O LOBISOMEM
Viajava eu numa dessas estradas de serra
abaixo, tão incômodas pelos constantes lameiros e pântanos, nos quais os
cavalos se enterram, às vezes até o peito.
Descambava o sol ao ocaso e já me sentia
enfadado com a monotonia da paisagem, baixa, uniforme, apresentando sempre os
mesmos mangues de vegetação arcaica que recordam a de épocas geológicas
decorridas, a mesma pobreza de cultura, os mesmos ranchos de sapê atufados na
capoeira e com um magote de crianças magras e lambuzadas à porta.
Meu camarada (é o nome que se dá ao criado
que acompanha o viajante e trata dos animais) nascera ali mesmo, em Iguaçu ou
Itaguaí. Conhecia a palmo as paragens que atravessávamos, e de vez em quando me
esclarecia sobre aquela insípida região, me prestando informações interessantes
acerca dos bípedes que ali viviam.
Cândido era o nome de meu camarada, que
também acudia ao chamado de Bigode, alcunha que lhe puseram.
Caminhando chegamos a uma pequena mas bem
construída casa que estava em completo abandono. A casa estava rente à estrada
e tudo indicava que ali ninguém residia haveria já anos. Uma das janelas da
sala da frente fora arrancada e estava a terra. O vento levara algumas telhas e
abundante vegetação invadia o pequeno terreiro e cobria os três degraus que
conduziam à porta principal da habitação. Aos lados se via uma engenhoca de
moer cana e uma roda de farinha, porém tudo desaparecendo quase sob as
tiriricas e outras ciperáceas, bem como se abafando sob as longas espatas
desprendidas de velho coqueiro indaiá.
Me causou admiração ver em tal estado de
abandono uma morada que parecia oferecer regular conforto, quando no entanto
miseráveis palhoças, esburacadas e mal cobertas, estavam atulhadas de gente.
Nesse sentido dirigi uma pergunta a meu pajem:
— Senhor Bigode, por quê se vê em tão
lastimável abandono esta excelente casa?
— Ê!, patrão. — Bigode parecia ter esperado
esta natural interrogação — Essa é a casa do lobisomem. É muito conhecida. Até
já saiu nas folhas do Rio. Depois que o lobisomem desapareceu ninguém mais quis
morar aqui. No entanto é pena, pois em toda esta redondeza não há uma casa tão
boa nem terras que dêem melhor mandioca e melhor cana. Mas o que quer vosmecê? Quando o povo cisma com
qualquer coisa, se acabou. Nada há que lha tire da cabeça.
— Então, senhor Bigode, esta casa pertenceu a
um lobisomem?
— Sim, senhor. Um lobisomem, e daqueles
verdadeiros mesmo. Foi desencantado por Juca Bembém, que era camarada do velho
Moura. Eu conhecia Juca muito bem. Prum pé-de-viola não havia outro.
— E há mesmo lobisomem?, senhor Bigode.
— Ê!, patrão! — Exclamou o caipira, como
admirado de minha crassa ignorância ou estúpida incredulidade — Pois vosmecê inda pergunta? Há lobisomens e de muitas qualidades. Eu mesmo, que
aqui estou, já tenho topado com eles nas sextas-feiras, mas comigo nada podem.
Trago no pescoço uma oração que é mesmo um porrete bendito pra tudo quanto é
coisa má. Ora, patrão, vosmecê
perguntar se há mesmo lobisomem?! Toda mulher que tiver sete filhos machos,
pode ter certeza que um vira lobisomem. E, sendo sete meninas uma, mais cedo ou
mais tarde, vira bruxa. O lobisomem, patrão, é o dízimo do Diabo.
Diante de definição tão explícita seria
impossível continuar duvidando da existência do lobisomem. Me envergonhei até
da incerteza na qual estava acerca da realidade de personagem de existência tão
comprovada, então pedi a Bigode contar a história do lobisomem que outrora
habitara a casa de cujo abandono agora me admirava.
Afinal descobrira o meio de dissipar o tédio
duma viagem em sítios tão sem perspectiva e mais que monótona paisagem.
A história é mais ou menos a que os leitores
lerão.
***
Senhor Basílio de Moura era um lavradorzinho
remediado e com alguns casais de filhos, todos já afamiliados. Apenas restava
na casa paterna a caçula, dona Cecília, moça regularmente bonita.
Se enamorou dela Joaquim Pacheco, um dos sete
filhos varões do velho Pacheco, negociante de secos e molhados em Marapicu.
Joaquim Pacheco, ou antes Quincas Pacheco, era um rapaz sem defeito e com um começo
de fortuna. Já se vê que constituía um bom partido. E tendo nisso concordado o
velho Moura e a filha, se ajustou o casamento, sendo esse logo realizado, não
obstante apresentar o noivo uma intensa amarelidão que fazia recear sua saúde.
Mas em serra abaixo quem não sofre mais ou menos do fígado? E quem tem cores
vivas?
Assim não foi estorvo ao enlace matrimonial a
palidez de Quincas. Se fez o casamento e os novéis esposos foram residir na
asseada casinha que me chamara a atenção pelo prematuro abandono e que ficava
pouco distante da do velho Moura, ali um pouco a dentro. As extremas do sítio
dum emendavam com as doutro.
O casamento se fizera num sábado. Nos
primeiros dias não houve coisa de importante a se relatar. Os casadinhos
saboreavam a lua-de-mel como todo mundo: Se abraçavam, beijavam a todo o
instante e faziam castelo no ar.
Mas, na primeira noite de sexta feira que
passaram juntos, isto é, sete dias depois do enlace matrimonial, começou a se
complicar a situação dos cônjuges.
Dona Cecília estava acordada cerca da
meia-noite, quando sentiu o marido a apalpar, como se procurasse verificar se
estava realmente adormecida, e assim julgando, se esgueirou entre os lençóis,
se dirigiu devagar à porta, a abriu e saiu ao terreiro.
Só quando o dia vinha rompendo é que Quincas,
com o corpo frio como focinho de cão, voltou ao leito conjugal.
Dona Cecília ficou apreensiva com essa
ausência noturna do marido. Seria possível que logo, na primeira semana de
casado Quincas a abandonasse pra procurar alguma descarada?! Isso seria
horroroso!
Mais admirada ficou ao observar que no dia
seguinte o marido estava mais pálido que de costume, que os olhos tinham um
fulgor de singular estranheza, que se tornara taciturno e procurava a evitar.
Efetivamente Quincas estava muito alterado em
fisionomia e modos, e assim se conservou durante três longos dias. Mas no
quarto voltou um tanto ao antigo estado, e dona Cecília, com muito boas maneiras,
procurou saber o motivo porque se ausentara do leito conjugal durante a noite
de sexta-feira. Mal pronunciou as primeiras palavras sobre o assunto e Quincas
se encheu de inexplicável furor e, se arrancando brutalmente dos braços da
esposa, foi se sentar, meditabundo, à porta do quintal, onde passou todo o
resto do dia, sem querer comer nem beber.
Dona Cecília se mortificou extremamente com
tal procedimento. Era, porém, excelente criatura, e, compreendendo que aquele
assunto desgostava o marido, evitou doravante falar mais nele, ao mesmo tempo
que, por inteligentes carinhos se esforçava em o arrancar do pesado silêncio no
qual se engolfara. Assim se restabeleceu um pouco a tranquilidade no casal.
Dona Cecília fizera o sacrifício de seu orgulho e curiosidade em benefício à
harmonia do lar.
Isso durou uns três dias. Na sexta-feira
seguinte, porém, quando o relógio americano que havia na sala de jantar vibrava
as 12 horas da meia-noite, Quincas, tal como fizera na sexta-feira anterior, tornou
a deslizar mansamente da cama, e ganhando a porta da rua se pôs no mundo. Só
voltou quando os galos começavam a cantar.
Dona Cecília, que por ter o sono muito leve
despertara quando o marido fizera girar a chave na fechadura, ficou ainda mais
incomodada que da outra vez. No leito solitário se revelou cheia de impaciência
e desgosto até a chegada de Quincas. Pensou:
— Com certeza Quincas tinha alguma amante e
as alterações que observei não eram algo além do arrependimento de se ter
casado comigo. Se fizera o enlace tão apressadamente! Quem sabia de suas
desgraças com outras mulheres?
No dia seguinte Quincas estava lívido e o
olhar terrivelmente sombrio. Cecília quase o desconheceu. Seu marido não
falava, pouco comia e às vezes soltava uns grunhidos singulares que mais se
assemelhavam aos dum porco que sons produzido por garganta humana. Na noite,
ela querendo o afagar, Quincas a repeliu com modo brusco. Era um homem
completamente diferente do da primeira semana, pois embora sempre fosse um
tanto tristonho, se mostrara até então delicado e carinhoso. Depois de pensar
durante algumas horas sobre o que faria, dona Cecília resolveu levar a
conhecimento do pai o que acontecia de extraordinário em sua casa. Assim se
dirigiu à roça do velho Moura, no domingo. Foi só, pois Quincas não a quis
acompanhar. Ali referiu ao pai todos os desgostos, o tornando ciente da conduta
mais que irregular do esposo.
O ancião, que não esperava arrufo entre
casadinhos de fresco, ficou atônito ao ouvir as queixas da filha, e mais ainda
a natureza delas. Assim, depois de coçar a cabeça algum tempo, o que nele era
sinal de grande embaraço, disse:
— Minha filha, aí anda coisa muito séria,
talvez mais do que pensas. Não é possível que o rapaz saia pra procurar mulher,
pois sabes melhor que eu que aqui nesta redondeza não há alguma de vida má.
Ademais, Quincas é ainda muito novo no lugar pra que pudesse formar já relação
de tal natureza. Faças o que digo. Não te dês por achada. Continues a o tratar
bem, nada lhe fales sobre os passeios às tantas da noite, e na primeira vez que
ele tornar a sair o acompanhes de longe, e te informes do motivo de seus giros.
É o mais prudente. Nada de juízo temerário sobre o pobre rapaz!
Dona Cecília aceitou o conselho paterno.
Voltando a casa se esforçou pra bem tratar o esposo, que se mantinha sempre em
pesado mutismo, e continuava a assombrando com os modos bruscos. Dona. Cecília
tragou tudo com a maior resignação. No entanto sentia percorrer todo o corpo um
calafrio quando Quincas soltava o grunhido estranho que principiara a emitir
logo depois do primeiro passeio. Estaria doido o infeliz?
Viviam assim os dois, até que chegou a outra
sexta-feira, e como já sucedera nas duas antecedentes, Quincas, logo que no
relógio de parede o tímpano vibrou doze pancadas, se esgueirou sorrateiramente
da cama, abriu a porta e ganhou mundo.
Logo após dona Cecília, que por prevenção
estava acordada, enfiou um roupão de lã cinzenta, se embrulhou num xale da
mesma cor, e saiu de casa o mais lentamente possível, a fim de não perder de
vista o esposo.
Era noite de lua cheia e tudo estava claro.
Foi fácil o avistar. Quincas estava encostado ao oitão da casa e ali demorou
alguns minutos, como tendo um plano.
Depois se dirigiu, lento, cabisbaixo e muito
triste em direção a um telheiro onde dormiam os porcos. Ao se aproximar dele
começou a emitir os singulares grunhidos que tanto apavoraram a moça, que o
acompanhava a distância.
Sempre grunhindo, se aproximou do telheiro e
os porcos ao o pressentirem se levantaram e fugiram. Então tirou a roupa, se
atirando na poeira que servia de leito aos bacorinhos, se espojou durante longo
tempo, sempre grunhindo ferozmente.
Dona Cecília não sabia o que pensar do que
via. Parecia que o marido enlouquecera repentinamente. Ainda não se recuperara
do grande espanto quando viu Quincas se erguer, não sob a figura humana, mas se
transformado num grande porco, de cerdas eriçadas e presas salientes, que ficou
logo em pé e começou a bater os dentes e a abanar as orelhas de maneira
horrível! Os olhos dessa coisa monstruosa luziam como brasa, a dentuça longa,
cerrada e pontiaguda se destacava no negrume da pelagem.
Dona Cecília, levada ao auge do assombro, não
pôde reprimir um grito, e a estranha alimária, assim que a ouviu, levantou a
grande e pesada cabeça, farejou alguns instantes e depois avançou aonde a moça
estava.
A moça, com toda a força das pernas e
extensão do fôlego bateu em retirada até casa. Quando alcançava o terreiro o
monstro deu a volta à habitação e a cercou no outro lado.
O grande medo que se apoderou da jovem lhe
deu força pra voltar. Chegando ao alpendre de porco se enfiou no caminho que
conduzia à casa do pai. Corria a mais não poder e a fera sempre a acompanhando.
10 minutos durou a perseguição e duma vez o porco chegou a morder o roupão de
lã que se rompeu com o esforço empregado pela moça. Afinal dona Cecília, sem
afrouxar a carreira, chegou à beira dum regato que atravessava o caminho e o
transpôs com um salto. O monstro ia ainda no encalço mas ao ver a água estacou
e retrocedeu, sempre batendo os dentes.
Já era tempo também. A moça estava quase
caindo de cansaço. Tremiam as pernas, ofegava, um suor frio corria na fronte e
estava quase tombando sem alento na estrada, quando ouviu uma voz que cantava:
Tomara que o mato seque
Quero vê que as cobras come
É coisa que causa espanto
Vê muié passá sem home
Ó, minha senhora dona
Que tristeza e que pená!
A chinela um paulista
Numa sala faz chorá
A moça reconheceu logo essa voz. Era Juca
Bembém, camarada da casa de seu pai. E assim que ele se aproximou pediu que a
levasse a junto do velho. O rapaz, muito admirado de a ver naquela hora na
estrada, obedeceu imediatamente.
Dali à casa de Moura apenas distavam alguns
passos.
Ao entrar na sala da casa paterna, Cecília
estava pálida como uma defunta.
O velho Moura acordou sobressaltado assim que
percebeu a filha em tal estado e recuou, assombrado, mas logo, se acercando
solícito, perguntou o que acontecera.
Cecília, depois dum quarto de hora no qual
não pôde articular palavra, contou, com voz sumida, toda a história da
transformação do marido em porco e a forma como fora perseguida até o
riacho do caminho.
Basílio de Moura ficou de boca aberta ao
ouvir tão espantosa narração, e como sem coragem pra pronunciar a terrível
palavra que logo lhe acudira à mente. Contudo, Juca Bembém que também ouvira a
história, logo que a moça chegou ao episódio do riacho, exclamou com
vivacidade:
— Dona Cecília, perdão se te ofendo sem
querer, mas teu marido é lobisomem!
— É verdade. — Confirmou o velho Moura,
consternado mas animado pela entrada de Juca — É verdade, minha filha. Que
desgraça! Quincas é lobisomem!
A moça, ao ouvir essa dupla sentença, desatou
em amargo pranto. O velho Moura enterrou a cabeça entre as mãos e se engolfou
em profunda meditação. Juca Bembém, como um homem que resolve no cérebro uma ideia
grande, torcia e retorcia nas mãos calosas o chapéu e se mostrava
verdadeiramente comovido.
A cena muda durou alguns instantes e depois
Juca Bembém deu alguns passos à moça e disse, decidido:
— Senhora dona Cecília, enxugue teu pranto.
Deus dá remédio pra tudo e te garanto que hei de desencantar teu marido.
Basílio e a filha olhavam, admirados, o
caipira mas ele tornou a afirmar:
— Desencantarei teu marido custe o que
custar. Muita gente já fez o mesmo e eu não hei de ser dos mais caiporas, se
Deus e nossa senhora da Conceição me ajudarem. Dona Cecília, peço que não
voltes nesta semana e a seguinte a tua casa e deixes o resto por minha conta.
Na sexta-feira verei o bruto. Entretanto se vier amanhã dizei que morarei consigo
alguns dias. Vosmecês inventem o que
quiserem, pra não desconfiar.
E dizendo isso Juca Bembém se despediu dos
dois e se retirou. Se percebia no semblante que formara uma resolução
inabalável.
No outro dia, logo na manhã, Quintas veio à
casa do velho Moura buscar a mulher, que, ao o avistar soltou um grito de
horror. É que nos dentes do marido vira pregados alguns fiapos de seu roupão de
lã cinzenta. Não havia mais o que duvidar, Quincas era lobisomem.
Mas logo em seguida se tranquilizou e disse
ao marido que não podia ir até casa porquanto seu pai estava doente e não tinha
quem o tratasse. Efetivamente o velho Moura, com o abalo que sofrera, caíra de
cama. A moça disse mais do que combinara com Juca Bembém, que enquanto seu pai
se conservasse enfermo, fosse ele ao sítio a fim de lhe fazer companhia,
preparar a comida e tratar da criação.
Quincas estava com lividez de cadáver e
durante o tempo que a mulher falava nem uma vez lhe tirara o olhar. Assim que
ela terminou a explicação, Quincas, embora fazendo grande esforço pra o
reprimir, soltou um grunhido rouco, convulso, se e retirou bruscamente.
***
Com o piedoso intuito de desencantar o
lobisomem, Juca Bembém, conforme ficara combinado, fora viver com Quincas.
É crença geral que se fazendo sangue na pessoa,
quando está transformada nesse animal fantástico, o Diabo vem lamber o sangue,
se considera pago de seu dízimo e a pessoa se isenta de seu sombrio fadário.
Juca Bembém tinha coragem pra travar combate
contra a fantástica alimária e a ferir.
Nos primeiros dias de permanência no sítio de
Quincas nada houve de anormal. Pacheco sempre muito sombrio e melancólico,
evitava falar com o camarada mas ele não se dava por achado e fazia
silenciosamente as obrigações, até chegar a fatídica sexta-feira.
Juca Bembém dormia na sala, numa rede. Por
precaução, nessa noite resistiu ao sono, e nem ao menos se despiu. Quando o
relógio bateu 12h ouviu o ruído no quarto do patrão, que dali a pouco assomou à
porta e, se dirigindo à da rua, abriu e saiu. Juca Bembém fez outro tanto, se
armando duma foice bem amolada, que de antemão encostara à parede, e acompanhou
Quincas.
Foi direto ao alpendre dos porcos, grunhindo
no caminho. Ali chegado se despiu, se atirou à poeira, se espojando nela em
todos os sentidos e logo se ergueu transformado em enorme porco. Juca Bembém
sentiu o cabelo se arrepiar na cabeça mas não perdeu o ânimo e, se dirigindo ao
monstro, gritou com voz ameaçadora:
— Hoje é comigo, lobisomem!
O porco levantou a cabeça, bateu as grandes
orelhas pendentes e se lançou sobre Bembém, que estava prevenido e com um salto
evitou o esbarro.
O porco voltou ao ataque mas Juca tornou a
furtar o corpo. Na terceira vez que a fera investiu contra ele o destro caipira
vibrou a foice no fio do lombo e a arma pegou uma das orelhas do lobisomem e
fez jorrar um grande esguicho de sangue.
Imediatamente diante do rapaz desapareceu o
porco e surgiu Quincas Pacheco extremamente pálido e cansado.
— O que é isso?, patrão. — Exclamou Juca
Bembém — Perdão se te feri!
— Ah!, meu bom amigo! — Quincas respondeu com
voz cava — que grande serviço te devo! Me livraste dum penoso e miserável
fadário: Graças a tua coragem deixarei de ser lobisomem. Andes comigo. Quero te
recompensar generosamente.
E partiu a casa. Ao chegar ao terreiro,
Quincas se virou a Bembém e disse:
— Esperes aqui. Buscarei uma molhadura,{10}
pra recompensar teu grande serviço.
Juca Bembém ficou esperando. Quincas entrou
em casa. Dali a pouco assomou à porta, mas a molhadura que trazia era uma
espingarda carregada e, antes que Bembém pudesse fazer um movimento pra fugir,
deu um enorme tiro, quase a queima-roupa.
Juca Bembém caiu, e dali a três dias entregou
a alma a Deus. Entraram no corpo 16 caroços de chumbo grosso. Desde então
também nunca mais se viu Quincas.
Consta que fugira aos sertões de Minas ou de
Goiás.
***
— Agora — Disse Bigode, depois de terminar a
história que aqui transportei, somente alterando um pouco a linguagem — Juca
Bembém morreu porque não sabia de todas as manhas do bicho. Deveria ter
espetado a foice no chão, posto nela seu chapéu e o casaco e se esconder num
canto. O outro daria o tiro que não pegaria. Então seria obrigado a lhe dar o
dinheiro que prometera. Não sabem das coisas e querem se meter nelas! Não, pois
desencantar um lobisomem tem suas histórias! Quando se livra daquele fado ruim
a pessoa fica envergonhada e, se pode, dá cabo de quem a desencantou. Coitado
de Juca Bembém. Era tão bom rapaz e valente até ali!
— E dona Cecília: Qual foi o destino? —
Perguntei, interessado na sorte da infeliz esposa do lobisomem.
— Nunca mais quis habitar a casa. O cabelo
embranqueceu todo dentro dum mês e pouco depois começou a tossir e a derramar
escarro de sangue da boca. Estava sofrendo do peito. Seis meses depois da morte
de Juca Bembém e do desaparecimento de Quincas, deu sua alma aos anjos. Basílio
de Moura ainda é vivo. Sofreu muito mas o patrão sabe que gente velha tem couro
duro pra desgosto. Já está quilotado.
Ano de publicação: 1925.
Origem: Brasil (Nordeste)
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