Houve, outrora, um homem que apenas possuía
de seu um livro de Medicina.
Com isto resolveu ganhar a vida e fazer
fortuna. E com menos sabedoria a têm feito outros. Não é pois para admirar que
tal pensamento lhe viesse à cabeça.
Saiu de casa com o alfarrábio debaixo do
braço. E de tal maneira se houve que, em pouco tempo, criou grande fama.
Corria gente de toda a parte para consultar o
notável Médico, e o dinheiro corria também à proporção. Ia num sino a fortuna
do homem.
Depois de ter curado muita gente, foi o
doutor chamado a casa dum nobre e rico senhor, que estava com um forte
catarral. Entrou, franziu a testa e, depois de meditar alguns instantes, mandou
que matassem um cordeiro e que sem demora lhe trouxessem a pele. As ordens do
sábio foram logo cumpridas, e ele, quando lhe entregaram o que pedira, enfiou a
pele na cabeça do padecente. Ia morrendo asfixiado, mas afinal curou-se, de
tanto suar com o extravagante remédio.
Cresceu, com esta maravilhosa cura, a fama do
ilustre curandeiro. A família do doente tecia muitos louvores à sua perícia e
delicadeza, e o próprio Fidalgo não se cansava de o elogiar.
Por esse tempo veio uma grande malina, e os
hospitais estavam cheios a mais não poder ser. Iam os Médicos verdadeiros,
curavam que não curavam, mas os hospitais enchiam-se e já não havia onde
recolher os infelizes. Foi chamado o grande homem para ir ao primeiro hospital
e dar algum remédio ao triste estado de coisas a que se chegara. Entrou,
revestido de toda a importância e, fazendo uma rápida visita aos doentes,
disse:
— Este, aquele e aqueloutro estão irremediavelmente
perdidos, e então nem vale a pena tratá-los. Serão queimados. E com a cinza
curam-se os que estão melhorzitos.
Os doentes, que ouviram a sentença
condenatória e não sabiam quem seria queimado, saltaram logo das camas e todos,
sem esperar a escolha, fugiram do hospital, mais ou menos ligeiramente,
conforme as suas forças lhes permitiam. Muitos, que nem podiam fugir, morreram
de susto. Mas isto é que não constou cá fora. Pelo contrário: a fama do homem
cresceu a ponto de dizerem que era tão bom médico e tão sábio que lhe bastava
aparecer para curar os enfermos.
Tal fama correu mundo até chegar, devidamente
correta e aumentada, ao Palácio real onde a Rainha estava, havia já três dias,
em perigo de vida. Dera-se o caso da nobre Senhora ter tido pouco cuidado
quando estava jantando. E assim atravessara na garganta um osso que não
passava, nem para baixo nem para cima, e a não deixava comer nem falar.
Foi mandado chamar o notável Médico e
conduzido em carruagem até ao Palácio real, porque todas as honras eram devidas
a tão grande lumiar da Ciência. Entrou no quarto de Sua Majestade com todo o
desembaraço e sangue frio autorizados pela eficácia dos seus enérgicos
remédios.
Pediu uma quantidade de barro amassado em
água, mandou sair toda a gente do quarto, e depois, sem mais cerimônias,
obrigou a senhora a voltar-se, e pespegou-lhe com uma chapada de barro nas
costas. A Rainha voltou-se cheia de indignação. E tal esforço fez para falar,
que logo o osso lhe saltou pela boca fora.
Foi uma alegria enorme no Palácio ao verem a
Rainha salva daquele perigo. E o nosso herói, cumulado de fazendas e honras,
saiu triunfante e ainda com maior fama, se possível!
Enfim, o homem foi sempre feliz. Considerado
na vida e chorado na morte por toda a gente. E ainda hoje se contam os seus
atos de sabedoria.
A audácia, quando feliz e usada a tempo,
também faz milagres... se Deus os consente.
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Origem: Portugal.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)
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