O velho cura morava na aldeia, e só muito
raramente, com mais sacrifício do que esforço, arrastava a sua velhice
pachorrenta e a sua discreta virtude até o burburinho da grande cidade tão
cheia de fortuna e de miséria, eternamente escabujando no volutabro do vício.
Chamava-se Bernardim, e era um homem de altura meã, quase gordo, com um ar
sadio de campo, olhos pequeninos e claros, cabelos brancos e faces ainda de
punícea cor, onde começava a sulcar o vale das rugas.
O doce Bernardim, homem simples e bom, sem a
enredada sabedoria dos magnos sacerdotes, sem largos voos de imaginação, pouco
se aprofundara em dogmas e conceitos; cumpria fielmente as leis de Jesus com a
mesma facilidade inocente com que um fruto sai de uma flor. Assim, não maldizia
porque de ninguém se queixava; era esmoler porque se condoía de quem era pobre
e tinha fome; não mentia por ignorar que outra coisa além dos beijos e da
verdade pudesse pousar em humana boca, — nem mesmo as abelhas que esvoaçavam em
torno dos lábios de Platão; não praguejava porque de nada serve a blasfêmia;
não odiava porque todos o amavam; era casto porque tinha bons pensamentos. Lera
pouco durante a longa existência; sabia que no princípio Deus criou o céu e a
terra, depois separou a luz e a treva... Não conhecia histórias de raças e de
conquistas, nem crônicas de guerras religiosas, nem falsidades e manhas de
inimigos. A Inquisição com todos os suplícios e todas as vítimas era uma
espécie de lenda para amedrontar os ateus, assim como o papão era uma fantasia
para intimidar as crianças; o Papa era um padre muito santo e muito sábio que
morava em Roma; Roma era uma cidade vizinha de sua França. Com o latim do
Seminário dizia missa, fazia citações ao amigo farmacêutico, pregava às vezes
no púlpito e ensinava declinações e conjugações: ancila, ancilae; fero, fers, tuli, latum, ferre...
Gostava de passar bem porque dizia que não
era santo; e quando sentado à mesa, com a porta aberta para quem tivesse fome e
quisesse entrar, tendo dado esmola e distribuído pães (mais pão do que
conselhos), orava e acalmava o estômago com o pão que é o corpo, com o vinho
que é o sangue de Jesus, muitas vezes pensava: — Coitadinho de São João que
comia gafanhotos!...
Era tranquilo e meigo; qualquer sofrimento
lhe causava pena, para toda estúrdia encontrava uma desculpa, e para os crimes
tinha sempre um perdão.
Certa vez, numa tormentosa noite de inverno,
quando lá fora caía o gelo e rugia a fúria do sudoeste digladiando as árvores
nuas, ele deitado, acomodado começava a dormir; de repente escancarou-se a
porta e entrou pelo seu quarto um homem todo coberto de Sangue e de medo.
— Meu Padre!
— Que é, filho?
E o assassino tremendo como se já estivesse
diante da máquina sinistra e fatal da guilhotina:
— Matei meu irmão!
O Padre Bernardim olhou-o, mal compreendendo
as suas palavras loucas.
— Teu irmão?
— Sim, meu irmão!
Com uma infinita calma e uma suave ternura, o
velho sacerdote acrescentou:
— Que horrível crime, meu filho! Deus
te perdoe!
Persignou-se, — e como tinha sono continuou a
dormir.
Toda a aldeia o estimava; havia moças que batizara
e casara; quando saía, já se apoiando a um trêmulo bordão, as mulheres vinham
dos casais à porta, à espera de sua benção, e ele passava sem se apressar e sem
se admirar, como se estivesse em casa ou como se a aldeia fosse a continuação
de sua casa. E quantas vezes, quando havia lua no céu, as crianças se reuniam à
sua porta, e o Padre, ingênuo e bom começava com sua voz repousada e tranquila:
— Era uma vez uma camponesa que se chamava
Joana...
***
Foi nos primeiros dias de fevereiro que uma
vez, por uma tarde fria, quase à hora da noite, um homem pobremente vestido de
calça e blusa, com uma espécie de gorro de operário, entrou em casa do Padre
Bernardim. A classe terminara. Bernardim estava só no seu quarto, quando duas
pancadas discretas ressoaram à porta. Tão habituado estava o Padre a todas as
visitas, que nem de leve se admirou, e calmamente disse:
— Entre!
O homem tão modestamente vestido de
marceneiro penetrou rio seu quarto.
— Meu Padre, eu sei que vai amanhã à cidade,
e lhe venho pedir um favor.
Tanta doçura havia nas palavras do
desconhecido, tanta certeza, tão amável e boa era a sua fisionomia, que o velho
sacerdote teve a esquisita vontade de lhe beijar as mãos.
— Mas como soube que eu vou amanhã à cidade?
O carpinteiro tirou o gorro passou a mão
pelos cabelos e pela barba castanha, e falou com uma voz persuasiva:
— Não lhe posso dizer ao certo como tive notícia
de sua visita amanhã a Paris; mas o que é verdade é que há mais de quinze dias
eu ando à sua busca para lhe pedir a graça a que vim. Sempre, infelizmente tem
havido desencontro entre nós; aqui estou porém; e mesmo que o Padre quisesse
adiar a viagem, é tão caridoso o que lhe vou pedir, que certamente acederá à
obra de tanta misericórdia e caridade!
— Fale, irmão!
— Depois de amanhã é o Carnaval; é a loucura
da embriaguez e da orgia. Num dos centros mais populosos e vergonhosos da
cidade mora uma pobre pecadora que há seis meses definha, vencida pelo mal
terrível da tuberculose. A casa em que habita é muito mais que suspeita; desde
janeiro até São Silvestre estrebucha entre as quatro paredes uma horrenda
bacanal; é lá a reunião dos vadios, dos alcaiotes, dos companheiros do vício,
dos sodalícios da orgia. É a vilança da inteligência e do caráter, a pândega
pulha e ignóbil de bordel e de taverna! A criatura de que falo muito me
interessa; parece-me que no mato, descobri um remédio que si não é cura, é ao menos
um alívio ao doloroso mal dos pulmões. Mas me diga, irmão: eu, um pobre
carpinteiro posso entrar assim de blusa, sem chamar a atenção numa casa de
tanto pecado e. tanto luxo? O meu amigo é um sacerdote; e para que não desperte
suspeita, quando levar o remédio ouvi-la-á em confissão, pois a criatura,
enfermiça há muito, anda agora a morrer. Bastará que chegue à sua casa às dez
horas da noite, quando os rapazes e as mulheres saírem em algazarra para o
ruído do Carnaval. O seu quarto é no segundo andar, num corredor, terceira
porta à esquerda. Vá, meu irmão, e fique certo de que faz uma grande obra de
caridade. Vá, ela o espera!
E o marceneiro deu a rua e o número da casa.
Com tanta firmeza ele falara que o Padre não
pensou em por a menor objeção; apenas com um sorriso que a tristeza severizara
indagou:
— E o remédio que lhe devo dar, onde o
encontro?
Quedou-se alguns instantes pensativo com o
sobrecenho carregado o desconhecido; parecia que uma grande magna lhe lancinava
a alma; por fim, murmurou:
— Irmão, ela já está desenganada pelo médico!
— Sim, mas o seu remédio descoberto no mato?
O carpinteiro meneou a cabeça negativamente.
— É inútil levar-lhe remédio! Vejo que é
tarde! Leve-lhe a extrema unção!
Bernardim curioso ainda perguntou se ele a
vira ultimamente.
— Não, eu nunca a vi!
Até hora alta da noite os dois homens
conversaram; um do outro se agradara na simplicidade que os fazia parecidos; e
era tão simpática a convivência dos seus espíritos que nem um reparou na
madrugada que vinha nascendo no céu...
***
Paris estava no deslumbramento da festa
louca. Explodiam por toda a parte orquestras de assovios, faiscavam
iluminações, retumbavam clamores de orgia. Já passavam os grupos para os bailes
numa ruidosa algazarra a que se sentia o vinho. Era o domínio do rega-bofe e da
troça, da pândega desconjuntada, da pilhéria, da chalaça, da chacota, da
laracha, do insulto mascarado a que se chama geralmente espírito...
Passavam pierrots, arlequins, clowns, dominós; todo mundo tinha uma fisionomia mais ou
menos mascarada; tilintavam guizos, sacudiam-se canções lascivas de bordel. Era
o Carnaval. Era a intriga elegante para a gente fina, era a pilhéria boçal para
os rudes; eram os vinhos Champagne para os ricos e clubmans, era a aguardente para os pobres e galhardos.
Para muitos era a verdade. Vinham os grupos e os carros de todas as ruas e
penetravam ruidosos nos boulevards festivos.
A grande, a gloriosa, a imortal cidade parecia toda entregue à momice e à
graçola do entrudo. Onde estava o grande cérebro de Paris produzido por
centenas de edições, em milhares de brochuras, a seiva fecunda do seu grande
espírito pelas artes e pelas ciências? Onde os cursos em que se aprendem todos
os conhecimentos do saber humano, em que se preveem todas as hipóteses, em que
se investigam todas as causas, e se determinam todos os efeitos? Paris
descansava; o Carnaval se estendia sobre a opulenta cidade como um grande polvo
que abre tentáculos...
Caía a neve; choviam policromias de confetti; e pairava no ar um cheiro de harém, e subia
no espaço um perfume de absinto...
Às dez horas da noite, de uma casa da
rua des Petits Correaux saiu um grupo alegre de mascarados e
mascaradas; carruagens se aproximaram; houve uma grulhada de vozes, uns risos e
uns gritinhos nervosos, um ar de cochicho e segredo que há sempre entre
máscaras para que toda gente saiba que eles se conhecem entre si; depois um
ajuntamento de curiosos, e os carros partiram. Aquele trecho da rua ficou por
instante silencioso; nesse momento, um carro modesto parou; desceu o Padre
Bernardim acompanhado pelo acólito, e os dois entraram na casa de onde haviam
partido os mascarados. Defronte, um homem de blusa de operário e que parecia um
marceneiro, rondava.
***
O velho Bernardim sentiu-se contrafeito ao
penetrar naquele corredor, ao subir aquela escada onde pairava um ar de
mistério e de orgia, onde havia pouco roncavam deboches e bebedeiras, onde
passaram homens sem fé e mulheres seminuas, e onde entrava agora com Jesus
Cristo, para dar a extrema-unção a uma moribunda. Mas lembrava-se das palavras
do seu visitante: "Ela o espera!" Ela o esperava; mas onde? Todas as
salas estavam vazias; por toda parte, em vez de remédios, jaziam garrafas
esgotadas de vinhos Seus pudicos olhos surpreendiam interiores desonestos de
alcovas lascivas... O acólito lembrou que era no segundo andar, terceira porta
à esquerda. Subiram uma nova escada, chegaram ao corredor; mas pairava o mesmo
silêncio, descansava o mesmo abandono. O velho padre estava receoso; temia que
entrasse alguém e o visse conduzindo o Salvador aquela casa de pecado e de
vício. E se voltassem de repente aquelas mulheres e aqueles homens? Decerto o
desrespeitariam, tontos pela loucura da bebida e do Carnaval. Foi com uma vaga
esperança de fugir àquela casa sem fé e sem Deus, que ele disse ao companheiro:
— Parece que nos enganamos! Não há ninguém na
casa!...
Mas este não respondeu: com a mão em concha
sobre a orelha, parecia ouvir atentamente.
— Que é que fazes?
— Não está ouvindo um rumor que parece um
gemido?
Efetivamente aos ouvidos do Padre chegavam
agora uns dolorosos e abafados ais. Encaminharam-se mais para porta, e bateram
de leve; ninguém respondeu; outra vez, com os nós dos dedos, Bernardim de
mansinho fê-la ressoar; também não houve resposta, mas aos dois amigos pareceu
que o sussurro cessara. Por fim o rapaz entreabriu a porta, e o Padre entrou
sozinho.
***
Longo tempo durou a confissão.
Quando o Padre abeirou-se do leito da
enferma, quando ela o viu, não mostrou o menor espanto nem o mais ligeiro
sobressalto; apenas nos seus grandes olhos muito fundos e sofredores, fulgiu
rápida e fugace uma centelha de alegria. O velho sacerdote olhou em volta de
si. O quarto era pequeno, mas conservava um luxo atrevido e convencional de
veludos e de cetins; o leito largo, fofo, sensual, era encimado por um
baldaquino de seda vermelha como sangue; e à cabeceira, pregado à parede, um
grande espelho refletia o quadro triste de uma doente quase na agonia. O Padre
que vencera facilmente a vergonha de entrar naquela casa suspeita, escrupulizou
diante daquele cristal de serralho, luzente e obsceno, e desviou os castos
olhos. Perto da porta um divã ostentava a sua cor vermelha também; havia
espalhadas duas ou três cadeiras largas; o lavatório estava cheio,
transbordando de frascos secos de essências e caixas vazias de pó de arroz ao
lado um átrio onde descansavam os três volumes do Chevalier de Faublas e uns números velhos de Sans-Gene, L'Indiscret, Culotte Rouge, La Dame aux Camélias",
e uma história de Napoleão I; perto da cama estava a mesinha; havia frascos de
remédio, — e uma vela iluminava uma pequena e tosca imagem de São José
Bernardim, com uma voz tranquila deu as boas noites à rapariga, e indagou
solícito:
— Sente-se melhor? Gemia tão baixinho que mal
pude ouvi-la!
Ela fez um esforço cansado e murmurou com
tristeza:
— Tinha medo de incomodar os que se
divertiam! Já ontem quiseram mandar-me para o hospital! Diziam que eu ia
estragar-lhes o entrado... Não me queriam dar um confessor! Mas eu. sempre tive
a esperança de não morrer com tanta culpa!
E olhou com um ar devoto para a imagem de São
José...
— Pois aqui estou, minha filha, para ouvi-la
e perdoá-la!
A pobre criatura ficou com os olhos rasos de
lágrimas felizes; e com a voz trêmula indagou curiosa:
— Diga-me, meu Padre, conhece-me? Como soube
que estava doente?
— Um homem que foi à minha casa e me falou do
seu estado... Não o conheço; creio que é um carpinteiro.
— Talvez queira fazer o meu caixão...
— Talvez queira salvá-la, minha filha!
Ela contou-lhe a sua história. Era a mesma de
sempre, dolorosa e banal; era a sedução estúpida de um homem covarde; depois da
posse vinha o gualdipério imediato; era a primeira queda no lodo e na lama do
vício, o espectro da fome aparecendo, e por fim a rendição completa, o aluguel
do seu corpo, a prostituição da sua alma.
O Padre escutava-a em silêncio, ansioso pela
obra da graça e do perdão; ouviu-lhe ainda todos os feios pecados, e
absolveu-a. Nesse momento a vela se apagou. Quando conseguiu de novo acendê-la,
reparou com um vago tremor que a estátua de São José tinha caído, e que a
rapariga estava morta...
***
Muitas horas passara no quarto da moribunda;
quando chegou à rua reparou que era hora alta da madrugada. Por todos os lados
ainda estrugiam gritos alegres de carnaval.
O carro aproximou-se; Bernardim deu um
derradeiro olhar à triste casa onde ficara abandonado um cadáver, e entrou com
o acolito para a carruagem. Vinham pela rua carros alegres, iluminados a fogos
de bengala; era o grupo de mascarados que regressava. Os animais fustigados
partiram, e ele pensou:
— Aí voltam os doidos para o cemitério!...
Para trás não tinham ainda ficado dez metros,
quando ao aceno de um desconhecido, a caleça parou. Era o marceneiro; e assim
disse:
— Muito obrigado, meu Padre, por ter vindo!
Coitada, ela morreu!
Foi só; caminhou e desapareceu na sombra. Mas
o Padre Bernardim, dando ordem para de novo partir, pensou que havia qualquer
coisa de estranho naquele homem tão pobremente vestido de operário; pareceu-lhe
que havia uma luz refulgente e tranquila nos seus olhos; e supus um instante
que em fim aquele carpinteiro talvez fosse São José...
---
Ano de
publicação: 1904.
Origem:
Brasil
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021).
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