O CARRO FÚNEBRE
Era um
sábado. Estava em festa o elegante e suntuoso palacete do visconde, a mais rica
habitação que então havia em Rio Comprido.
A
formosa Matilde se casava, filha predileta do dono da casa, que festejava esse
acontecimento o mais ruidosamente possível.
O
cortejo partira às 2h da tarde à igreja e na rua se apinhava uma multidão ciosa
de assistir a chegada dos noivos regressando da cerimônia nupcial.
***
Enquanto
assim se dispunham as coisas pra folgança no suntuoso palacete do visconde, uma
cena muito diferente se desenrolava numa casa de mais que modesta aparência na
mesma rua.
Em
cima duma mesa que havia na sala dessa casa, que era então um pardieiro quase
arruinado, se via num caixão dos mais baratos que a Santa Casa fabrica, o corpo
duma moça amortalhada. Duas velhas a alumiavam e em redor permaneciam as
pessoas da família e alguns vizinhos, todos gente pobre.
Pai e
mãe e irmãos dessa criatura morta se desfaziam em amargo pranto e sentiam a
alma se rasgar na mais fina dor, nesse momento em que se ia fechar o caixão e o
levar a um carro fúnebre parado à porta.
Pobre
gente! Essa de quem se separariam até sempre era a boa Lúcia, filha e irmã mais
velha, que todos estimavam tanto! Pobre Lúcia! Era o braço direito daquela
família. De seu trabalho vinham os minguados mil réis pra pagar à venda, depois
que o pai ficara aleijado e a mãe entisicara. A boa Lúcia sempre alegre, sempre
resignada! Como não deviam sofrer os pobrezinhos naquele terrível transe!
***
O pai
de Lúcia era um rude operário de obra grossa, um carpinteiro, e tivera a
infelicidade de quebrar uma perna, caindo dum andaime onde trabalhava.
Essa
desventura foi o início de todas as desgraças que assaltaram a família.
Conduzido à Santa Casa, lá esteve quatro longos meses, entre a vida e a morte.
A mulher e os filhos começaram a curtir dura necessidade, pois o pai nada
ganhava.
O
taberneiro já fechava a cara quando iam comprar. Por mais que a mulher do
carpinteiro e Lúcia, sua filha, se matassem numa tina a lavar roupa, o dinheiro
não chegava.
A mãe
de Lúcia era franzina e muito disposta a moléstia do peito. Com o trabalho
excessivo que fazia, logo começou a deitar escarro de sangue na boca, e dentro
em breve nada mais se pôde fazer. O carpinteiro tivera alta do hospital mas não
podia ainda trabalhar. Assim a pobre família ficou na mais negra miséria.
No
entanto Lúcia trabalhava cada vez mais. No dia não se arredava da tina de lavar
roupa, na noite costurava até o galo cantar. Não pôde resistir mais tempo a
semelhante canseira e também caiu enferma.
Uma
circunstância agravou o estado dos infelizes.
A casa
onde Lúcia morava pertencia ao mesmo visconde a que já nos referimos, que
ordenara ao carpinteiro que se mudasse, já que não podia pagar o aluguel. O
visconde, apesar de opulento, era inflexível em questões de dinheiro. De nada
valeu o rogo do pobre carpinteiro que a ele se dirigiu, arrastando as muletas e
com lágrima nos olhos. O visconde manteve a ordem.
— Se
fosse a ouvir as choradeiras de todos, — dizia o titular — bem depressa estaria
reduzido a pedir esmola. Não era quem fazia a desgraça alheia, era Deus. Lhe
pedissem conta.
O
carpinteiro teve que desocupar a casa e fora se meter no pardieiro do qual já
falamos e que por piedade lhe cedera outro carpinteiro, seu amigo e compadre.
Era
uma casa de todo imprópria pra habitação humana: Suja, úmida, acanhada.
Nela o
padecimento de Lúcia foi aumentou e no fim de quinze dias a pobre moça entregou
a alma a Deus.
***
No
entanto o cortejo nupcial regressara da igreja. Duma extensa fila de carros apearam
os noivos, radiantes de felicidade, e bem assim a multidão dos convidados,
homens e mulheres, abafados em suas toaletes de rigorosa etiqueta.
Logo
que os carros despejavam a luxuosa carga que traziam, foram manobrados pelos
cocheiros, muito tesos na boleia, soberbos em sobrecasaca de casimira cor de
camurça e em finas botas de canhão, e entraram na porta-cocheira, aberta de par
a par.
Noivos
e convidados começaram a subir os degraus do vestíbulo. A noiva ia de olhos
baixos, deliciosa no vestido de seda branca, linda como uma tentação, sob sua
grinalda de flor de laranjeira. Da fisionomia do noivo, um guapo mancebo de
vinte e poucos anos, transpirava a maior ventura, parecendo tonto de
felicidade.
Quando
já todos subiram os três degraus do vestíbulo, o carro de enterro que
transportava a pobre Lúcia ao cemitério chegava bem defronte ao palacete do
visconde.
Era um
carro dos de ínfima classe, todo preto e de cortinas esmulambadas, guiado por
um cocheiro negro, de cartola de oleado amarrotada, libré sebosa, tendo a
fisionomia aguardentada, e que, encarrapitado na boleia, chupava com a maior
indiferença neste mundo um cigarro de papel.
Aquela
mísera seguia ao cemitério sem acompanhamento.
O
carro vinha descendo a rua tranquilamente ao trote cansado de dois cavalos
magros, ossudos. Quando chegou bem defronte ao palacete, cavalos que pareciam
incapazes de resistência se encabritaram e recusaram avançar. O cocheiro, que
não esperava essa revolta dos pacíficos rocins, quase foi levado ao chão.
Exasperado, vibrou o pinguelim no dorso das magras cavalgaduras, proferindo as
mais cruas obscenidades.
Noivos
e convidados, todos voltaram o rosto pra ver o que se passava na rua. Os
cavalos do coche fúnebre persistiam em não avançar, e o cocheiro, no auge do
exaspero, desandava os bichos com o cabo do pinguelim.
Aquilo
parecia mandado pelo Diabo. Os cavalos pinoteavam, escoiceavam, o cocheiro
praguejava como um possesso. A final dando os animais um violento arranco, a
poder de pancadas, embicaram o coche ao lado do palacete e nele o esbarraram. A
lança do carro entrou no gradil do jardim que adornava a frente do edifício e
ali ficou a traquitana.
Foi
preciso que a criadagem do visconde desembaraçasse o carro e auxiliasse o
cocheiro.
Esse
fato impressionou desagradavelmente a todos que faziam parte do cortejo
nupcial. Uma senhora idosa exclamou, apavorada:
— Um
carro de enterro parar aqui em dia de casamento! É mau agouro!
***
Sem
que alguém pudesse explicar a razão o festim realizado em casa do visconde
correu frio.
Os próprios
noivos se sentiam tristes. O fato de naquele dia ter parado um carro de enterro
à porta do palacete roubava a alegria a todos. Como se adivinhava uma grande
desgraça.
E esse
mal-estar aumentou quando na meia-noite circulou na sala a notícia de que Matilde,
a formosa noiva, repentinamente adoecera.
Logo
cessaram as danças. As bandas de música se calaram, e os convidados foram pouco
e pouco se retirando. Dali a meia hora só estavam no palacete os parentes e
amigos mais íntimos.
Matilde
estava realmente doente. Subitamente a acometera uma violenta dor de cabeça,
uma aflição, e dentro de uma hora ardia em febre intensa.
O
noivo ficou alucinado. O visconde, já terrivelmente impressionado com o caso do
coche fúnebre, despachou criados em todas as direções pra chamar médicos, que
acudiram pressurosos.
No
entanto por mais esforço que empregassem os facultativos, não puderam aniquilar
a enfermidade que acometera a inditosa moça. Se consumia a olhos vistos. No dia
seguinte já parecia um cadáver, tão pálida e abatida. No terceiro dia conhecia
mais ninguém. No quarto perdera a fala. E na manhã do quinto dia, quando os
pássaros começaram a trilar sobre o arvoredo, cujas ramagens adornavam a janela
de seu aposento, a pobre moça exalando um suspiro se despediu da vida.
Bem
dissera a respeitável matrona que fizera parte do cortejo nupcial. O carro
fúnebre esbarrando no gradil do palacete fora um mau agouro.
O
cadáver de Lúcia, a pobre filha do carpinteiro aleijado, viera chamar à paz do
sepulcro a filha do potentado, do opulento, que tirara um teto a seu pai, em
momento de aflição e pobreza. Deus assim quis. Tanto houve luto no casebre e
esburacado quanto no rico solar. Era que o desumano titular também sentisse lhe
rasgar a alma o espinho da dor.
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Ano de publicação: 1925.
Origem: Brasil (Nordeste)
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