sábado, 4 de dezembro de 2021

O bom diabo (Fábula), de Monteiro Lobato

 

O BOM DIABO
 

Houve um rei que tinha um filho de dezoito anos. 

"Meu filho — disse a rainha — é tempo de eu ler a tua sina" — e leu a sina do moço. Oh, bem triste! O moço tinha a sina de morrer enforcado. A rainha caiu numa grande tristeza, mas nada contou ao filho. "Que abatimento é esse, minha mãe?" — perguntava ele, e a rainha suspirava.

Mas tanto ele insistiu com sua mãe para que lhe contasse a causa da tristeza, que ela contou. "Meu filho, é que tua sina é morreres enforcado."

O rapaz procurou consolá-la, dizendo que morrer todos morriam, e que tanto fazia morrer disto como daquilo. Mas já que sua sina era aquela, só desejava uma coisa: licença para correr mundo e ser enforcado longe dali, de modo que não desse maior desgosto aos seus. A rainha sentiu mas concedeu a licença pedida.

No dia da partida o rei deu-lhe uma grande soma de dinheiro para a viagem — e lá se foi ele pelo mundo afora. Correu cidades e reinos, até que por fim chegou a um sítio onde havia uma capela de São Miguel, com a imagem deste santo e a figura do diabo, mas tudo em ruínas. O príncipe parou ali, com a ideia de reconstruir a capelinha e restaurar as imagens. 

Chamou operários e pôs mãos à obra. Deixou tudo novinho em folha, uma beleza. Quando o pintor veio receber o seu dinheiro, contou que sobrara um pouco de tinta porque havia deixado de pintar a figura do diabo.

— Por que o não pintou? Pinte o diabo também — ordenou o príncipe. E o pintor pintou o diabo.

Concluída aquela tarefa, o príncipe continuou sua viagem pelo mundo. Certo dia foi dar à casa duma velha, à qual pediu pouso. Entrou, jantou, e depois começou a contar o dinheiro que ainda lhe restava. Vendo aquilo, a velha foi correndo dizer às autoridades que estava em sua casa um ladrão, contando o dinheiro que lhe havia roubado.

Veio uma escolta, que prendeu o príncipe. Foi processado, julgado e condenado à morte na forca. Mas no dia em que tinha de ser morto, lá na capelinha de São Miguel o santo pôs-se a conversar com o diabo.

— Então, estás agora bonito, hein diabo?

— É verdade. Pintaram-me inteirinho.

— E não sabes quem consertou esta capela e nos pintou?

O diabo não sabia; o santo contou-lhe a história do príncipe que passara por ali, e disse mais que esse pobre moço fora preso, processado e julgado, e naquele mesmo dia ia ser erguido a uma forca por causa das intrigas de certa velha.

O diabo não quis ouvir mais. Pulou num cavalo e foi voando à casa da velha; agarrou-a e levou-a ao rei, fazendo-a confessar toda a sua maquinação contra o moço. O rei deu ordens para que soltassem o preso e o trouxessem à sua presença.

O diabo montou no cavalo e voou para a prisão onde o príncipe ia ser enforcado, e apresentou ao carrasco a ordem de soltura. O carrasco entregou-lhe o condenado, que lá se foi com o diabo para o palácio do rei.

O rei indagou do príncipe quem era ele e de onde vinha. Sabendo de tudo, condenou a velha a restituir-lhe o dinheiro e a ir para a prisão em lugar dele. Terminado o caso, q, moço partiu novamente a correr mundo.

Pelo caminho encontrou um fidalgo, ao qual contou tudo.

O fidalgo disse:

— E não sabes quem te valeu?

— Não sei de nada — respondeu o príncipe.

— Pois fica sabendo que foi o diabo da capelinha de São Miguel, e esse diabo sou eu. No dia em que iam enforcar-te São Miguel me contou tudo. Montei num cavalo e voei à casa da velha; agarrei-a e levei-a ao rei, para que tudo se esclarecesse.

— E a que devo eu tanta bondade? — perguntou o príncipe.

— Ah! — exclamou o diabo, rindo-se. — Tudo deves àquele bocadinho de tinta que mandaste aplicar sobre minha figura. Agora estás livres da má sina, porque a velha vai ser enforcada em teu lugar. Podes voltar sossegadamente ao reino de teu pai, que nada mais te acontecerá.

O príncipe assim fez. Antes, porém, voltou à capelinha de São Miguel para agradecer ao bom santo — e enquanto rezava viu a figura do diabo muito contente da vida na sua pintura nova.

 

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Ano de publicação: 1922.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)

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