domingo, 12 de dezembro de 2021

O aviso misterioso (Contos de Mistérios), Viriato Padilha

 

O AVISO MISTERIOSO

O jovem Albino Seabra partira à nefasta campanha do Paraguai na qualidade de sargento dum batalhão voluntário.

Sua mãe, a velha dona Jacinta, viúva sexagenária, ficara inconsolável com aquela partida, pois dos quatro filhos era o único varão.

Mas o que fazer? A pátria exigia o sacrifício de seus mais esperançosos filhos. A honra nacional ainda não fora desagravada dos insultos do tirano Lopes. Era, por conseguinte, preciso seguir ao campo da luta cruenta, embora no lar ficassem sangrando doces corações de mãe e de irmãs.

Foi o que fez Albino Seabra. Assentou praça, envergou a blusa honrosa do soldado, sobraçou a escopeta, e, feito sargento logo em seguida, buscou os extensos banhados paraguaios.

Já o exército brasileiro rompera o terrível quadrilátero onde Solano Lopes se entrincheirava, e depois de conseguir a rendição da temerosa Humaitá, se internou no coração do velho país das missões jesuítas.

Se transpusera o Chaco, onde se praticara aquela importante entrada estratégica que foi um padrão de glória prà engenharia militar brasileira. A esquadra passara Angostura, e em 6 de dezembro de 1868 se feria o notável combate da ponte de Itororó, em que o sargento Seabra conquistou os galões de alferes por combater com inexcedível bravura ao lado de Fernandes Machado, que regou com o sangue generoso o solo inimigo.

A velha dona Jacinta exultou com a promoção do filho, mas nem por isso o pobre coração se desanuviara das mágoas da ocasião da triste separação. A inditosa senhora ainda não pudera se conformar com o pensamento de ter seu querido Albino naquela terra tão distante, onde só se respirava a morte. Me que era seu ai-jesus!, por ela guardado até quando dormia, cercado de todos os cuidados da família, se ver assim, dum momento a outro atirado à balbúrdia dos acampamentos, nos quais cada um trata de si com egoísmo feroz! Noites e noites de vigília, frio, chuva, fome, febre, e no fim de tudo isso muitas vezes a explosão duma granada a levar ao ar aquelas carnes queridas geradas em suas entranhas e crescidas sob o orvalho de seus carinhos! Tal pensamento agoniava a alma da pobre criatura.

Embora as filhas se esforçassem pra consolar, demonstrando a facilidade com que o homem se habitua à dureza da guerra e a probabilidade de sair o irmão ileso da campanha. Embora lhe fizessem sentir a nobreza do seu procedimento e os prêmios que lhe reservaria a pátria agradecida. Dona Jacinta sofria sempre. Já as cores vivas da saúde fugiam do rosto onde as rugas se multiplicavam. Todo o corpo se alquebrava ao peso do desgosto e a existência rolava de casa ao quartel-general e à redação dos jornais, a fim de ter notícia dos combates, pra ver se figurava o filho, ou antes, se não figurava, como seu coração pedia.

***

Todavia foram passando os meses sem maior novidade. Nos fastos militares gloriosos pro Brasil inscreveram mais as belas jornadas de Avaí e Lomas Valentinas. Solano Lopez buscava as regiões serranas de seu país como último refúgio. O conde d'Eu assumira o comando-em-chefe das tropas aliadas, e tudo prenunciava o fim da terrível campanha.

Dona Jacinta acompanhava com sofreguidão o desenrolar daquele drama sangrento representado por quatro nacionalidades, andando pra ver cair o pano sobre a última cena, fosse lá por que forma fosse, pois um coração de mãe é inacessível ao interesse patriótico. A mãe dos Gracchos, e a de Deodoro da Fonseca, que mandou sete filhos à campanha, são exceções ilustres.

Mas passemos à narração do fato culminante desta pequena história.

***

No dia 12 de agosto de 1869, quando a família Seabra ainda estava na sala de jantar,  tomando o café-da-manhã, uma crioula que varria a casa e espanejava os modestos móveis apareceu diante das senhoras com ar de espanto, e exclamou:

— Sinhá! O retrato de nhonhô Albino está jogado no chão.

Todos se levantaram, como que erguidos por impulso elétrico. Perguntou dona Jacinta:

— Como?! No chão?!

— Sim, senhora. Fui varrer a sala e encontrei o quadro caído.

Correram todos à sala. Lá estava efetivamente atirado no assoalho, e com o vidro partido, o retrato de Albino Seabra.

Era um trabalho a lápis feito por um amigo de Albino, estudante da academia de Belas Artes, e ofertado a ele em dia de seus anos.

O retrato estava solidamente preso à parede, estavam firmes os pregos e o cordel era novo e resistente. Como se despregara?! As janelas da sala ainda estavam fechadas, e assim permaneceram durante a noite. Não se podia, por conseguinte, atribuir a queda ao vento. Dizer que fora a preta que, ao o espanar, o fizera cair, também não era admissível, pois se pressentiria o baque.

Demais, os cordéis que o sustentavam não se arrebentaram e os pregos estavam no mesmo lugar.

Em suma, a queda do retrato era simplesmente inexplicável, e dona Jacinta se cobriu de tristeza e de sombrias apreensões com esse fato estranho. Perguntou às filhas, entre lágrima e soluço:

— O que sucedera a Albino no Paraguai?

***

Se passaram alguns dias depois desse esquisito fato, quando chegou ao Rio de Janeiro a notícia do combate de Peribebuí, alcançado pelo conde d'Eu.

Fora uma esplêndida vitória. O inimigo deixara no campo 1800 cadáveres ao passo que apenas contávamos 56 mortos.

Dona Jacinta correu logo ao quartel-general a fim de saber os nomes desse punhado de bravos que se imolaram, pois o único de cuja morte já se conhecia era o ilustre Mena Barreto.

Pobre mãe! Aquele dia seria o mais negro de toda a sua vida! Na lista oficial dos mortos, que lhe apresentara o ajudante-general estava o de seu estremecido Albino.

Morrera gloriosamente quando procedia à escalada das trincheiras de Peribebuí, exatamente no dia em que seu retrato se despregara da parede da casa materna, e se quebrara no chão.


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Ano de publicação: 1925.
Origem: Brasil (Nordeste)

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