terça-feira, 7 de dezembro de 2021

O Boi Cardil (Conto popular português), de Teófilo Braga

 

O BOI CARDIL 

Um rei tinha um criado, em quem depositava a maior confiança, porque era o homem que nunca em sua vida tinha dito uma mentira. Recebeu o rei um presente de boi muito formoso, a que chamavam o boi Cardil; o rei tinha-o em tanta estimação que o mandou para uma das suas tapadas acompanhado do criado fiel para tratar dele. Teve uma ocasião uma conversa com um fidalgo, e falou da grande confiança que tinha na fidelidade do seu criado. O fidalgo riu-se:

 – Por que te ris? – perguntou o rei. 

– É porque ele é como os outros todos, que enganam os amos. 

– Este não! 

– Pois eu aposto a minha cabeça como ele é capaz de mentir até ao rei. 

Ficou apostado. Foi o fidalgo para casa, mas não sabia como fazer cair o criado na esparrela e andava muito triste. Uma filha nova e muito formosa, quando soube a causa da aflição do pai, disse: 

– Descanse, meu pai, que eu hei de fazer com que ele há de mentir por força ao rei. 

O pai deu licença. Ela vestiu-se de veludo carmesim, mangas e saia curta, toda decotada, e cabelos pelos ombros e foi passear para a tapada; até que se encontrou com o rapaz que guardava o boi Cardil. Ela começou logo: 

– Há muito tempo que trago uma paixão, e nunca te pude dizer nada. 

O rapaz ficou atrapalhado e não queria acreditar naquilo, mas ela tais coisas disse e jeitinhos deu que ele ficou pelo beiço. Quando o rapaz já estava rendido, ela exigiu-lhe que, em paga do seu amor, matasse o boi Cardil. Ele assim fez e deu-se por bem pago todo o santíssimo dia. 

A filha do fidalgo foi-se embora, e contou ao pai como o rapaz tinha matado o boi Cardil; o fidalgo foi contá-lo ao rei, fiado em que o rapaz havia de explicar a morte do boi com alguma mentira. O rei ficou furioso quando soube que o criado lhe tinha matado o boi Cardil, em que punha tanta estimação. Mandou chamar o criado. 

Veio o criado, e o rei fingiu que nada sabia; perguntou-lhe: 

– Então como vai o boi? 

O criado julgou ver ali o fim da sua vida e disse: 

Senhor! pernas alvas
E corpo gentil,
Matar me fizeram
Nosso boi Cardil.

O rei mandou que se explicasse melhor; o moço contou tudo. O rei ficou satisfeito por ganhar a aposta, e disse para o fidalgo: 

– Não te mando cortar a cabeça como tinhas apostado, porque te basta a desonra de tua filha. E a ele não o castigo porque a sua fidelidade é maior do que o meu desgosto.

 

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Ano de publicação: 1883
Origem: Portugal
(Algarve)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)

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