Manuelinha
era uma mulata de 18 anos incompletos e um verdadeiro modelo de mestiça bonita
e apetitosa.
Não
tinha alta estatura. Ao contrário, era toda miúda de corpo e de forma, porém
enxuta de carne, de braços e pernas roliças, anca refeita, seio agradavelmente
espontado sob a chita do corpete, pescoço cilíndrico.
Olhos
grandes, amendoados, negros, vivos e pestanudos, a boca pequena, de lábios
carnudos e guarnecida de dentes muito brancos e juntos, nariz perfeito, pele
fina, macia, suavemente amorenada, cabeleira farta, sem ser crespa em demasia.
Muito
viva, movimentos brevíssimos, olhar ligeiro e petulante, ademanes rápidos, e
sabia rir de qualquer coisa com graça encantadora. O muxoxo na boca tinha um
quê especial.
Manuelinha
tinha consciência de sua beleza e sabia a fazer valer. Debalde muito cabra valente, num pé-de-viola, lhe
fizera roda. Inutilmente os arrieiros faziam piegas em seus cavalos aparelhados
de prata, quando passavam junto a sua porta. Manuelinha olhava a todos sobre o
ombro, e se algum mais ousado se animava a lhe dirigir uma graçola qualquer,
por exemplo:
—
Puxa, mulata, machucadeira de coração!
Era
infalível de sua parte um atrevido:
— Não
te enxergas?, seu sujo!
Ou
então:
— Vai
te lavar na maré, pato checo!
E
assim vivia Manuelinha, contente descuidosa, cortejada por todos, porém sempre
esquiva e orgulhosa de sua beleza e da fascinação que exercia sobre todos os
homens, que, nos dias de pagode em sua casa, nunca ali faltavam, como atraídos
pela interessante moça.
***
Esse
apaixonado era nada mais nada menos que Pedro Camundá, africano com perto de 70
anos, e tio-avô da mulatinha.
Por
artes do Diabo, aquele cação, como
lhe chamava a malcriada mulatinha, se enamorou perdidamente da sobrinha-neta, e
levava todo santo dia a importunando, apesar das insolentes rebatidas da moça.
Pedro,
ou antes, pra dizer exatamente seu nome com todos os estrambóticos apelidos por
si forjados, Pedro Camundá Lopes Martins
Júnior Filho do Gama Pesca de Dia de Noite Escama Cócôriôcô Galo Quando Canta É
Dia, entendia lá em seu bestunto que, se sendo tio-avô de Manuelinha tinha
mais que qualquer outro direito de a possuir, e pouco se lhe dava a diferença
de idade entre os dois e a repugnância que em geral a mulata sente pelo negro.
Pedro
não refletia isso. Era tio e essa consideração do parentesco julgava ele
suficiente pra destruir todos os obstáculos. Não desanimava, pois, de fazer
render a moça sua concupiscência.
É
claro, porém, que a moça, por mais depravado que fosse seu gesto, nunca poderia
se entregar voluntariamente àquele urutu de venta esborrachada, carapinha
enredada, cambaio, desdentado e de olhos sangrentos. Era, portanto, em vão, que
Pedro Camundá Lopes Martins, etc., etc., ostentava, prà agradar, diversas
habilidades que possuía, tais como tocar flauta de taquara no nariz, pegar
cobra com a mão, tirar ponto de jongo e outras astúcias mais.
Manuelinha
cada vez se aborrecia mais, e se não o enxotava de casa é que Pedro tinha fama
de grande feiticeiro. Nessa qualidade o temia extraordinariamente. Mau trato,
porém, não lhe poupava, e a todo o momento lhe assacava epítetos os mais
injuriosos.
***
Era de
uso antigo em casa de Manuelinha se festejar com uma grande pagodeira o dia de
nossa senhora da Conceição, madrinha celeste da mulatinha. Chegado o dia,
começaram a afluir visitas de toda parte, tanto homens quanto mulheres, pois
essa festa tinha fama na vizinhança.
Se
cantava uma ladainha, ia depois a uma mesa bem servida de suculentas iguarias,
e depois se caía no batuque, que durava até amanhecer.
Entre
outras pessoas estranhas que vieram em primeira vez a essa pândega, se notava o
senhor Antônio Guimarães, ilhéu chegado pouco antes do Faial e hortelão duma
fazenda da vizinhança.
Era um
sujeito grosso de corpo e de espírito, usando barba de varre-lama e de queixo e
beiço raspado.
Ainda
vinha metido na pesada saragoça de além-mar, com o clássico remendão nos
fundilhos, e trazia atarracado à alentada pata o grosso tamanco de beiça grande
e revirada, guarnecido de cravos fortes de cabeça chata.
Guimarães
logo que pousou a vista na mulatinha, nesse dia vestida e penteada a capricho,
começou a sentir comichão na garganta e começou a mexer no banco, todo
esquerdo, todo casmurro. Logo se via que aquela alma ilhoa queria reza mas, o
que é mais singular, Manuelinha, a invencível mestiça, a tirana que
orgulhosamente desprezara o amor da mais desempenada caipiragem, simpatizou
igualmente com o forasteiro, e logo todos, inclusive Pedro, perceberam que os
dois, no fim de meia hora, estavam de namoro trançado.
Muitos
se arreliaram com isto. O preto-velho, porém, se encheu da maior das raivas, e
os seus olhos, que pareciam duas postas de sangue, não se despregavam da
sobrinha, como a ameaçando.
***
Todavia
este incidente não desmanchou a festa. Ao contrário, como Manuelinha parecia
ainda mais alegre que de costume, a rapaziada fez vista grossa ao namoro com o
ilhéu e entrou no batuque, desembaraçada de preocupação. Oras bolas! Era
senhora de gostar de quem quisesse.
Muitos
até começaram logo a lançar olhar às outras moças, quando mais não fosse pra
moerem a impostora que desprezara seus patrícios e estava agora se derretendo
com um sujeito à-toa, vindo da estranja
ou donde Judas perdeu as botas, só porque o pé-de-chumbo era de sangue sem
mistura. Diziam, uns aos outros, despeitados:
— A
negrinha quer limpar o sarro da senzala na barba do portuga.
No
entanto estrugia o sapateado e quando cessava era apenas pra se fazer ouvir
algum cantador que extravasava os queixumes ou os fingidos desdéns numa
quadrilha estribilhada pelo Quero mana,
lerê, quero mana! ou pelo Vai de
roda, siá dona Geralda e outros.
Todos
folgavam ou pareciam folgar com a maior alegria. Só Pedro, o preto-velho,
acocorado num canto da sala, remoía a grande raiva concentrada.
***
Num
dos intervalos do batuque e depois que alguns cantadores trocaram algumas
trovas em desafio, Manuelinha se chegou a Guimarães, que não tirava os olhos de
cima dela, e disse, com muitos requebros no corpo e doçura na voz e na fala:
—
Cantes algo pra gente ouvir, seu Antônio.
Guimarães,
assim rogado tão agradavelmente, ficou um tanto envergonhado, e torcendo a
tramela da porta pra disfarçar a confusão, disse:
— Lá o
cantar eu cantava, pois com a ajuda de Deus não nasci com a língua pregada, mas
é que sei somente cantar à moda de minha terra e talvez as pessoas que aqui
estão não gostem.
— Por
que não se há de gostar? — Disse a mãe de Manuelinha, uma mulata escura que outrora
vivera amasiada com um português. — Até tem mais graça porque é uma coisa nova.
—
Decerto que sim. — Confirmaram algumas outras mulheres — A gente já anda tão
enfarada dessas modas daqui.
—
Cantes, seu Antônio. — Rematou Manuelinha, arrebitando o nariz — Se alguém não
gostar não faltará quem aprecie.
Ao
ouvir tais palavras Guimarães entendeu que não devia mais resistir e assim
falou:
— A
sôra dona Manuela manda em quem bem quer lhe servir. Benha daí uma biola. Lá
pelas nossas terras antes dum homem se pôr a cantar bota pra baixo um bom
pichel de vinho. Mas como ele não há por cá, me mandem uma pouca de aguardente
pra desencatarrar o peito.
Sendo
logo servido no que pedira, Antônio tomou uma viola, a afinou a seu jeito, e,
ao som de um estabanado rasgado, cantou o seguinte:
Ai!, belas manhãs da Lapa
E eu fui aos caramujos
Quando bejo mulher belha
Tiro meu chapéu e fujo
Sôra Maria,
Mestre Manel,
Quem mora na rua
Nan paga aluguel.
Riram
todos a bandeiras despregadas com os versos do casmurro, e Manuelinha exultou
de contentamento, por demonstrar àquela gente que o homem a quem distinguia não
era pra aí qualquer pasmado. Todos gostaram dos versos, por muito estúpidos ou
simplesmente por serem novidade naquele meio afeito às doçuras langues do Passo branco avoou e outras composições
matutas. Todos gostaram, exceto Pedro, sempre sentado, no canto da sala, ficava
cada vez mais sério e embezerrado. Se diria que tinha ciúme do triunfo que o
português alcançava.
No
entanto ninguém dava por isso, e Antônio Guimarães, se animando aos poucos,
destampou outra vez o peito e berrou:
Ó! munina da labada
Rega teu manjericão
Que hoje estou devoleto
Amanhã estarei ou não
Senhor João do Norte
Bem todo ratado
Co'as buxigas loucas
Do ano passado.
Novas
gargalhadas acolheram tal destempero poético. A caipirada achava um cômico
irresistível nos versos do ilhéu, e Manuelinha, interpretando os risos como
sinais de admiração, no tamborete em que se achava, se remexia de
contentamento.
Pedro,
cada vez mais enfiado, mastigava em seco no canto da sala, e Antônio Guimarães,
impando de orgulho, e querendo mostrar à cabritada que era homem de recurso no
braço duma viola, variando a música e o ritmo despejou dum só fôlego toda essa
embrulhada:
Quando Cristo frumou Judas
Palácios de grande altura
Muita gente lá morreu
Foram para a sepultura
Casa grande tem fartura
Andam lebres nos trigais
Comem-n'as aves o milho
Quaim paga são-n'os pardais
Cabalo grande é trangola
Puquenino é perereca
Pau furado é biola
De caracol é raveca.
E
deixando pender o corpo todo a Manuelinha, sentada a seu lado, rematou de forma
assim extravagante sua lenga-lenga:
E agora, senhores meus
Uma coisa bou dizeire
Andam cabras pelo monte
Muito custa um bem quereire
Esta munina é minha
Compei-a numa audiência
Na Relação de Lisvoa
Na mesa da consciência.
Todos
compreenderam perfeitamente a alusão que o português fazia à facilidade com que
realizara a conquista amorosa, a despeito dos cabras que andavam naquele monte,
e Manuelinha mostrava estar satisfeita com aquela declaração brutal.
Um
murmúrio surdo de indignação se fez ouvir logo. Os caipiras olhavam uns aos
outros, como se quisessem consertar algum plano contra o ilhéu, pois aquilo já
estava cheirando a desaforo grosso, e Pedro, que ouvira toda a versalhada de
Guimarães, dando sempre os sinais mais visíveis de indignação, entendeu que
devia mostrar a todos que também sabia cantar. Deslumbraria o português, e
conjuntamente a mulatinha, que não podia deixar de preferir seu canto.
***
Assim,
logo que o português se calou, Pedro, como picado por tarântula, pulou ao meio
da sala e a se desengonçar todo e a bater palmas, berrou descompassadamente em
sua meia-língua:
Eh! Eh! Eh! Eh!
Maria sobe moro
Bunda teremê
Coração min dóe.
Pedro
não pôde continuar. Manuelinha, envergonhada e irritada com aquela entrada estapafúrdia
do tio, tão fora de tempo e de propósito, foi a seu encontro, e gritou com a
insolência que lhe era própria:
—
Cales a boca, burro!
—
Burro não, sua malcriada! Mais respeito com teu tio! — Retrucou Pedro,
enfurecido.
— Que
tio! Que nada! Vosmecê não vê que não sabe cantar? Pra quê está aborrecendo a
gente com essa porcaria de jongo. Sempre mostra que é negro!
Manuelinha
não chegou a terminar bem a frase. Pedro, enciumado e ferido no amor-próprio de
modo tão público desandou tão violenta bofetada, que a mulatinha se estendeu a
fio comprido no chão.
Se
levantou logo grande celeuma entre os foliões, e Antônio Guimarães, irritado
com aquela ofensa à mulata, a qual já considerava como coisa sua, arrancou do
pé o grosso tamanco ferrado de cravos de cabeça chata, e o vibrou com toda
força na cabeça do negro, donde escorreu logo um fio de sangue.
Então
ferveu o sarceiro. Diversos caipiras, querendo se tornar agradáveis a
Manuelinha, se colocaram ao lado do português. Outros, porém, se declararam a
favor de Pedro, e o pau roncou deveras, fazendo as mulheres grande berreiro.
Se
quebraram diversas cabeças e muitos ficaram contundidos mas, afinal, todos se
reconciliaram. Houve explicação de parte a parte, se trocaram desculpas e todos
se mostraram dispostos a recomeçar o pagode.
Quem
não se acalmou, porém, foi Pedro. Recusando lavar o sangue que escorria da
cabeça lascada pelo tamancão do ilhéu, parecia endemoniado, e vendo que todos
se voltavam contra si, por sua obstinação em insultar a sobrinha, pôs
arrebatadamente na cabeça o chapéu de palha,
Foi à
porta, e dali, cuspindo três vezes a dentro da sala e lançando à mulatinha um
olhar terrível, disse:
—
Negro, hem?! Negro?! Me pagarás!
Acabando
de pronunciar tais palavras, desapareceu na escuridão da noite, deixando todos
sob o peso daquela terrível ameaça dirigida à rainha da festa.
***
Não
era uma coisa à-toa esse projeto de vingança formulado pelo preto-velho.
Todos
o tinham como feiticeiro terrível e se sabia que fazia de rei nos canjerês
arranjados pela negrada das fazendas vizinhas.
Sua
habitação, uma choupana esburacada e mal coberta, metida no sambambaial da
lomba duma serra onde vivia sozinho com um gato preto e um bode velho, estava
atulhada de coisas estranhas, e todos a evitavam com horror. Eram cobras
mansas, morcegos espetados nas paredes, sapos, braços de crianças pagãs que
desenterrava nos cemitérios, dentes de animais peçonhentos e outras
bruzundangas.
Ali
vivia desde que se libertara, e muita gente se queixava de seus feitiços. Se
dizia que seu olhar continha um fluido venenoso que matava os animais e causava
moléstia nas criaturas. Com sua arte realizava desunião de casal. E lhe
atribuíam mil outras perversidades.
Por
isso ficaram todos apreensivos com a ameaça. Pedro não era pra graça. Aquilo
era negro danado, couro azul, diziam os caipiras entre si, comia brasa de fogo,
fazia vez de cururu.
***
Decorreram
alguns dias depois da pouco edificante cena que acabamos de descrever.
Assustada
durante os primeiros dias com a ameaça do tio, afinal Manuelinha a esqueceu
completamente.
Guimarães
pouco e pouco foi se insinuando cada vez mais no espírito da gentil mestiça,
sabendo a conquistar, a seduzir, até que veio a se assenhorear completamente de
seu coração, desejo, vontade, chegando à possuir. Se falava num futuro
casamento mas ninguém acreditava, porquanto o português já quase morava em casa
de Manuelinha, dormindo lá nos sábados, passando o domingo todo, pra só se
retirar na segunda-feira.
Entretanto
a ameaça de Pedro não fora vã, e durante certo tempo transtornou a paz em que a
rapariga vivia.
Num
domingo na manhã, Guimarães estando em casa, como de costume, Manuelinha pôs na
cabeça um pote de barro e foi à fonte, a fim de trazer água pra cozinhar o
almoço.
A
fonte era pouco distante da casa. Se descia apenas uma pequenina ribanceira e
ela surgia jorrando água cristalina, cantante, muito clara, muito fresca,
deslizando entre imensas pedras limosas e toda cercada por largas folhas de
inhame e de taioba.
A moça
chegou ao puríssimo veio d'água, lavou rosto e os braços, encheu o pote, e se
preparava pra o pôr na cabeça, quando sentiu um ruído nas folhas secas do
matagal vizinho.
Tornando
a descansar o pote no chão, procurou observar o que se passava e, se agachando
pra olhar sob a ramaria avistou um moleque muito preto, coberto de andrajo e
com grande quantidade de latas velhas amarradas no corpo.
Assim
que os olhos pousaram sobre ele, o moleque começou a lhe fazer trejeitos e
caretas. A moça, assustadíssima, correu a casa pra relatar o que vira à mãe e
ao amante.
Guiados
por Manuelinha correram os dois à fonte. Apenas chegados, a mulatinha, muito
nervosa, gritou, apontando ao mato:
— Lá
está o moleque, mamãe! Veja, seu Antônio! Te esconjuro, Diabo!
A
mulata velha e o português olharam atentamente ao lugar indicado por
Manuelinha, porém nada viram.
—
Onde? — Perguntaram os dois ao mesmo tempo.
— Ali,
gente! Mesmo em frente de nós. É moleque muito preto, todo coberto de mulambo e
com uma porção de lata velha pendurada no corpo. Ouvis como batem as latas
entre si!
— Eu
não bejo nada! — Exclamou Guimarães, esfregando os olhos já cansados de tanto
olhar.
— Nem
eu! — Disse a mulata velha.
— Ó
homem! Estão cegos? — Disse Manuelinha, se tornando cada vez mais agitada. —
Credo! O moleque virou num sapo muito grande e com cada olho! Aquilo é coisa
mandada com certeza. Olhem como o sapo está inchando!
—
Raios partam o sapo mal-o o moleque! — Disse Guimarães, já um tanto aborrecido.
— Pelas cinco chagas de Cristo que eu nan bejo nada!
— Chi!
— Continuou a mulatinha. — O sapo virou uma cobra vermelha. T'arrenego,
Coisa-ruim!
— Tu
estás douda, rapariga! — Exclamou Guimarães. — Ali não há cobra nem cousa biba
nenhuma! Não estás voa, com certeza!
— Pois
você não vê ali uma cobra tamanhona! Olhe, veja bem como ela se enrosca nos
paus e dá botes a todos os lados. Ai, meu-deus! Agora virou num lagarto. E lá
vem ele a cima de nós. Foge, seu Antônio, foge mamãe. Aquilo é coisa mandada!
E não
pôde dizer mais. Caiu redondamente ao chão e começou a estrebuchar em
convulsões medonhas. Num momento as roupas ficaram em tiras, e ela, com a
barriga e as pernas nuas, se torcia doidamente no chão, se ferindo no saibro da
vereda.
Os
olhos viraram a trás, a boca se torceu e dos cantos dos lábios começou a
borbulhar uma espuma esverdeada.
— Meu
Deus! O que é isso que estou vendo? — Disse a mãe, tomada de assombro. — Minha
filha, o que é isso? Fales, respondas a tua mãe.
Entrementes,
Guimarães observava atentamente todos os movimentos da moça e a transformação
no semblante transtornado. Se diria um médico embaraçado com um diagnóstico
difícil.
Afinal
bateu com a pesada mão no ombro da mãe de Manuelinha e disse, possuído da maior
convicção:
—
Bocemecê quer saber que tem tua filha?
—
Digas, seu Antônio, pelo amor-de-deus!
— Tua
filha está com o Diabo no corpo. São as artes do tal negro belho.
***
Depressa
correu, em toda a redondeza, que Manuelinha, a flor das mulatinhas do sertão,
estava com o Diabo no corpo e sua casa começou a afluir visita de mulher e
homem. Todos queriam verificar com os próprios olhos aquele caso estranho, e
depois que examinavam a enferma, saíam plenamente convencidos de que a infeliz
era presa dum demônio que se comprazia em a torturar. E choviam as maldições
sobre Pedro. Pois quem, a não ser ele, seria capaz de tamanha perversidade?
Na
verdade os sintomas da moléstia eram muito singulares. A barriga começou a lhe
crescer de modo espantoso, se diria em adiantada gravidez, e nas crises agudas
ela se torcia como uma possessa na cama, injuriava a todos, proferia
obscenidade, e, o que é mais singular, às vezes ficava suspensa no ar durante
um ou dois minutos. Nesses momentos os olhos viravam mostrando somente o
branco, a boca entortava e escorria copiosa espuma.
Outras
vezes discutia com o Demônio que em si encerrava, e ao qual dava o nome de
Caviru. O insultava ou lhe rogava que a deixasse. Outras ainda sua voz mudava.
Parecia doutra pessoa e começava a dizer frases incoerentes ou de sentido
misterioso.
Vieram
muitos curandeiros visitar a inditosa rapariga. Várias mulheres a fizeram
engolir drogas nauseabundas mas ninguém fazia melhorar a pobre moça que dia a
dia definhava sobre o catre.
Todos
se condoíam do lastimável estado da pobrezinha, e Guimarães estava
inconsolável.
***
Essa
triste situação durou algumas semanas e a moça ia cada vez a pior, quando veio
a visitar uma preta-velha, que era a sua madrinha de apresentação.
Manuelinha,
assim que a madrinha assomou à porta começou a gritar horrivelmente, como se a
cruciassem dores pungentíssimas.
Todos
se admiraram com o que estavam presenciando, porém tia Maria não se abalou e
disse aos mais que ficassem tranquilos, pois tiraria o Diabo do corpo de sua
afilhada.
— O
coisa-ruim já me conhece. Agora vai ele ver o ruço comigo.
—
Quando ele, o estapoire saire, logo se conhece. A rapariga há de daire um
grande bufa.
— É
tal e qual. — Confirmou tia Maria. E dizendo isso a preta agarrou a afilhada
nos pulsos e gritou:
—
Caviru! Caviru! quem te mandou ao corpo desta menina? Fales!, Coisa-ruim.
A moça
se torceu toda, porém os lábios não se descerraram.
— Você
fala ou não fala?, Caviru.
Nenhuma
resposta se ouviu.
— Á!
Essa peste está reinando! Vão buscar uma vara de guiné e um galho de arruda.
Á!, preto-velho caborjeiro, eu bem conheço tuas maldades! Fazer isso com a pobre
minha afilhada!
E
começou a rezar e a benzer a sobrinha em todas as direções.
Dali a
pouco lhe trouxeram a vara de guiné e o galho de arruda.
— Vão
agora buscar um gato preto, pro Diabo passar ao corpo dele. Só quando a
rapariga der um bufo é que ele sai.
Enquanto
procuravam o gato tia Maria amarrava com um largo tinteiro o galho de arruda
sobre o roliço ventre da moça, e chegando o gato, ordenou a Guimarães o
amarrar.
***
Todos
acompanhavam o preparativo com o maior interesse. Tia Maria, depois de riscar
três cruzes com o dedo molhado em azeite sobre os seios da moça, que estava nua
sobre a cama, pegou da flexível vara de pau-guiné e gritou de novo:
—
Caviru! Caviru! Quem te mandou ao corpo desta menina?
Como
nas outras vezes nenhuma resposta se fez ouvir. Então a preta-velha vibrou com
a vara de guiné uma forte vergastada nas nádegas carnudas da moça.
Manuelinha
deu um grande grito e esperneou na cama.
—
Anda, Peste! Quem te meteu aí?
Ainda
nada de resposta e a vara de guiné tornou a silvar no ar e a cair sobre a carne
da moça.
—
Fales, Desgraçado! Quem te meteu aí?
E como
o Demônio se obstinasse em não dar resposta, a velha amiudou as varadas, aos
gritos da infeliz que pinoteava no leito, até que afinal a moça, como fazendo
um grande esforço sobre si, gritou convulsivamente:
— Foi
Pedro!
— Eu
nan disse que era aquele estapoire! — Disse logo Guimarães.
—
Segure o gato, seu Antônio! Caviru já obedece, agora ele tem que sair. Queira
ou não.
E
tocou a zurzir a vara nas nádegas da moça, aos berros de Sai! Sai, maldito!
A
moça, já com a carne todas lanhada, cada vez gritava mais.
—
Segures o gato!, seu Antônio. O bicho está aqui fora.
— Cá o
tainho bem preso pelo toutiço.
Entrementes
a vara não descansava. A mãe de Manuelinha a segurava nos braços, outra agarrava
as pernas. Guimarães, no meio do quarto, segurava o gato no cangote.
De
repente a moça se inteiriçou toda no catre e exalou um suspiro. Ao mesmo tempo
o ventre, que até então se conservara duro como o diafragma dum zabumba,
emurcheceu subitamente e um forte cheiro de gás ácido sulfúrico, acompanhado de
estrondo, se espalhou no aposento.
—
Solte o gato!, seu Antônio.
Guimarães
soltou o bicho dizendo:
— Eu
nan lhes disse que o estapoire só sairia do corpo da moça, quando ela desse uma
grande bufa?
O
gato, assim que se viu livre das garras do ilhéu, ganhou a janela num salto e a
miar como um desesperado fugiu ao mato com a cauda erguida e o pelo todo
eriçado.
— Vás,
excomungado, às areias gordas. — Gritava tia Maria. — Graças a nossa senhora da
Conceição, saiu o Diabo do corpo de minha afilhada. Á!, Pedro! Feiticeiro
danado! No Inferno pagarás esta grande maldade. Te esconjuro!, Coisa-ruim.
Todos
ficaram convencidos de que o Tinhoso escapulira do corpo da moça. Por
conseguinte estava terminado o sofrimento.
Efetivamente
Manuelinha, caindo primeiro numa grande prostração, foi se restabelecendo a
poder de gordos caldos de galinha, e no fim dalgumas semanas estava curada.
Guimarães,
dali a seis meses comprou um pequeno sítio e lá foi viver com a mulatinha.
Dentro de anos juntou alguns cobres, porém tinha sempre no nariz e nos ouvidos
a grande bufa que a rapariga soltara, quando o Diabo lhe saiu da entranha.
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