domingo, 5 de dezembro de 2021

O camareiro do rei (Conto popular português), de Teófilo Braga

 

O CAMAREIRO DO REI
 

Era uma vez um rei que era muito amigo dos seus camaristas, e prometeu a todos eles um dote para se casarem. Um deles quis ir viajar para escolher mulher que fosse linda, esperta e honrada. Chegou a uma grande quinta, e logo nos primeiros degraus que davam para a casa encontrou uma menina linda a mais não ser. Pediu pousada, e veio um velho lavrador que o recebeu com boas maneiras e foi-lhe mostrar a casa:

— Que tal lhe parece?

— Acho-a excelente; mas só o frontispício é que está muito baixo.

Foi o velho lavrador mostrar-lhe os seus campos e sementeiras:

— Então que tal as acha?

— Muito boas, se não estiverem já comidas.

O lavrador nada percebia do que ouvia; porque a fachada da casa era alta, e tinha ainda as tulhas cheias de grão. À noite apareceu à mesa uma magnífica galinha, que a filha do lavrador trinchou, dando a cabeça ao pai, as asas à mãe, os pés para o hóspede, e ficou com o peito para si. O lavrador não quis perguntar à filha por que é que fazia aquilo; mas de noite, no seu quarto, contou à mulher a conversa com o camareiro, e notou como a filha tinha trinchado a galinha.

A filha que ouviu tudo do seu quarto, disse de lá:

— Eu sei o que queria dizer o nosso hóspede; o frontispício da casa que era muito baixo, dizia-o por mim, porque me encontrou no patamar da escada; a seara já comida referia-se ao caso de meu pai ter dívidas, porque o que colhesse era tudo para as pagar.

— Muito bem, disse o pai; e agora me dirás, por que me deste à ceia a cabeça da galinha para mim, as asas a tua mãe, e os pés ao nosso hóspede?

— Dei a meu pai a cabeça, porque a si lhe compete o governo da casa; a minha mãe as asas, para agasalhar a família; ao hóspede as pernas, porque ele anda em viagem; para mim o peito, para ser forte contra as desgraças que por amor dele me vierem.

O camarista ouviu tudo, e já gostava da menina por que era formosa, e ainda ficou mais encantado com a sua esperteza. No outro dia resolveu pedi-la ao pai, que lhe deu o consentimento. Veio com ela viver para a corte, mas não quis apresentar a mulher ao rei. O rei andava desconfiado que não seria bonita, e jurou de a ver, desse por onde desse. Rondava-lhe a rua, mas as janelas estavam sempre com as cortinas corridas; por fim sempre comprou uma criada, que o deixou entrar no quarto da senhora quando ela estava dormindo e tinha o marido fora da terra. O rei jurou-lhe que não lhe poria mão, e que era só para vê-la. Entrou no quarto de dormir pé ante pé, e viu uma bela camilha com cortinas de damasco verde, cerradas; abriu-as, e viu a cara mais linda do mundo. Nisto vem a criada de repente dizer para que fugisse, porque chegava o amo. O rei com a pressa deixou cair uma luva. O camareiro veio para o seu quarto e a primeira coisa que viu foi a luva; ficou desconfiado, e nunca mais tratou bem a mulher. Era um inferno em casa. A criada com remorsos de ter feito aquilo àqueles bem casados, foi contá-lo ao rei. O rei lembrou-se de que tinha perdido a luva, e mandou chamar o camareiro, e disse-lhe: — Tendes-me feito uma grande desfeita em nunca me terdes apresentado a vossa mulher para a conhecer.

— Senhor, é que ela é muito doente.

— Pois sim, amanhã vou jantar à vossa casa.

No dia seguinte foi. A mulher do camareiro foi a última a sentar-se à mesa, e assim que se sentou, como havia mais de um ano que não comia com o marido, desatou a chorar. O rei perguntou-lhe porque é que ela chorava tanto. Ela respondeu:

Eu era amada do coração,
Hoje não o sou, nem sei por que não.

Respondeu o camareiro:

Quando eu na minha vinha entrei,
Rasto de ladrão achei.

Respondeu o rei:

Eu fui o tal ladrão
Que na tua vinha entrei;
Verdes parras arredei;
Lindos cachos de uvas vi;
Mas juro-te à fé de Rei
Que eu nas uvas nem buli.

O rei explicou como as verdes parras eram os cortinados de damasco, como vira os braços descobertos, e como se fora embora tendo-lhe caído uma luva com a pressa. O camareiro ficou muito contente, percebeu os perigos da grande curiosidade, e nunca mais fechou a mulher, que na corte era conhecida por todos como a mais linda, esperta e honrada.

 

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Ano de publicação: 1883
Origem: Portugal
(Algarve)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)

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