Um dia
perguntei ao velho Dominguinhos por quê, se quase não saía do mato, todavia não
caçara durante o mês de agosto. A resposta foi a pequena história seguinte.
Contudo,
antes de principiarmos a narrativa, precisamos fornecer alguns esclarecimentos
sobre a personagem que figura como principal ator.
O
velho Dominguinhos era um pardo de 70 anos bem puxados, pequenino, magro,
enfezado mesmo, porém vivo, e o mais hábil e apaixonado caçador que conhecemos.
Dominguinhos
caçava desde menino. Durante toda a juventude e idade madura batera de
espingarda no ombro nossas formosas florestas. Mesmo no último quartel da vida
não saía do mato.
A caça
constituiu, durante toda sua longa existência, a exclusiva profissão e único
vício que admitia ter. Com a caça e pela caça se considerava um mortal feliz,
que na verdade era.
Ninguém
melhor pra arremedar as aves. Ninguém farejava tão bem um veado ou uma paca.
Além
disso Dominguinhos era curado de cobra e como possuía antídotos eficazes contra
a mordedura de qualquer ofídio, era muito estimado dos fazendeiros em cujas
casas passava todo o tempo em que não estava no mato. Eram esses fazendeiros
ainda quem o abasteciam de pólvora e chumbo, pois Dominguinhos era paupérrimo e
toda a sua fortuna se resumia em sua excelente espingarda Laport, em duas
cadelinhas já velhas, Firmeza e Namorada, e num cachorro magro e pelancudo,
Penacho.
A
fisionomia de Dominguinhos denunciava a profissão. O rosto tinha feição de
bicho-do-mato, o focinho de tatu e os olhos espremidos, porém espertos e
penetrantes, se assemelhavam ao duma raposa esperando a caça num cerrado. O
andar era macio, parecendo a todo momento querer surpreender inhambu na latada.
No
mais um bom homem. Nunca se ocupara em fazer bem nem mal a alguém. As caçadas
não davam tempo de pensar no resto da humanidade, a não ser quando se tratava
de mordedura de cobra, porque, então, entrava em cena com seus antídotos.
Dominguinhos
era simplesmente um caçador, mas um caçador direito.
Eis o
retrato da singular personagem a quem perguntei por quê não caçava em agosto,
tendo observado nele tão curiosa anomalia.
***
Foi
assim que começou:
Desde
menino ouvia dizer que o mês de agosto era aziago, por causa do dia 24, que,
como vosmecê sabe, é o de são
Bartolomeu, quando tudo quanto é demônio anda solto neste mundão de Cristo.
Ouvia
falar a miúdo que no mês de agosto não se devia fazer umas tantas coisas, e
principalmente não era bom a gente se internar na mataria, pra não ter algum
mau encontro.
Ouvia
tudo isso, porém vosmecê sabe que,
quando a gente é moço, entra tudo num ouvido e sai noutro, até que afinal
tantas se leva na cabeça que se toma caminho, queira ou não, mas a sua custa, e
Deus sabe, às vezes com que sacrifício.
Assim
estavam falando por aí que não era bom caçar no mês de agosto, e eu todo o dia
no mato, até que de uma vez me estrepei deveras pra nunca mais.
Já
contarei como foi.
Foi
numa véspera de São Bartolomeu. Antes que a manhã rompesse pus ao ombro a
espingarda, uma Laport trouxada, de confiança. Enfiei o embornal da munição e
afivelei na cintura o facão. Noutro embornal meti um pedaço de carne-de-vento e
farinha, e, com Deus, nossa senhora e os anjos da corte do Céu penetrei na
floresta.
Queria
ver de perto, naquela madrugada, um macuco que sabia estar empoleirado num
jaracatiá que havia bem no cocuruto da serra. O diabo do bicho andava me
fazendo cosquinhas havia um par de dias. Eu piava, respondia. Tornava a piar e
chegava, mas quando já estava a distância de tiro, não sei como o endemoninhado
me avistava, e antes que tivesse tempo de levar a espingarda à cara, lá ia ele
tic, tic, tic na folharada seca a fora, que ninguém mais o pegava.
Ninguém
ignora que o macuco é um bicho muito ladino. Quem não souber ou não tiver
paciência não o tira do mato, mas Deus está aí mesmo. Eu, porém, nunca permiti
que bicho tivesse mais astúcia que eu e aquele macuco estava jurado.
O
persegui durante alguns dias, até que afinal, numa tardinha, percebi que se
empoleirava num pé de jaracatiá e assentei de dar cabo dele no outro dia na
manhã. Podia ficar no mato naquela noite pra lhe fazer a tocaia mas não
trouxera mantimento, estava com fome e assim precisei vir dormir em casa.
Quando
entrei, ainda estava escuro. Duma ramalhada se levantava um bando de jacus,
doutra corria uma cotia, mas meu primeiro tiro estava guardado pro ladrão do
macuco que me fez aguentar durante tantas horas as picadas dos pernilongos.
Podia
aparecer qualquer caça, pois dela eu nada queria. Enquanto não atirasse ao chão
o macuco do jaracatiá e o não esganasse na minha fieira, meu tormento não
cessaria.
Fui
subindo, impassível sempre, indiferente à grande quantidade de caça que se me
ia deparando no caminho. Quando o dia rompia já estava no cocuruto da serra,
bem sob o jaracatiá.
Olhei
a árvore. O macuco estava ali mesmo, de peito aberto pra mim. Vosmecê nunca foi amigo de caçada? Então
não pode fazer ideia da alegria que se apossa dum homem que tem esse vício,
quando estica o cano da Laport pra boa caça: Um macuco, um veado, uma paca, uma
anta, etc. Até a respiração da gente escapole do peito sem querer!
Fiz
pontaria bem certeira. Queria ver o bicho dar um tombo redondo. O macuco já
estava reservado. Seria um presente pra doutor Chiquinho, moço muito meu
camarada e amante de caça.
Puxei
o gatilho. O tiro roncou em toda a serrania. Era quase na bucha, e no entanto o
macuco bateu as asas, e foi embora. Nem um caroço de chumbo atingira a peste!
Á!,
meu senhor. Preferia antes ter perdido um olho ou o braço direito do que errar
aquele macuco! Fiquei danado da vida. Não pude me conter e exclamei:
— Vás,
desgraçado. Te dou de presente ao Diabo!
A
minha vontade era partir o cano da espingarda de encontro ao jaracatiá. Não o
fiz, todavia...
Como?!...
Uma espingarda que já até matou onça! Não! isso, nunca!
Resolvi
voltar até casa, mas Deus, nossa senhora e os anjos da corte do Céu é que
sabiam como eu estava! Errar um macuco na bucha, e depois duma trabalheira
daquelas?! Era prum homem nunca mais dar tiro na vida.
Na
descida, novamente esbarrava em toda a espécie de ave e de animal de caça. E me
conservei ainda indiferente, mas nessa vez raivoso, desesperado, pois que
caçador que erra macuco ou veado não deve dar mais tiro durante sete semanas. É
uma vergonha!
Nisso
ouvi uma grande roncaria. Devia de ser uma vara de porcos que se aproximava.
Pensei:
— Não.
Porco-do-mato não passa de rabo em pé perto de mim. Isso mais devagar!
Carreguei
apressadamente a espingarda, e trepei a um tronco perto.
Vosmecê deve
saber que o porco-do-mato, logo que se esteja levantado do chão uns cinco
palmos, nenhum mal faz porque não levanta os olhos e só morde aos lados.
O tronco
onde trepei era uma cepa de óleo-vermelho, que derrubaram pra dele se fazerem
eixo de carro.
A
porcada cada vez roncava mais perto. Á! excomungados! Me pagariam o tiro errado
do macuco.
Pouco
depois vi de fato a porcada surgir lá embaixo, na grota. Eram inúmeros os
porcos. Escolhi um, imenso, que vinha de cachaço levantado e estalando os
dentes. Aquele era meu, com certeza. Mas quando já puxaria o gatilho vi uma
coisa que quando me lembro ainda me arrepia a carne. Que dia de São Bartolomeu
mais arrenegado!
No fim
da manada e montado no cachaço dum dos maiores porcos, vinha o Coisa-ruim!
Não
era bicho nem gente!
Na
verdade parecia um homem mas tinha o corpo todo peludo e era de rosto fechado.
Mas, o que é ainda mais pra admirar, o maldito trazia a tiracolo o macuco que
eu errara. Então me lembrei de tudo. Pois eu não dera aquele macuco ao Diabo? O
Diabo o caçara.
Os
porcos passaram todos. Não tive coragem de atirar neles.
O
Coisa-ruim passou também rente a mim.
De vez
em quando soltava um grito esquisito, pra tocar a vara de porco. Logo tudo
desapareceu: Os porcos e o Demônio!
Tratei
de correr até minha casa. Quem disse que podia sair do mato?! Qual! Aquilo
parecia até coisa mandada!
Um
mato onde eu andava todo o dia e a qualquer hora, mesmo na noite! Pois meu
senhor, me perdi. O caminho era ali mesmo e eu ia andando. Mas dali a pouco
esbarrava numa moita de carumbada onde nem um rato passaria. Seguia noutro
lado. Também havia caminho ali. Mas dali a pouco via em frente uma tapada de
brejaúba, com cada espinho que só uma cobra ali penetraria.
Bati aqui, bati ali. Nada! Não saía do lugar! Não havia que duvidar: Estava perdido!
Assim
passeei todo o dia. Já a noite se avizinhava, sem compreender como me sucedera
aquilo num mato onde era tão vagueano, quando me lembrei do que me contara um
caboclo-velho. Á! Agora compreendia porque me perdera!
O
Demônio que vi passar montado no porco era o Caipora. Era quem não me deixava
acertar o caminho. Contudo havia um meio de me ver livre daquela peste, segundo
me ensinara o caboclo. Era lhe dar fumo. Cortei logo uma porção do que tinha
pra meu gasto e o sacudiu numa touceira de taquara, dizendo:
—
Tomes, Caipora. Me deixes ir embora!
No
mesmo instante o Coisa-ruim, que passara montado no porco, saltou diante de mim
e, fazendo careta, se embrenhou entre as taquaras, apanhou o pedaço de fumo, e
saiu no mundo.
Imediatamente
acertei o caminho e duas horas depois estava em casa.
Então
jurei nunca mais caçar no mês de agosto, pois naquele dia suei frio!
Nenhum comentário:
Postar um comentário