Havia um sapateiro que trabalhava noite e
dia, mas nunca passava da cepa torta; um vizinho muito rico ouvia-o cantar
sempre esta cantiga:
Sou um pobre sapateiro,
Que estou sempre a dar, a dar,
Quem nasceu para ser pobre
Que lhe serve o trabalhar?
Ao som desta cantiga batia sola; o vizinho
lembrou-se de lhe fazer uma surpresa, e mandou-lhe uma grande rosca cheia de
dinheiro por dentro, que era para ele comer com sua mulher e filhos, e quando a
partisse já não ter que se queixar da sorte. O sapateiro assim que recebeu a
rosca deu muitos agradecimentos ao vizinho, mas como tinha tido uma doença em
casa lembrou-se de ir levar de presente a rosca ao médico a quem estava em
dívida. A mulher ficou muito contente com a lembrança e foi ela mesmo levá-la a
casa do médico. Passados dias passou o vizinho rico pela porta do sapateiro, e
ouviu-lhe a mesma cantiga, e perguntou-lhe:
— Oh homem! pois você não comeu a rosca com a
sua família?
O sapateiro contou o motivo porque se tinha
visto obrigado a levá-la de presente ao médico. O rico foi-se embora, e
passados dias mandou-lhe uns toros de pinheiro, também cheios de dinheiro por
dentro, dizendo que era para fazer o seu lume. Ora o sapateiro era vizinho de
um padeiro, de quem comia fiado, e para lhe ser agradecido levou-lhe os toros
de presente para queimar no forno. De outra vez passou o vizinho rico pela
porta do sapateiro e perguntou-lhe se já tinha rachado a lenha que lhe mandara;
o homenzinho contou como se vira obrigado a levar os toros de presente ao seu
vizinho padeiro, que lhe dava pão fiado. Vai o rico e disse-lhe:
— Você parece que tem razão em se queixar de
que nasceu para ser pobre, porque a rosca de pão e os toros de pinheiro vinham
por dentro recheadinhos de dinheiro. Agora ainda que lhe queira fazer bem já
não posso, nem trago nada comigo. O mais que lhe posso dar é esse pedaço de
chumbo que achei ali no caminho.
O sapateiro pegou no bocadinho de chumbo, e
como de nada lhe servia deitou-o ali para um canto, e continuou a trabalhar ao
som da mesma cantiga. De noite quando estava na cama, sentiu bater à porta:
truz, truz! Falaram:
— Oh senhora vizinha!
A mulher do sapateiro levantou-se e foi ao
postigo; era a mulher de um pescador que morava paredes meias e disse:
— O meu homem vai agora para o mar, para
deitar as redes; é uma ocasião boa, mas falta-lhe chumbo para elas. Não terá
por aí qualquer bocadinho que me dê?
O sapateiro lembrou-se do chumbo que lhe
tinha dado o homem rico e disse à mulher onde estava, e que o levasse à do
pescador. Lá o que se passou não sei, mas o pescador tirou uma rede cheia de
peixe, e a mulher veio a casa do sapateiro trazer-lhe em paga uma boa garoupa
para amanharem para o jantar. Quando a mulher do sapateiro a estava arranjando,
abriu-lhe as ventrechas e achou-lhe dentro uma pedra a modo de um vidro
esquinado e deu aos pequenos para brincarem, sem fazer a isso mais reparo. Os
pequenos brincaram com a pedra, e deixaram-na para aí quando se foram deitar.
De noite estava o sapateiro na cama, e depois que apagou a candeia viu luzir
uma coisa como que se fosse os olhos de gato.
— Homem, essa! parece-me que vejo luzir ali
uma coisa.
A mulher reparou, e viu o mesmo; levantou-se
o sapateiro e foi ver o que seria; deu com uma pedra muito polida, e foi então
que a mulher se lembrou que a tinha encontrado na ventrecha da garoupa. O
sapateiro quando amanheceu foi mostrá-la a casa de um ourives, que lhe disse
que aquilo era uma pedra preciosa e que valia tanto que nem ele mesmo tinha
dinheiro para a comprar; mas que se ele quisesse iria mostrá-la ao rei, que só
ele é que podia ter joias de tanto valor. Assim fez, e o sapateiro veio a
receber muito dinheiro pela pedra; mudou de vida, comprou casas e quintas, e
quando já se tratava como um senhor, passou-lhe pela porta o antigo vizinho
rico que tinha estado muito tempo fora da terra, e ficou pasmado de o ver tão
acrescentado. Ele dizia lá consigo:
— O velhaco do sapateiro enganou-me; guardou
o dinheiro que lhe mandei dentro da rosca e dos toros de pinheiro, e só depois
da coisa esquecida é que se saiu com ele.
Mas o sapateiro era homem liso, e contou-lhe
como a fortuna lhe viera pelo bocadinho de chumbo que lhe deu, agradeceu-lhe
muito, e concluiu que apesar das suas queixas ele tinha nascido para ser rico,
pois dera por duas vezes pontapés na fortuna.
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Ano de publicação: 1883
Origem: Portugal (Porto)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2021)
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