Inácio Peroba era um infeliz pescador, homem
muito caridoso, honrado e de excelente coração. Tendo se casado cedo, sua
mulher mimoseou-o com muitos filhos. Além deles, tinha de alimentar alguns
sobrinhos órfãos, sua velha mãe e seu sogro. Por isso, a pesca, de que sempre
vivera, até então, já lhe não bastava para sustentar tão numerosa família, e
ele vivia desesperado.
Um dia, foi pescar, como costumava. Debalde
lançou as redes ao mar, repetidas vezes, durante todo o dia: nem um só peixe,
por mais pequenino que fosse, conseguiu apanhar. Ao anoitecer, regressava
tristemente para casa, quando a poucas braças da canoa, viu um robalo deitar a
cabeça fora da água. E foi com espanto que o pobre homem ouviu o peixe dizer:
— Inácio Peroba, se prometeres trazer-me o
que encontrares quando chegares à casa, lança as redes na água...
Peroba prometeu, lembrando-se que, assim que
chegava, de volta da pesca, a primeira coisa que lhe aparecia era a cadelinha
Mimosa. Atirou as redes, e recolheu tanto peixe, tanto, que encheu a
embarcação.
Chegando à casa, a primeira coisa que viu foi
um filhinho, que nascera em sua ausência.
O pescador ficou triste; mas, como era homem
de honra, cumpriu fielmente a sua palavra. Dizendo à mulher que ia dar a
criança a criar, levou-a à praia, e jogou-a no mar.
A criança não morreu. Mal as águas se tinham
aberto, apareceu uma grande concha, puxada por peixes, que a apararam,
levando-a para o palácio do rei.
***
O menino cresceu. Haviam-no batizado com o
nome de Remi.
Quando tinha cerca de vinte anos, o rei
chamou-o e disse-lhe:
— Vou fazer uma viagem de quinze dias. Fica
com as chaves do palácio, mas não abras porta alguma, senão matar-te-ei quando
chegar...
O rapaz não pôde conter-se. Assim que o
soberano dos Peixes partiu, abriu a porta de um quarto. Dentro havia três
grandes caldeirões – um com ouro fervendo, outro com prata e o terceiro com cobre.
Abriu novo quarto, e viu três cavalos muito gordos – um preto, um
russo-queimado e um alazão, comendo carne fresca, em vez de capim. Abriu o
terceiro, onde se achava um grande e gordo leão, que, ao contrário dos cavalos
tinha capim para comer, e não carne. Por último, abriu o quarto aposento. Viu
uma bonita mesa de escritório, com as gavetas cheias de papelinhos brancos e
verdes, dobrados, e armas de toda a espécie.
O rapazinho, como era arteiro, quis trocar a
comida dos animais, dando capim aos cavalos e carne ao leão, mas o alazão
falou:
— Não faças isso. Teu padrinho te matará,
quando chegar. Agora, se quiseres sair daqui, vai ao quarto onde está a mesa:
tira dois papéis – um azul e outro branco; veste-te com a melhor roupa que
encontrares; pega numa boa espada; monta num de nós, e leva o outro pela rédea,
sai do palácio, mergulhando primeiro a cabeça no caldeirão de ouro. Teu
padrinho, ao regressar, há de ir ao teu encalço. Assim que estiver quase a
pegar-te, larga um dos papéis; mais tarde o outro; e deixa o resto por nossa
conta.
Remi obedeceu pontualmente, depois de ter
dourado os cabelos, que ficaram lindíssimos. Montou o alazão, e foi puxando o
russo-queimado.
Seguiu viagem a todo galope. Ao cabo de vinte
dias, o rei dos Peixes chegou ao palácio. Vendo que o afilhado fugira, cavalgou
o preto, e foi à sua procura.
Depois de muito andar, avistou-o. Então o
cavalo alazão disse a Remi que largasse o papelzinho branco. Imediatamente
formou-se espesso nevoeiro, que o rei a custo furou. Quando o conseguiu, o
rapaz já estava longe.
Dando de esporas, já ia de novo o alcançando,
mas Remi, a conselho do alazão, abriu o papel verde. Formou-se um espinhal.
O rei disse para o cavalo preto:
— Se conseguires passar comigo este espinhal,
eu te desencantarei.
— Tira-me, então, os arreios, respondeu o
animal.
Mas, quando iam chegando ao meio, o cavalo
atirou-o ao chão, e seguiu sozinho.
Passados alguns dias mais, chegaram perto de
uma cidade.
Aí o cavalo alazão tomou a palavra:
— Nós vamos ficar aqui encantados em pedras.
Deixa conosco tua roupa e tuas armas, e continua sozinho. Mais adiante
encontrarás um boi morto; abre-o; tira-lhe a bexiga, e cobre com ela a cabeça
para esconder os cabelos. Vai e segue tua vida. Quando precisares de nós,
procura-nos.
O rapaz executou aquelas recomendações.
Chegado à cidade, encontrou um palácio. Falou
ao jardineiro, que estava trabalhando, e pediu-lhe emprego. O jardineiro
aceitou-o como ajudante, e o moço ficou empregado.
No palácio toda a gente gostava dele, porque
Remi era bom trabalhador, mas achavam-no muito esquisito por não ter um só fio
de cabelo. Por isso chamavam-no “o Moço Pelado”.
Uma vez, julgando-se ele a sós, tirou a
bexiga de boi, e apareceu com os seus lindíssimos cabelos de ouro. A mais moça
das filhas do rei, viu-o e ficou apaixonada.
Tempos depois, houve importantes cavalgadas,
às quais toda a gente compareceu.
O Moço Pelado, que havia ficado sozinho, mal
viu o palácio deserto, correu para onde estavam os cavalos, e contou-lhes tudo.
O russo-queimado surgiu deslumbrantemente
arreado. O rapaz vestiu-se com roupas próprias, e entrou na liça, onde ganhou
os prêmios, oferecendo a argolinha de ouro à filha mais moça do rei.
Ninguém sabia quem era aquele formoso mancebo
de cabelos de ouro, montado num cavalo sem igual. Só a princesinha foi quem
ficou meio desconfiada, e por isso mesmo, mais apaixonada.
No segundo dia ocorrera-se novas cavalgadas.
O rei, querendo saber, a todo custo, quem era o misterioso cavaleiro, que
excedia a todos em garbo e valentia, conquistando os prêmios, mais ricamente
vestido, e montando o melhor animal, mandara um numeroso batalhão para
prendê-lo.
O Moço Pelado, mesmo assim não se mostrou
receoso. Entrou na arena; e, dado o sinal de partida, avançou na frente de
todos, ganhando ainda desta vez, a argolinha de ouro.
Como no primeiro dia, ofereceu-a à princesa,
e, fazendo um cumprimento geral, disparou o cavalo que voou por cima dos
soldados, espantados com aquela audácia e ligeireza.
No terceiro e último dia de festa, tudo
sucedeu como nos antecedentes, com a diferença que havia mais gente, e que
soldados armados de baionetas, em maior número, foram colocados em todas as
saídas, a fim de evitar a fuga do jovem cavaleiro.
Remi, porém, sempre confiado e protegido
pelos três cavalos encantados, ganhou o prêmio e conseguiu safar-se, sem que o
atingissem as pontas das baionetas e o chuveiro de balas disparadas contra ele.
Nunca se soube, e nem se desconfiou sequer
quem fosse o vencedor das cavalgadas. Apenas a princesinha tinha uma ligeira
suspeita de que era o ajudante dos jardins reais, o guapo e formoso mancebo.
Entretanto nada disse, e as coisas continuaram no ramerrão diário.
***
Passados tempos, o rei anunciou que, quem
matasse uma fera terrível que desde muitos anos devastava o país, causando toda
a sorte de horrores e estragos, casaria com sua filha mais velha.
Sabendo disso, Pelado foi consultar o
russo-queimado, que lhe disse:
— Arranja um espelho, que colocarás no meu
peito, e vai dar combate ao bicho. Quando ele vir a sua imagem reproduzida,
ficará atrapalhado; e poderás, então, matá-lo.
A coisa passou-se como dissera o cavalo.
No dia seguinte, a fera amanheceu morta.
Ninguém se acusou, todavia, como tendo sido o
autor, e o monarca julgou-se dispensado de cumprir a palavra.
Resolvendo casar as três filhas no mesmo dia,
mandou que elas escolhessem noivos.
As duas mais velhas quiseram dois poderosos
príncipes, ao passo que a mais moça declarou terminantemente que só se casaria
com o Moço Pelado, ajudante do jardineiro real.
O rei, como a estimava muito, não teve
remédio senão aceitá-lo como genro. Ordenou que se preparasse um grande
banquete, no qual todas as aves seriam caçadas pelos seus futuros genros.
Mas nenhum deles, a não ser o Moço Pelado,
nada conseguiu matar. Um dos príncipes, encontrando-o no mato, carregado de
caça, e não o conhecendo, propôs-lhe comprar tudo, ao que ele acedeu, exigindo,
porém, recibo.
Na ocasião do banquete, o rei pediu que cada
um dos genros contasse uma aventura curiosa, que lhes houvesse sucedido.
O primeiro, levantando-se, tirou do bolso o
cotoco da língua da fera, e declarou:
— A maior façanha que tenho feito em toda a
minha vida, foi matar o bicho que assolava o país. Não o disse naquela época,
por modéstia.
O segundo, tomando a palavra, disse:
— Tenho feito muita coisa notável, que não
quero lembrar. Direi apenas que fui eu quem caçou todas essas aves que estamos
comendo.
Todos os convivas aplaudiram muito os altos
feitos de tão valentes príncipes.
Chegando a vez de Remi, falou ele:
— E eu tenho a dizer que esses dois moços
mentiram descaradamente. A prova é que, o que o primeiro apresentou, foi o
cotoco da língua, porque quem matou a fera fui eu, e aqui mostro a ponta.
Quanto às aves, eis o recibo que me passou o segundo, o que demonstra que
também fui eu quem as caçou.
Dizendo isso, arrancou a bexiga de boi que
lhe cobria a cabeça, e apareceu com os seus formosos cabelos de ouro,
reconhecendo-se, assim, nele o moço misterioso das cavalgadas, para vergonha
dos dois príncipes intrujões.
Os três cavalos desencantaram-se, tendo
cumprido a missão que lhes fora destinada de proteger o filho de Inácio Peroba.
---
Ano de publicação: 1896.
Origem: Brasil (Reconto)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)
Nenhum comentário:
Postar um comentário