 toneladas — 124.000
menos que a tonelagem americana.
— E os outros países?
— Os outros possuem frotas muito
menores. A Noruega dispunha, naquele, tempo de 65 navios-tanques. A Itália de
48. A Holanda, de 64. A França, de 40. A Argentina, de 15. Mas nestes últimos
anos essas frotas têm aumentado. A Argentina, por exemplo, está hoje com 54
navios--tanques.
— E para guardar o petróleo — as
tulhas do petróleo — como são elas? — quis saber Narizinho.
— O mais usado são uns enormes
reservatórios cilíndricos, de aço, como uma caixa redonda de pó de arroz com a
tampa em forma cônica. Também se usam reservatórios de cimento armado em vez de
aço, ou então reservatórios subterrâneos, ou enterrados no chão.
— E o tamanho?
— Varia muito. Há desde os de 13
metros de diâmetro até os de 50 metros de diâmetro, com altura de 4 a 10
metros. A capacidade desses reservatórios varia conforme
o tamanho, podendo ir acima de 15.000 toneladas. A nossa produção aqui, sendo
de 2.500 barris por dia, ou mais ou menos 400 toneladas, dá para encher um
desses reservatórios grandes em pouco mais de um mês.
— E quantos carros, ou
caminhões-tanques, vão ser necessários para o transporte do nosso petróleo?
— Trabalhando com caminhões-tanques
de 2 toneladas, serão precisos 200. Mas como esses caminhões podem fazer cinco
viagens por dia até à estação da estrada de ferro, bastam uns 40. E na estrada
de ferro basta que corram 20 vagões-tanques por dia, caso possam voltar vazios
no mesmo dia.
— Isso não pode, garanto! — disse
Pedrinho.
— Nesse caso, com 40 vagões-tanques
os ciganos se arrumam, contanto que não parem — que estejam indo e voltando
constantemente.
Outro ponto em que Narizinho não
transigiu foi quanto ao pagamento do petróleo. Os ciganos vieram com histórias
de emitir duplicatas a 90 dias, etc., mas a menina recusou.
— Nada disso. Só vendemos o nosso
petróleo ali na batata, como diz a Emília. Como os, ovos do sítio de Nhá Veva.
Quem quer uma dúzia de ovos, vai lá, pede-os, recebe-os e paga-os na ficha.
Isso simplifica imensamente o negócio.
— Mas é praxe comercial este
pagamento a prazo
— disseram os homens.
— Praxe — respondeu Narizinho — é um
costume,
nada mais; e acho que neste caso
será um mau costume. Não quero que no negócio novo do petróleo o País fique mal
acostumado. Adoto, portanto, a praxe de Nhá Veva, com os ovos. Quem quiser que
pague à vista. Quem não quiser, ou não puder, que se fomente.
Com esse sistema do pão-pão,
queijo-queijo, a renda do sítio de Dona Benta ficou uma coisa colossal: 48 mil
cruzeiros diários. No começo o Visconde fizera o cálculo do petróleo a 30
cruzeiros o barril. Mas Narizinho entendeu de ajudar o País e reduziu o preço a
12 centavos o litro, o que dava dezenove cruzeiros e vinte centavos por barril
de 160 litros.
— Petróleo quanto mais barato mais
ajuda a Pátria — dizia ela. — Para vovó 48 mil cruzeiros por dia já são
dinheirama tamanha que ela nem sabe o que fazer dela. Podia vender pelo dobro —
mas para quê? Ciganagem é coisa que não entra em nosso sítio.
Com o passar dos meses o dinheiro
foi se juntando de tal maneira que Dona Benta chegou a ficar apreensiva. Apesar
do conselho dado ao Chico Pirambóia, de depositar o dinheiro no banco, Dona
Benta guardava o seu em casa.
— Como é isso vovó? — observou
Pedrinho. — Para o Chico a senhora disse uma coisa e agora faz outra? Parece a
história do frade: "Faça o que eu mando e não faça o que eu faço..."
— Explica-se, meu filho — respondeu
Dona Benta.
— O hábito de guardar dinheiro em
banco tem sua razão de ser como garantia do dinheiro contra os assaltos e para facilidades de pagamento com cheques, etc. Mas aqui em nosso
sítio tudo é diferente, como você não ignora. Medo de assalto não temos, porque
a casa está sempre guardada pelo nosso tanque de carne...
— O Quindim...
— Isso mesmo. E necessidade de
pagamentos com cheques, e mais coisas do comércio, nós não temos, porque não
saímos daqui, não negociamos, não vivemos a vida que vivem todos os
comerciantes. Por esse motivo guardo o dinheiro na arca.
E assim ficou. No fim do ano
Narizinho resolveu dar um balanço. Esparramou o dinheiro pelo chão e contou.
Tinham ganho um pouco mais de 17 milhões de cruzeiros. Esse pouco mais saiu
para pagamento dos salários dos americanos, dos operários e das despesas da
casa, de modo que nas arcas havia 17 milhões de cruzeiros certinhos.
— E agora? — murmurou Dona Benta. —
Que fazer desta dinheirama?
— Construir um palácio — propôs
Narizinho — cheio de quadros preciosos e estátuas, e um jardim de inverno, e
estufas para flores raras — e tanta coisa, vovó...
— Minha filha — disse Dona Benta —
nossa vida aqui tem sido tão feliz que meu medo é que esta riqueza nos traga
desgraça. Um palácio1? Mas julga você que num palácio possamos viver
mais felizes do que nesta casinha gostosa? Ah, vocês não calculam como os
milionários e os reis se aborrecem em seus palácios de ouro, no meio da
criadagem solene, perfilada como soldados de casaca...
Veja esse Eduardo VIII da
Inglaterra, o mais poderoso rei do
mundo, que se enjoou de palácios e criados e etiquetas a ponto de mandar tudo
às favas, para ir viver com sua mulherzinha a vida livre dos homens comuns.
Não. O acertado é não mudarmos o nosso viver. Se somos felizes, que mais
queremos?
— Mas se não gastarmos o dinheiro,
ele entupirá todas as suas canastras e acabará sem valor — ficando dinheiro
recolhido.
— Sim, isso se o não gastarmos.
Temos de gastá-lo, não há dúvida. O dinheiro foi feito para circular, não para
apodrecer nas arcas; mas em vez de gastá-lo egoisticamente só conosco, como
fazem os maus ricos, podemos gastá-los de modo a beneficiar os milhares de
pobrezinhos que nunca tiraram petróleo.
— Está aí uma ideia! — exclamou
Pedrinho. — E a gente diverte-se muito mais gastando o dinheiro assim do que só
com a gente.
— Isso, meu filho. Você está certo.
O maior prazer da vida é fazer o bem. Eu sempre quis beneficiar este nosso povo
da roça, tão miserável, sem cultura nenhuma, sem assistência, largado em pleno
abandono no mato, corroído de doenças tão feias e dolorosas. Se empregarmos
nosso dinheiro em melhorar-lhe a sorte, não só nos divertiremos, como você diz,
como ficaremos com a consciência tranquila. Meu programa é esse.
Bravos, vovó! — exclamou Pedrinho. —
E ainda podemos fazer mil coisas: estradas de verdade, por exemplo. Isso que no
Brasil chamam estradas de rodagem é uma
mentira. Estradas de atolagem, sim. Durante os meses de chuva, o Brasil inteiro
só faz uma coisa: atola-se nas estradas, não roda. Nada roda nelas. Os carros
de bois atolam até os eixos. Os automóveis atolam a ponto de precisarem de bois
para arrancá-los. Os burros de tropa atolam. Tudo atola nas nossas estradas de
atolagem. Podemos começar aqui pelo nosso município e depois iremos nos
alastrando pelo País inteiro. Isto é, iremos construindo estradas de rodagem de
verdade — pavimentadas de concreto, com um lado para ir e outro para vir — e
uma faixa de grama no meio, como as da Alemanha.
— Perfeitamente. Aprovo o programa —
disse Dona Benta.
— E também poderemos criar umas boas
escolas profissionais para esta caboclada bronca — propôs Narizinho. — Eles são
aproveitáveis, mas têm que ser ajudados. Por si nada fazem porque nada podem
fazer.
— E também organizaremos umas
casas-de-saúde bem modernas, com os melhores médicos e todas as comodidades,
como os hospitais americanos que a senhora contou outro dia.
— Aprovado! — disse Dona Benta.
— E construiremos para eles casas
decentes, com higiene e coisas modernas, que lhes sejam vendidas a prestações
bem baixinhas. É uma vergonha para nossa terra como moram as gentes da roça —
em casebres de sapé e barro, imundíssimos, sem mobília, sem nada lá dentro.
Qualquer toca de bicho do mato, qualquer ninho de joão-de-barro, vale mais que
um casebre de caboclo.
—
Aprovado! — disse Dona Benta. O Visconde tomou a palavra.
—
E eu acho que devemos criar casas de ciências para o aproveitamento dos meninos
que mostrarem vocação para os altos estudos. E mais tarde poderemos criar uma
universidade como a de Harvard.
— Aprovado! — Senhor Visconde. Pica
desde já nos nossos planos a criação da Universidade Sabugosa, da qual o nosso
viscondinho será o primeiro reitor e o professor de geologia — disse Dona
Benta.
Faltava Emília.
— E eu acho — disse ela— que
poderemos atacar um problema em que ninguém ainda pensou: a domesticação das
formigas...
Todos olharam para a boneca, muito
espantados.
— Sim, o homem domesticou vários
animais, como o boi, o cavalo, o cachorro. Por que não há de domesticar mais um
— a formiga? Dizem que o estrago que esse bichinho faz na agricultura é imenso,
e até aqui o homem, na sua brutalidade, só pensou numa coisa: matar a formiga.
Mas por mais que as mate elas aí estão cada vez mais numerosas. Minha ideia é
abandonar essa guerra inútil e fazer um tratado de paz entre o homem e a
formiga — domesticando-a, como já se fez com o cavalo, o boi e o cão.
— Como?
— Ensinando-as a só comerem as ervas
daninhas que os fazendeiros arrancam com as enxadas dos trabalhadores. Desse modo elas resolveriam o problema da
limpa das roças. Teriam licença de comer só as plantas daninhas, respeitando as
úteis — como as laranjeiras, etc.
Todos riram-se da ideia emiliana.
— De que se riem? — exclamou Emília.
— Tudo é possível no mundo, sobretudo tratando-se de formigas, uns bichinhos
verdadeiramente inteligentes. Se um sábio cuidasse disso e conseguisse educar
uma certa quantidade de formigas, elas iriam ser as professoras das outras e...
— Pedrinho — disse Dona Benta — peça
a Mister Kalamazoo que mande vir da América um blowout-preventerzinho que
sirva na Emília. Um blowout que feche este nosso caraminguazinho
de asneiras.
Emília fez bico.
— Asneira! Asneira! Acham asneira
tudo quanto eu falo — mas nos momentos de aperto quem salva a situação é sempre
a asneirenta. Só uma coisa eu digo: se eu fosse refazer o mundo, ele ficava
muito mais direito e interessante do que é. Os homens são todos uns sábios da
Grécia, mas o mundo anda cada vez mais torto. Juro que com isso que chamam
asneira eu transformava a terra num paraíso...
Dona Benta ficou pensativa. Quem
sabe se Emília não tinha razão.
CAPÍTULO
16: O BRASIL TEM PETRÓLEO!
A descoberta do petróleo no sítio de
Dona Benta abalou o País inteiro. Até ali ninguém cuidara de petróleo porque
ninguém acreditava na existência do petróleo nesta enorme área de oito e meio
milhões de quilômetros quadrados, toda ela circundada pelos poços de petróleo
das repúblicas vizinhas. Mas assim que irrompeu o Caraminguá nº 1 os negadores
ficaram com cara de asno, a murmurar uns para os outros: "Ora veja! E não
é que tínhamos petróleo mesmo?"
E a febre começou. Em todos os
Estados formaram-se empresas para pesquisar petróleo. Em Alagoas abriu-se o
primeiro poço no Riacho Doce, com 600 barris por dia — e a seguir toda, aquela
região se encheu de poços. Vendo aquilo, os Estados vizinhos atiraram-se.
Sergipe furou vários poços e por fim também acertou no petróleo. Pernambuco,
idem; em menos de um ano estava com dez poços em vários pontos; o primeiro
aberto pertinho de Olinda. A Bahia perfurou na zona dos Camamus e encheu-se de
petróleo; até na zona do Lobato, nos subúrbios da capital,
abriram-se poços de excelente petróleo. O Amazonas e o Pará não ficaram atrás.
Em várias pontos surgiram excelentes poços de petróleo. No Maranhão o Município
de Codó tornou-se um centro petroleiro de muita importância.
A mesma coisa no sul e no centro.
Nos Estados do Espírito Santo e do Rio de Janeiro, perto de Campos, abriram-se
vários poços de petróleo. Em São Paulo, idem, lá pelos lados de Piraju e S.
Pedro. O Paraná entrou em cena com grande fúria, abrindo poços ótimos em várias
zonas. Santa Catarina também. No Rio Grande perfuraram em Pelotas e na beira da
Lagoa dos Patos, e o Rio Grande também ficou alagado de petróleo.
Nos Estados centrais, a mesma coisa.
O petróleo do Rio Verde, em Goiás, foi uma coisa louca. Poços potentíssimos. E
em Mato Grosso, então, nem é bom falar. Surgiram nesse Estado os maiores poços
da América do Sul, tão espetaculares como os do México. O Poço Xaraés nº 2,
rompeu com tanta violência que arrebentou a torre, arremessando a ferralhada a
cem metros de distância. Picou a jorrar sem controle, numa coluna de 80 metros
de altura, durante um mês. Por fim foi dominado. O Poço Rondon nº 1, no Rio
Negro, também deu trabalho. A sua produção inicial foi de 10.000 barris por 24
horas! Até o Estado de Minas se revelou rico em petróleo.
E aconteceu então um fato espantoso.
O Brasil, que não tinha petróleo, que estava oficialmente proibido de ter
petróleo, passou a ser o maior produtor de petróleo do mundo. Houve logo
superprodução. Felizmente o petróleo não é como o café, que tem que ser
colhido, dê ou não dê preço remunerador. No petróleo, quando há produção em
excesso, as companhias entram em acordo e rateiam — cada uma fica autorizada a
só produzir um tanto. Coisa facílima, aliás, pois basta que se dê uma voltinha
na torneira dos poços para imediatamente a produção cair.
O mercado interno, que até então se
abastecia com petróleo comprado no estrangeiro, passou a ser fornecido
inteiramente com o petróleo nacional. A gasolina caiu de preço. Era em todas as
bombas vendida a 20 centavos o litro; e o óleo combustível, a 10 centavos. Os
agentes secretos dos trustes, que andavam a espalhar por toda parte que quando
o Brasil tirasse petróleo a gasolina seria vendida mais cara que a água de
Caxambu, ficaram desapontadíssimos. Toda gente percebeu que eles não passavam
de espiões dos trustes, encarregados de espalhar a descrença no povo para que
ninguém se lembrasse de pesquisar petróleo e o Brasil ficasse eternamente a
comprar petróleo fora.
Em certas cidades, como Maceió, por
exemplo, o povo, entusiasmado com a torrente de petróleo que brotava do Riacho
Doce e com a gasolina vendida nas bombas
a 20 centavos, agarrou os "caxambueiros" (como eram conhecidos esses
marotos) e os fez passear pela cidade com caraças de burro na cabeça — e no fim
da passeata os jogou na lama dos mangues para serem comidos pelos sururus.
O País entrou a prosperar dum modo
maravilhoso. Todo mundo compreendeu que o nosso emperramento antigo provinha da
falta de circulação. Nada circulava no Brasil, porque não havia transporte e o
transporte é tudo para um país de grande território. Para haver transporte é
necessário que haja combustível abundante e barato ora, como poderia ter
combustível abundante e barato um país que o comprava fora a peso de ouro?
O número de automóveis cresceu
vertiginosamente. O de caminhões de carga, ainda mais. As fazendas adotaram os
tratores de puxar os arados e aposentaram os bois e as mulas. As estradas de
ferro passaram a queimar óleo combustível em vez de lenha e carvão. Os navios
que ainda usavam carvão reformaram as máquinas para só consumirem óleo
combustível.
O supergás, ou gás líquido,
acondicionado em cilindros de ferro, invadiu até as casas da roça. Ninguém mais
cozinhou com lenha: só a gás, como nas cidades grandes.
O petróleo produzido no Brasil,
porém, não ficou por muito tempo limitado ao consumo interno. A primeira
partida negociada foi de 4.000 toneladas do "Donabentense cru", e a
partir desse dia a exportação nunca mais parou de crescer. Basta dizer que no
ano de 1955 o Brasil já estava exportando 1 milhão e 200 mil toneladas. E para
cada 100 mil toneladas vendidas fora ia de lambuja, amarrado de pés e mãos, um
dos antigos "caxambueiros."
A transformação operada no Tucano
Amarelo foi maravilhosa. Aquela vilinha de 200 anos de idade e que jamais
passara de mil habitantes, cada qual mais feio, pobre e bronco, virou uma
esplêndida cidade de 100 mil habitantes, com ruas pavimentadas com o asfalto
produzido ali mesmo, dez cinemas, cinco hotéis de luxo, escolas magníficas e a
Casa de Saúde Dona Benta, que apesar de ser absolutamente gratuita punha num
chinelo as casas de saúde das capitais, que cobram 50 cruzeiros por dia, fora
os extraordinários. Os doentes saíam invariavelmente curados e gordos. A Escola
Técnica Narizinho tornou-se um padrão copiado pelo País inteiro. Os rapazes e
as raparigas que lá se diplomavam em inúmeros ofícios, eram disputados a peso
de ouro. "Aqui se aprende de verdade" era o letreiro que havia na
fachada do estabelecimento — e aprendia-se mesmo.
As estradas do município, feitas por
Dona Benta, atraíam turistas de longe. Duas faixas de concreto, uma para ir e
outra para vir, separadas por uma cinta sem fim de grama tosadinha; de
distância em distância a grama era substituída por um canteiro de flores de
cinco metros de comprimento. Estrada iluminada à noite e com bombas de gasolina
Donabentense de 3 em 3 quilômetros; e estações de consertos de carros, e
pequenos restaurantes muito pitorescos, e "Casas de Abrigo" — uma ideia
de
Narizinho. Nessas casas de abrigo os
viajantes se acomodavam à vontade e como queriam, sem nada pagar.
— Isto é a evolução dos antigos
ranchos de tropeiros — dizia a menina.
E era.
Dona Benta e os meninos costumavam
sair em longas excursões num excelente automóvel que rebocava um trailer
construído sob medida. Que trailer gostoso! Uma verdadeira casinha
ambulante, com tudo que é necessário à vida. Pedrinho guiava o automóvel, com
Emília e o Visconde sempre ao lado. No trailer ia Dona Benta, Narizinho
e tia Nastácia, todas na frescata, e tão a cômodo como se estivessem na casinha
do sítio.
A negra no começo arrenegou de
tantas novidades; por fim acabou gostando.
— A gente não tem remédio senão ir
na onda — dizia ela — E no fim gosta, porque é bom mesmo. Quando Seu Pedrinho
veio com a história do tal supergás lá na cozinha, eu danei, pensando que era
peta. Mas deu certo. Acabou aquela endrômina de acender fogo de lenha, e
assoprar, assoprar, com os olhos ardendo. Agora basta torcer uma torneirinha e
sai um ventinho que pega um fogo azul — e quente como o diabo! Que limpeza! Uma
criatura até fica vadia com tantas facilidades de hoje. E a geladeira, então? É
só botar as coisas ali dentro, puxar um ferrinho e fechar a porta. Gera um frio
lá dentro que até parece o tal polo que Seu Pedrinho conta. A água vira vidro,
de tão dura. Diz que é gelo. E a carne e o peixe não se estragam ali — podem
ficar um tem pão. E esta casinha em
cima de rodas que anda por toda parte? Coisa boa, sim.
Diverte a gente. A gente varia, vê
caras e coisas novas.
Estou gostando, estou gostando,
sim...
Saíam a passeio, às vezes de semana,
sem pressa de chegar, porque a festa não era chegar — era ir andando e parando
aqui e ali, ora para pegar uma borboleta para a coleção da Emília, ora para
Pedrinho tirar um instantâneo, ora para Narizinho (que aprendera a desenhar)
fazer um lindo croquis em seu álbum. Quando passavam por algum rio ou lagoa,
era fatal uma parada para o Visconde fazer sua fezinha à beira d'água com o
anzol. Pescador como ele não havia outro. Ele e tia Nastácia. A preta
sentava-se ao lado do Visconde para ir botando minhoca no anzol.
Num desses passeios encontraram o
Coronel Teodorico.
— Viva, compadre! — exclamou Dona
Benta. — Que novidade a sua presença por estas bandas?
O Coronel estava avelhentado, cheio
de rugas na testa, com ar de quem tinha sofrido muito.
— Pois é, comadre. Quem é vivo
sempre aparece. Ouvi tanta história disto por aqui, que criei coragem e vim
ver. Mas antes não viesse...
— Por quê?
— Porque tudo me confirma as suas
palavras daquele dia, lembra-se? Eu fui um bobo, confesso. Vendi minha fazenda,
pensando fazer um negocião, mas o que fiz foi negócio de sandeu.
— Eu bem disse...
— Disse, sim comadre, e se eu
pusesse tento nas
suas palavras, tudo teria corrido
muito bem. Mas eu era presunçoso, tinha confiança demais em mim e...
— E que aconteceu?
— Acabei limpo, comadre. Os piratas
lá do Rio de Janeiro caíram em cima de mim como piranhas que atacam boi n'água.
Primeiro foi uma compra de bondes que até tenho vergonha de contar...
— Eu sei da história — disse Dona
Benta. O Coronel arregalou os olhos.
— Sabe? Quem lhe contou?
— Li nos jornais. Os jornais do Rio
insistiram muito nesse caso.
O Coronel cocou a cabeça.
— Pois então, ainda pior. Como não
leio jornal, fiquei sem saber disso... Pois é, comadre, comprei aqueles quatro
bondes por 200 mil cruzeiros — e levei na cabeça, porque era conto-do-vigário.
Depois me aprecatei mais. Não adiantou. Os piratas sabem lidar com os bobos da
roça. Houve um que me vendeu por 300 mil cruzeiros uma máquina que era a maior
maravilha deste mundo. A gente botava papel em branco dum lado, e despejava
umas drogas nuns canudos e virava uma manivela — e saía cada nota de 200
cruzeiros que era uma beleza. Mas verdadeiras, sim senhora! Tão verdadeiras que
eu andei com duas delas de banco em banco indagando se eram falsas ou
verdadeiras e todos me confirmaram: "São verdadeiras". E foi então
que eu comprei a máquina maravilhosa de fazer dinheiro verdadeiro — porque o
crime é fazer dinheiro falso. Fazer dinheiro verdadeiro não crime porque o dinheiro é verdadeiro, não é assim?
— E quando recebeu a máquina e foi
fazer dinheiro verdadeiro, errou na mistura das drogas e a máquina explodiu,
não foi isso?
O
Coronel arregalou os olhos.
—
Homem, comadre, a senhora até parece que tem parte com o demo: adivinha as
coisas!... Como sabe duma "consequência" que eu só contei pra minha
velha?
— Sei porque adivinho, está claro...
— respondeu Dona Benta sorrindo.
— Pois adivinhou certo — continuou o
Coronel. — A máquina explodiu, pluf! e lá se foram os meus 300 mil
cruzeiros. Bati o Rio de Janeiro inteirinho atrás do homem que me vendeu aquilo
e nada. Nem sombra.
— Bem — disse Dona Benta. — Temos já
aqui 500 mil cruzeiros lambidos pelos piratas. E o resto?
— O resto foi comido pelo leão e por
uma francesa
— aquela peste!
— Quê história é essa?
— Sim, andei seguindo o leão no jogo
do bicho, a milhares de cruzeiros por dia, durante quase dois meses. Pois há de
crer, comadre, que assim que parei de jogar o desgraçado deu com 64? E o que
escapou do leão caiu no bucho da francesa, uma tal Odete, que depois descobri
que nem francesa, nem Odete era. Me deixou limpo. Então vendi minha casa e vim
ver isto por aqui...
— E a comadre?
— Morreu, coitada. Morreu de
desgosto, depois que a máquina de fazer dinheiro arrebentou...
O Coronel passou a manga do paletó
nos olhos.
— E que pretende fazer agora? —
perguntou Dona Benta.
— Homem, não sei. Estou assuntando.
Para que presta um velho louco e bobo como eu?
— Presta para muita coisa — disse
Dona Benta. — Apareça lá no sítio a semana que vem que lhe arranjo um bom
empreguinho.
— A comadre ainda mora lá mesmo?
— Sim, na mesma casinha de sempre.
— Na mesma casinha? Então, sendo tão
rica, não teve coragem de fazer um palácio?
Dona Benta riu-se.
— Minha casinha, compadre, é o
palácio da felicidade. Não troco nem pelo Buckingham Palace do Rei Jorge VI...
O
Coronel Teodorico ficou a olhá-la com espanto. Depois disse:
—
Ah, comadre, se todos fossem como a senhora, se todos tivessem a sabedoria da
senhora... Como me arrependo de não ter ouvido os seus conselhos!
— Pois apareça e ouça-os, que ainda
é tempo. Despediram-se. Pedrinho pôs o carro em movimento
— e lá se foi o trailer com a
boa senhora na janela, a dizer adeus de mão para o pobre compadre.
Logo adiante encontraram outro
velho, este de boné na cabeça.
— Parece o Chico Piramboia, vovó —
disse a menina.
— É ele mesmo! — gritou tia
Nastácia. — Mas como está importante! De boné...
Pedrinho parou o carro e Dona Benta
chamou o Piramboia.
— Então, que é isso, meu velho?
— Pois isto é a vida, Dona Benta —
respondeu o caboclo. — Depois daquele desastre que me sucedeu, estive mais de
ano no hospital, e por fim fui solto na rua. Mas estava que nem aquele Jó da
Bíblia — sem nada de nada, sem nenhum tostão no bolso. Os malvados me roubaram
os 230 mil cruzeiros e passaram recibo com peroba no meu lombo. Os pestes!...
Mas Deus é grande, Dona Benta. Fui andando e bati lá no meu antigo sítio. Quase
nem reconheci. Tudo mudado, tudo bonito, tudo importante. Eles estavam desmanchando
uma torre de ferro, como essas que a gente vê agora por toda parte. Eu procurei
o chefe dos trabalhos e pedi serviço. Ele olhou bem para mim (era um engenheiro
de perneira) e perguntou para que eu prestava. E eu então fui e respondi:
— "Sempre hei de prestar para
alguma coisa, capinar chão, tratar de burro de carroça, carregar coisas na
cacunda — mas já prestei para negócios muito importantes."
O
"perneira" estranhou minha conversa e deu corda.
—
"Sim — disse eu — já me prestei para os entendidos fazerem no meu lombo
grandes negócios, como o deste sítio que vendi por 230 mil cruzeiros no
contado."
O engenheiro arregalou os olhos.
— "Será verdade? Então foi o
senhor o antigo dono destas terras?"
— "Eu mesmo — Chico Piramboia,
pode perguntar para qualquer."
O homem riu-se dum modo esquisito.
Depois disse:
— "Pois fique sabendo que nos
passou a perna. Compramos estes dez alqueires por 230 mil cruzeiros na certeza
de encontrar petróleo — e já abrimos dois poços sem resultado nenhum. Estamos
agora desmontando a sonda para armá-la numas terras que compramos adiante. Lá,
sim, o petróleo é certo. Isto aqui não vale nada. Você nos passou a perna, seu
barba-rala duma figa. E agora vem rir-se de nós nas nossas ventas, não é?"
Contei para ele então o que me tinha
sucedido — o assalto dos ladrões, o ano e meio que passei no hospital, a minha
vida miserável. E Dona Benta há de crer que o "perneira" teve dó de
mim? Até parece mentira, mas teve. Olhou bem pra minha cara e disse:
— "Bem, se é assim, então o
caso muda — e posso ajudar você. Nossa companhia está construindo muitas obras
lá na antiga fazenda do Coronel Teodorico, onde precisamos duma boa turma de
guarda-poços. Vá lá com este cartão e procure o chefe do serviço. Para guardar
o poço de noite você serve. Não há nada que fazer — é só não ferrar no sono.
Dormir é de dia."
—
Eu fui e me deram serviço na turma de guarda — e de tanto ficar acordado de
noite e dormir de dia, quase virei coruja. Por fim me enjoei daquilo e pedi
outro serviço. Eles então me puseram guarda-diurno, que é como lá dizem.
—
Pois você não pode queixar-se, Piramboia — disse Dona Benta. — Está no seu
empreguinho graças ao petróleo. Quanto ganha por mês?
— Trezentos cruzeiros.
— E quanto tirava por mês quando era
sitiante? Chico Piramboia deu uma risada.
— Mecê está brincando comigo, Dona
Benta! Naquele tempo eu não tirava nada. O que fazia era me endividar na venda
do Elias Turco.
— Isso mesmo. E agora está com 300
por mês, graças ao petróleo. Pois lamba as unhas. Apesar de não haver petróleo
no seu sítio, você pode dizer que foi um dos que tiraram petróleo. É ou não é?
— Lá isso é — concordou o
guarda-diurno.
— E que está escrito no seu boné?
Antes que ele dissesse, Narizinho
respondeu:
— C. G. P. — Companhia Guaxanduba de
Petróleo, a tal que está furando na fazenda do Coronel.
— Isso mesmo — confirmou o caboclo.
— Aquilo lá até parece uma cidade. Já abriram mais de cem poços — mas nenhum
chega aos pés dos seus, Dona Benta. É poço de 30, 40, 50 barris por dia. O
petróleo está mesmo no seu sítio, segundo todos dizem. Eles, lá no Coronel, têm
que abrir um bandão de poços para dar o que dá um Caraminguá sozinho. Mas onde
parece que vai rebentar poço dos macanudos é lá na vertente do Nheco. Está
correndo por aí que ontem acabaram de abrir um que deu 1.500 barris no primeiro
arranco.
— Fico muito satisfeita de saber
disso, porque quanto mais petróleo tivermos por aqui, tanto melhor para todos —
disse Dona Benta. — Francamente, eu andava aborrecida dos meus poços serem os
maiores da zona, de maneira que o que você me conta muito me alegra. Eu também
tenho umas terrinhas por lá...
— Eu sei. O antigo sítio do João
Maleiteiro, que a senhora comprou por 50 mil cruzeiros e todo mundo deu risada.
A senhora é a mulher que enxerga mais longe que eu conheço. Inda é capaz de
tirar desse sítio que custou 50 mil cruzeiros um poder de petróleo de assustar
o mundo...
— E a vila, Chico?
— Vila? Cidade, isso sim! Aquilo
virou uma prepotência de cidade que até dá medo. E tudo lá é petróleo. A antiga
venda do Canhambora virou um armazém de seis portas, com um letreiro assim: AO
TRÉPANO DE OURO. Aquele botequim do Chico Pileque, que só tinha pinga e fumo de
corda, está agora um hotel de seis andares — HOTEL ROTARY MODELO. Mas o mais
bonito de tudo é a ESCOLA NARIZINHO, onde a criançada entra boba e sai mais
sabida que o defunto vigário Padre Pedrosa, que Deus haja.
— Pois é — disse Dona Benta. — Mas
quando abrimos lá no sítio o Caraminguá nº 1 e você foi despedir-se de mim,
lembra-se do que me disse do "criosene?"
Chico Piramboia ergueu o boné e com
a mesma mão cocou a cabeça.
— Lembro, sim, Dona Benta. Eu
duvidei, não nego. Fui um bobo, como todos por aqui, menos a senhora. Mas hoje minha Bíblia é o "criosene." Juro em cima
dele, se for preciso...
— E ainda diz "criosene",
em vez de petróleo?
— Digo só por figuração, para matar
saudades do tempo antigo. Mas nesse ponto já não estou bobo. Sei o que é
petróleo, sei o que se faz dele, sei tanto já, que ainda acabo fazendo uma
sociedade para abrir um poço num lugarzinho que eu conheço...
E como Dona Benta fizesse cara de
curiosidade:
— Para a senhora eu conto — pra
ninguém mais: no sitinho de Nhá Veva, aquela dos ovos. Outro dia estive lá e
tirei uma linha com os olhos, por cima daquele morrinho selado; e sabe onde
bateu a linha*? No eixo do "anticriná" lá do seu sítio! Pra mim —
ninguém me tira da cabeça: o sítio de Nhá Veva é um rabo de
"anticriná..."
Dona Benta despediu-se de Chico
Piramboia e ficou a rir-se.
— Veja, minha filha — disse ela a
Narizinho. — Isto mais um dos milagres do petróleo. Esse pobre Chico, que era o
caboclo mais xucro aqui na zona, já tira linha com o olho e descobre
"rabos de anticlinais..."
— Outro milagre do petróleo — disse
a menina — é a mudança de gênio de tia Nastácia. Olhe o jeitinho dela com o
Visconde. Assim que o trailer parou para a senhora falar com o
Pirambóia, correu para aquele córrego com o Visconde — foram pescar. E veja
como está alegre, contente da vida e remoçada. Até parece uma negra americana
do cinema, das sabidas...
Logo depois tia Nastácia voltou com
uma traíra pescada pelo Visconde. Vinha arreganhando de gosto, com o peixe no
ar.
— Veja que linda, Sinhá! Isto
recheadinho dá um suco...
Dona Benta olhou-a bem e perguntou:
— Nastácia, é verdade que você se
sente feliz?
— Que pergunta, Sinhá — respondeu a
negra — e virou a cara para que não lhe vissem os olhos molhados...
CAPÍTULO
17: A GRANDE FESTA
Meses depois, na cidade do Tucano
Amarelo, só se falava duma coisa: o Poço Quindim nº 1 que a Companhia
Donabentense acabava de abrir no velho sítio de Nhá Veva, vendido a Dona Benta
por 50 mil cruzeiros. Que poço magnífico! Aos 800 metros os perfuradores
atingiram o horizonte petrolífero comum a toda a zona; mas, por sugestão do
Visconde, Mister Kalamazoo não fez caso e tocou para diante.
— "Estou desconfiado que abaixo
desse horizonte existe outro muito mais importante, dissera ele — e Dona Benta
deu ordem ao americano para seguir a ideia do sabuguinho. E o fato foi que a
1.200 metros a perfuração deu num acúmulo de petróleo muitíssimo mais potente.
O poço jorrou com 10 mil barris e foi minguando até estabilizar-se numa
produção de 7 mil barris por dia.
Era acontecimento sensacional,
porque até ali os poços de maior produção tinham sido os cinco Caraminguás
abertos no começo. Dos inúmeros poços das outras companhias só um, na fazenda
do Coronel Teodorico, dera tanto como um Caraminguá — o Guaxanduba nº 7. Em
homenagem ao velho rinoceronte, o poço
de 7 mil barris teve o nome de Quindim nº 1. Graças a ele a Companhia
Donabentense firmou-se como a primeira entre todas, com grande gosto da
população do Tucano Amarelo, porque Dona Benta e os netos só queriam petróleo
para uma coisa: fazer obras públicas de benefícios para toda gente. Nas outras
empresas o sistema era o antigo: encherem-se de dinheiro egoísta, razão pela
qual o povo se antipatizava com elas.
Para comemorar a grande vitória,
Dona Benta deu uma festa que ficou célebre. Um banquete ao ar livre, no pasto
da vaca Mocha, com danças e fogos de artifício no fim.
Todos os seus amigos e conhecidos foram
convidados — e o povo também. Quem quisesse comer até arrebentar, dançar até
não poder mais e assombrar-se com as maravilhas pirotécnicas do famoso
fogueteiro Jucá das Rodinhas, era só ir chegando.
Essa festa lembrou um milagre das
Mil-e-Umas-Noites. Além da comedoria imensa, das montanhas de frutas e doces,
das pipas e mais pipas de vinho, dos tonéis de garapa azeda e cajuada, dos
blocos de marmelada e goiabada e dum queijo em forma de pirâmide mais alto que
dois homens um em pé nos ombros do outro, cada comensal recebia um presente de
valor: relógio, caneta-tinteiro, papagaio, grafonolas e até automóveis. Chico
Piramboia calculou que aquela festa devia ter custado no mínimo 10 mil barris
de petróleo. Mas que é 10 mil barris de petróleo para quem estava tirando dos
seis poços 9.500 por dia? Era um dia e pico de produção, nada mais.
Na mesa principal sentaram-se os
membros da família e as pessoas mais íntimas. A cabeceira foi ocupada por Dona
Benta, com Pedrinho à direita e Narizinho à esquerda. Ao lado de Pedrinho
sentou-se o Visconde, de cartolinha nova, e ao lado de Narizinho sentou-se
Emília, nos trajes habituais que ela adotara desde que começou a exploração do
petróleo no sítio: culote amarelo, perneirinhas, blusa cheia de bolsos e
capacete de cortiça. Depois vinham Mister Kalamazoo e Mr. Champignon; e
finalmente, na outra cabeceira, tia Nastácia e Quindim.
Quem ia fazer o discurso de saudação
era este último.
Quando chegaram à sobremesa, o
rinoceronte levantou-se e disse:
— Minha senhora e meus senhores!
Embora eu não seja o mais qualificado para falar nesta festa, estou cumprindo
ordens da Emília. Era me mandou que falasse, dizendo andar enjoada de discursos
de bípedes. Não fosse isso e eu ficaria lá no meu canto, ouvindo — pois gosto
muito mais de ouvir do que de falar.
— Por isso é que você não diz
asneiras, Quindim! — aparteou Pedrinho.
— Será — continuou Quindim — mas nem
sempre o calor é sábio. Seria, porventura, sábio que Dona Benta se calasse?
Presto muita atenção quando ela fala e nunca percebi em suas palavras
demonstração de outra coisa que não fosse a mais alta sabedoria.
Emília sussurrou para Narizinho:
"Ele está adulando Dona Benta para ver se pega um lugar na
Diretoria..."
— Sabedoria sim, meus amigos —
continuou Quindim — porque Dona Benta é uma verdadeira filósofa, não digo como
Sócrates, que só conheço por ouvir falar, mas como o saudoso Kalavaka, o
rinoceronte mais sábio da minha tribo lá no Uganda. Eu tenho um meio prático de
conhecer a verdadeira sabedoria: é medir os resultados que ela dá. A sabedoria
de dona Benta deu como resultado final a felicidade completa que todos gozamos
aqui, vocês homens e nós animais — eu, a Mocha, o Burro Falante, os passarinhos
aí do mato nunca perseguidos por ninguém. Eu, por exemplo, só vim encontrar a
verdadeira felicidade aqui.
Minha vida no Uganda era um perpétuo
desassossego. Além das lutas entre nós mesmos, dentro do bando, havia o pavor
dos homens de capacete de cortiça que nos furavam o couro com balas dundum.
Depois fui escravizado e andei a correr mundo num circo, exibindo meu corpanzil
aos basbaques dentro duma jaula de ferro. Senti-me grandemente desgraçado nesse
período de minha vida. A liberdade é o maior dos bens. Afinal fugi, corri pelas
matas às tontas até dar com os costados no sítio de Dona Benta.
Emília me descobriu e tomou conta de
mim. Fez-se minha aliada e minha amiga. Tia Nastácia teve muito medo do meu
chifre, mas hoje está uma grande camarada. Todos se tornaram meus amigos — e
minha vida sossegou. Vivo numa perfeita beatitude. Se me perguntarem onde é o
céu, responderei: aqui!
E por que é assim? Por causa da
sabedoria de Dona
Benta, que é a aura misteriosa que
tudo dirige neste abençoado pedacinho de mundo. Não tenho mãos como os demais
presentes, e por isso não posso erguer a taça de cajuada que Emília botou
diante de mim para eu bebê-la à saúde de Dona Benta e dos seus queridos netos —
e da Emília, e do Visconde, e de tia Nastácia, e aqui destes amigos da América.
Mas trocarei essa saudação pela que usamos lá no Uganda, entre os da minha
raça; um urro — Muuuuuu...
O urro de Quindim foi tão
formidoloso que o pânico se estabeleceu nas outras mesas. Que correria! Que
atropelo! Pedrinho teve de trepar em cima dum tonel e berrar com um
alto-falante na boca:
— Calma, pessoal! Não foi nada!
Apenas a saudação à vovó feita por Quindim, à moda do Uganda. Calma! Calma!
Todos aos seus lugares!...
Os convivas foram voltando para suas
mesas, muito ressabiados. Urro como aquele jamais tinham ouvido por aquelas
paragens.
O discurso de Quindim recebeu palmas
de todos. Para um rinoceronte, estava de primeira ordem.
— E agora, quem fala? — gritou
Pedrinho.
— Eu! — berrou Emília, levantando-se
de co-pinho em punho.
Mas a menina protestou:
— Não, senhora! Primeiro os mais
velhos. Tem a palavra Mister Kalamazoo.
O americano levantou-se muito
vermelho e louro.
— Só sei furar poços — disse ele. —
Para discursos não presto. E ainda que prestasse, que poderia eu dizer, mais do
que disse esse prodigioso rinoceronte que acaba de falar? Sim, dona Benta é um
poço de sabedoria. O trépano do estudo e da meditação desceu até às camadas
mais profundas onde se acumula a ciência da vida. Vou confessar uma coisa:
quando cheguei até cá, vim pago para sabotar todos os poços que Dona Benta
quisesse abrir. Mas não tive coragem. Tudo me seduziu tanto, encontrei
caracteres tão nobres, que até me envergonhei da minha primitiva intenção. E
transformei-me. Passei a trabalhar como o mais leal dos homens, como o
resultado dos meus serviços o demonstra. Viva Dona Benta! Vivam os seus netos!...
Palmas e bravos cobriram as últimas
palavras do sabotador que não teve ânimo de sabotar.
— Fale agora Mr. Champignon! —
gritou Narizinho.
Mr. Champignon levantou-se, todo
risonho.
— Meus amigos — disse ele — eu
igualmente fui contratado para sabotar de parceria cá com o amigo Kalamazoo.
Mas também não tive coragem. Quem poderá ter coragem de prejudicar uma senhora
de tão altos espíritos, como Dona Benta; ou um menino tão empreendedor e
sincero, como Pedrinho; ou um encanto de menina, como Narizinho; ou esse
prodígio da Natureza, que é a Emília; ou o Senhor Visconde de Sabugosa, o mais
profundo geólogo que ainda topei na vida; ou essa tia Nastácia, que é uma
quituteira do céu; ou ali o amigo
Quindim, o mais nobre dos
rinocerontes? Quem? Até o pérfido lago, se por cá aparecesse, não teria coragem
de permanecer mau. A bondade humana tem isso consigo: seduz, arrasta, converte,
catequiza. Eu fui um homem como os outros, com as qualidades e defeitos do
comum. Mas mudei — o sítio de Dona Benta me mudou. Meu coração está limpo de
maldade. O ambiente são aqui do sítio decantou minha alma...
(O Visconde explicou a Pedrinho que
decantar era uma expressão usada pelos químicos para significar destilar.)
— E, portanto, nada mais tenho a
fazer senão comungar com Mister Quindim e Mister Kalamazoo no hino de louvor
que ergueram a Dona Benta, a boa fada que preside os destinos de todos nós!...
— Bravos! Viva Mr. Champignon! —
gritaram os meninos.
Dona Benta agradeceu com um sorriso
luminoso de bondade.
— Agora tia Nastácia! — gritou
Narizinho.
A negra, de vestido novo, engomado,
levantou-se com o maior desembaraço e disse:
—
Falar bonito como os outros eu não sei. Só sei cozinhar...
—
E botar minhoca no anzol do Visconde também! — aparteou Emília.
— Isso também faz parte do cozinhar
— respondeu a preta — primeiro a gente pega o peixe, depois é que escama e
frita. Sei tudo que é de cozinha, e meu gosto é quando
faço um prato e vejo a criançada lamber os beiços de gosto.
— Beiço é de boi — aparteou Emília.
— Gente tem lábios...
— Essa pestinha quer me atrapalhar,
mas não me atrapalha, não. Quem fez ela fui eu. De pano — mas depois o pano
gerou carne e hoje está uma gente pura — só que mais atropeladeira que os
outros.
— Isso não é discurso, Nastácia —
disse Narizinho.
— Dei a palavra a você para fazer um
discurso como o dos outros.
— Discurso não sei fazer, porque não
tenho estudos. Dizer coisas bonitas sobre Dona Benta também não sei. Só sei
beijar a mão dela — e correu, com os olhos rasos de lágrimas, a beijar a mão de
Dona Benta.
Todos se comoveram, inclusive
Quindim, que pingou uma lágrima do tamanho duma jabuticaba na bacia com capim
picado que Emília pusera na sua frente.
Dona Benta abraçou a preta, dizendo:
— Sim, minha negra. Você, além de
ser a minha grande amiga, é a outra avó dos meus netos...
— Agora fale Pedrinho! — gritou a
menina. Pedrinho levantou-se com o garbo dum Peter Pan.
— Vovó, à sua saúde! — disse ele
erguendo o copo.
— Meu desejo é que a senhora pare
onde está — e não morra nunca. A senhora é a maior das avós do mundo inteiro —
e agora com o petróleo, é a mais rica. A senhora nos tem ensinado tudo. A
senhora é tudo para nós. A senhora é a Avó Número 1! Viva vovó!
— Viva! Viva!...
— Um dia — continuou Pedrinho — eu
hei de realizar uma ideia que tenho na cabeça: erguer um monumento a vovó.
Narizinho, que é desenhista, está fazendo o esboço. É assim: Bem no alto, a
estátua de vovó, de óculos, sentada na cadeirinha de pernas curtas, com um
livro no colo, eu dum lado, Narizinho de outro, Emília e o Visconde aos pés. À
direita, com a cabeça na altura do ombro de vovó, tia Nastácia fritando um
peixe: à esquerda, com o chifre na altura dos joelhos de vovó, Quindim deitado,
com a cabeçona entre as patas. Essas figuras ficarão dispostas em grupo em cima
dum grande cubo de mármore com altos relevos de três lados e esta inscrição
numa placa de bronze:
A DONA BENTA E. DE OLIVEIRA,
DESCOBRIDORA DO PETRÓLEO NO BRASIL,
E AVÓ DE PEDRINHO E NARIZINHO,
OFERECE A PÁTRIA AGRADECIDA.
— Por que esse "E."
abreviado no nome de Dona Benta? — perguntou Emília.
— Porque fica feio gravar no bronze
o sobrenome por extenso. Encerrabodes é uma idiotice de sobrenome que faz toda
gente dar risada. Poremos E. só — e quem ler fica pensando que é Eduarda,
Edviges, Emerência, Eulália ou qualquer coisa mais decente que o Encerrabodes...
— E nos outros lados do cubo de
mármore?
— Nos outros três lados do cubo de
mármore vão altos relevos representando cenas aqui do sítio. Num aparecemos
todos nós fugindo da chuva de petróleo do Caraminguá nº 1. Noutro, a cena do
Quindim sentado em cima do cano para escorar o petróleo que queria sair. E no
terceiro...
— No terceiro, eu comandando os meus
aviões "Faz-de-Conta!" — berrou Emília.
— Não, senhora! — protestou
Pedrinho. — A senhora já está lá em cima, aos pés de vovó. Os altos-relevos são
de cenas passadas aqui. Poderá ser, por exemplo, o banho de petróleo do tal
jornalista. Esse ponto resolveremos depois.
— Só isso?
— Não. Ainda há mais. Esse grande
cubo de mármore assenta-se em cima da multidão dos "caxambueiros" e
mais negadores e sabotadores do petróleo do Brasil. O escultor poderá
representá-los sob forma dum conglomerado de cretinos e safados, uns por cima
dos outros, de língua de fora e olhos pulando das órbitas, porque estarão
esmagados pelo peso do bloco de mármore. Que tal meu monumento?
Todos acharam-no ótimo.
— Pois é isso! — concluiu Pedrinho.
— Ergueremos esse monumento no pasto da Mocha, isto é, aqui onde estamos, para
"edificação dos pósteros", como diz o Visconde. Tenho dito.
E sentou-se.
Palmas e gritaria acolheram a
maravilhosa ideia de Pedrinho.
— Está um suco! — disse Emília.
— Silêncio! — gritou Narizinho. —
Agora quem vai falar é Sua Excelência o Senhor Visconde de Sabugosa do Poço
Fundo. Tem a palavra o Senhor Visconde...
O
Visconde levantou-se, mas como era muito pequenino teve de ser plantado em cima
da mesa.
—
Enfie o cóccix dele na garrafa barriguda! — gritou Emília — e Pedrinho assim o
fez: fincou o Visconde na boca duma garrafa de cristal bojuda.
Apesar do incômodo da posição, que o
deixara de pés soltos no ar, o Visconde fez o seu discursinho.
— Meus senhores e minhas senhoras! —
disse ele. Eu quisera ter a eloquência de Cícero para colocar-me na altura dos
oradores que me precederam; mas não foi a Musa da Eloquência quem presidiu ao
meu nascimento.
— Foi tia Nastácia! — gritou Emília.
— Sim, foi ela, a boa preta que
mantém a paz dos estômagos dos moradores deste sítio. Sou filho de tia
Nastácia, confesso...
— Credo! — Murmurou a negra,
benzendo-se.
— E, no entanto, por um desses
misteriosos caprichos da natureza, sou um caso de filho que nada tem de comum
com a sua progenitora. Não entendo de cozinha e nem sequer como. Meu pendor
sempre foi científico. A ciência me atrai dum modo incoercível. No começo
dei-me à Filologia: hoje dou-me à Geologia. E sabem por que mudei? Por uma
razão econômica. A filologia não aumenta
a riqueza dum país, ponderei eu com os meus botões.
— Com os meus carocinhos de milho! —
emendou a boneca.
— Mas a Geologia aumenta. É uma
ciência que conduz a resultados práticos, positivos, de grandes reflexos
econômicos. Em que nos enriquece, por exemplo, saber que a palavra ontem
vem de à noite? Em nada. Mas saber que em tal ou tal terreno existem
condições para o acúmulo do petróleo, isso sim, enriquece. Pelo menos
enriqueceu Dona Benta. Se não fosse a nossa mania geológica, não teríamos
descoberto o anticlinal dos Caraminguás — e não estaríamos hoje nadando em
dinheiro e fazendo a felicidade deste pobre povo, que até aqui viveu descalço,
analfabeto e na maior penúria.
O Visconde bebeu um golinho d'água e
continuou:
— A Geologia, meus senhores e
senhoras, é a ciência do solo e do subsolo — e é no subsolo que se acumulam as
maiores riquezas dum país. O solo, que é? Apenas uma superfície. E o subsolo? O
subsolo é uma cubagem, é uma massa que vai desde a superfície até o centro da
terra. Vou dar um exemplo. Um alqueire de terra não passa de 24.200 metros
quadrados de chão, ou de superfície. Mas um alqueire de subsolo é uma massa
volumétrica que desce até o centro da terra. Hoje o homem explora
comercialmente o subsolo até 3.000 metros de profundidade; temos, portanto, que
um alqueire de subsolo comercialmente explorável cor responde a uma massa de
24.200 metros cúbicos multiplicados por 3.000 — ou sejam 72.600.000 metros cúbicos!
— Puxa! — exclamou Pedrinho.
— Pois bem: essa imensa massa de
subsolo, que corresponde a apenas um alqueire de superfície, encerra inúmeros
minerais utilíssimos ao homem, e que, portanto, constituem o que chamamos
Riqueza. Os Estados Unidos são o país mais rico do mundo porque compreenderam
isso e lançaram--se à exploração das reservas do subsolo. Eles extraem do
subsolo, por ano, produtos no valor de 6 bilhões de dólares, ou sejam mais de
100 bilhões de cruzeiros na nossa moeda! E nós no Brasil? Que é que extraíamos
do nosso subsolo, antes da abertura do Caraminguá nº 1?
— Minhocas! — berrou Emília.
— Exatamente — concordou o Visconde.
— Só extraíamos minhoca — e por isso éramos um povo tão pobre. Mas agora tudo
começou a mudar. Graças ao que fizemos no sítio, a corrida ao subsolo está
iniciada — e não parará mais — e fará do Brasil o grande País que ele merece
ser. Tenho dito.
— Bravos! Bravos ao sabuguinho
científico! — gritaram todos.
— Interessante! — observou Dona
Benta. — O Visconde até num discurso de brincadeira revela-se o sábio de sempre
e nos dá lições. O que ele disse é rigorosamente certo...
CAPÍTULO
18: O TRIUNFO DE DONA BENTA
— Agora eu! — berrou Emitia, ansiosa
por botar a sua colher no banquete.
— Pois seja você — disse Narizinho. —
Tem a palavra a Senhora Emitia de Rabicó...
Emitia deu um salto para cima da
mesa, com tal estabanamento que caiu abraçada a um peru recheado, sujando-se
toda de gordura. Mas não fez caso, tal era a sua gana de falar. E não veio com
os preâmbulos do costume. Foi logo ao assunto principal.
— Estou com uma ideia ótima! — disse
ela. — Talvez a melhor ideia de toda a minha vida...
— Lá vem asneira! — rosnou Pedrinho.
— Uma ideia do tamanho da torre do
Caraminguá! — prosseguiu Emitia. — Uma ideia de gênio!...
— Escorropiche logo essa ideia e não
caceteie — disse Narizinho. — Vovó já está com sono.
— Vou dizer — continuou Emitia. —
Minha ideia é organizarmos um "triunfo romano" para Dona Benta. Que
tal?
Todos se entreolharam; ninguém havia
entendido.
— Sim, um triunfo romano — o
"Triunfo de Dona
Benta"! Ela e todos nós
montados no Quindim, ela com um cetro na mão e nós com bandeiras, e faremos uma
entrada triunfal pelo meio desse povaréu que está comendo e bebendo à tripa
forra. Na frente botamos Mister Kalamazoo e Mr. Champignon na posição da
Estátua da Liberdade, segurando fogos-de-bengala para iluminar o caminho. Atrás
do Quindim, tia Nastácia com um tridente, feito Netuna, para ir cutucando
Quindim quando ele parar. E na rabeira, o pessoal todo da Donabentense, com
archotes. E mais coisas que no momento lembrarei. Que tal?
— Ótima a ideia, Emília! — gritaram
Pedrinho e Narizinho, entusiasmados.
— Poderemos, por exemplo — continuou
Emília — pintar na testa de Quindim estas letras famosas: S. P. Q. R.
— Que significam? — perguntou a
menina.
— Não sei, mas eram usadas nos
triunfos romanos. Tia Nastácia diz que querem dizer: São Pedro Quer Rapadura,
mas acho que deve ser outra coisa.
— É outra coisa, sim — disse Dona
Benta. — Essas letras são as inicias do célebre dístico romano: Senatus
Populusque Romanus — o Senado e o Povo Romano.
— Pois é isso — gritou Emília. — O
Senado é a senhora e o Povo Romano somos nós. Que tal minha lembrança?
Todos a acharam ótima, e
levantaram-se da mesa em atropelo para a organização do Triunfo de Dona Benta.
Com a boa vontade dos meninos e o
faz-de-conta da Emília, meia hora depois o cortejo começava a desfilar.
Na frente marchavam os dois
americanos, queimando no ar fogos-de-bengala de cores vivíssimas. Dona Benta ia
escarrapachada no congote de Quindim, com um cetro de cabo de espanador na mão,
tendo à esquerda Narizinho, vestida de "Neta nº 1" e à direita
Pedrinho vestido de "Neto nº 1" — tudo invenções da Emília. O
Visconde, entrajado de geólogo, vinha de pé, com as mãos na cintura, sobre a
anca do rinoceronte. Tia Nastácia vinha atrás, com o cabo de vassoura em punho
para volta e meia dar um cutucão em Quindim.
E Emília?
Ah, Emília ocupou o seu lugarzinho
de sempre, montada no chifre do paquiderme, cujo corpo, forrado com uma colcha de
seda amarela do tempo do imperador, estava todo ornamentado de guirlandas de
flores. Emília trazia na mão uma grande coroa de rosas.
Atrás de Quindim vinham todos os
operários e empregados da Companhia Donabentense, com archotes acesos —
archotes embebidos no petróleo cru do Caraminguá nº 1.
O "triunfo" causou
tremendo efeito no povo reunido em redor das numerosíssimas mesas espalhadas
pelo pasto da Mocha. Os maldizentes tiveram vontade de dizer que aquilo não
passava duma caduquice de Dona Benta, mas ao se lembrarem da sua renda diária
de 9.500 barris de petróleo, emudeceram; engoliram a irreverência e juntaram
suas palmas e berros às aclamações delirantes dos milhares de comensais.
— Viva Dona Benta, a benfeitora do Tucano Amarelo!
— Viva! Viva!...
— Vivam os netos de Dona Benta,
essas duas delícias do gênero humano!
— Vivam! Vivam!...
— Viva o Visconde de Sabugosa, o
geólogo dos geólogos!
— Viva! Viva!...
— Viva a Marquesa de Rabicó!
— Viva! Viva!...
O cortejo seguiu solenemente na
direção do Caraminguá nº 1, acompanhado pela multidão dos comensais em delírio.
Lá, defronte da sonda, Quindim parou e Dona Benta pediu a Mister Kalamazoo que
pegasse a coroa de rosas das mãos da Emília e a colocasse na torre, com o
letreiro que Pedrinho traçara em letras de ouro num quadrado de papelão.
Mister Kalamazoo assim fez. Pendurou
na torre a coroa de rosas e prendeu por baixo o letreiro de Pedrinho.
SALVE! SALVE! SALVE!
DESTE ABENÇOADO POÇO - CARAMINGUÁ Nº 1
SAIU NUM JATO DE PETRÓLEO
A INDEPENDÊNCIA ECONÔMICA DO BRASIL
Todos correram a ler.
Novas palmas, novos bravos, novos
hurras acolheram aquela inscrição em letras de ouro e com um significado de
ouro.
Mas Dona Benta, que não podia de
sono, apenas disse:
— AMÉM...
E mandou Quindim tocar para casa.
Foi dormir.
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