Ter um ofício qualquer que seja ele, por mais
rude que possa parecer, mesmo o mais brutal e pesado, é a melhor coisa que pode
haver. É por isso que o Positivismo, a bela e nobilíssima religião da
Humanidade, fundada pelo imortal filósofo Augusto Comte, exige dos seus adeptos
que aprendam um ofício, que tenham uma profissão, uma arte manual. Devia até
ser obrigatório a todos os cidadãos.
Ora, ouçam, o que sucedeu a três irmãos:
João, José e Joaquim.
Vivendo numa cidade antiga, há muitos e muitos
anos passados, o mais velho, João, aprendeu para ferreiro, José para
carpinteiro, e Joaquim para barbeiro.
Quando já se achavam mestres em seus ofícios,
os dois primeiros solicitaram do pai licença para irem ganhar a vida, e lhe
pediram a bênção à hora da despedida.
Joaquim quis também ir correr mundo; mas em
vez da bênção, que não lhe encheria a barriga, disse o perverso e mau rapaz, em
tom zombeteiro, que queria a pequena herança que lhe coubera por morte de sua
mãe.
Por isso foi castigado. Quando saiu de casa,
ao transpor a porta da rua, deu uma topada tão forte que lhe arrancou uma unha.
Foi esse o primeiro contratempo que teve.
Enfurecido, vendo estrelas ao meio-dia, cego
com a dor, exclamou:
— Diabos te levem, porta do inferno!...
Ouvindo-o o pai retorquiu-lhe
— É no inferno mesmo que hás de ir parar um
dia, filho desnaturado!
Joaquim respondeu com mau modo, e partiu em
busca de João e José, seus irmãos.
Depois de haver andado por muitas cidades,
indagando sempre se não tinham visto dois irmãos, um ferreiro e outro
carpinteiro sem que ninguém soubesse lhe dar notícias deles, já estava
desanimado de os encontrar, quando chegou, uma vez, a uma grande capital.
Como já era tarde, foi dormir na guarda do
Tesouro, tendo pedido licença ao sargento comandante. Sucedeu, porém, que nessa
noite os ladrões arrombaram as portas para roubar o dinheiro que ali havia.
Sendo pressentidos, foram presos, e também
Joaquim, foi tomado como cúmplices deles.
Não tendo naquela cidade quem o conhecesse, o
rapaz escreveu a seu pai, mas este não lhe respondeu, justamente queixoso com
as ingratidões e infâmias daquele malvado filho, indigno e desrespeitador.
Achando-se Joaquim no cárcere, cumprindo
sentença, aconteceu que o ferreiro da cadeia onde estava o irmão precisasse de
um oficial do mesmo ofício, e João apresentou-se como ferreiro, e foi aceito,
começando a trabalhar logo na forja. Como era bom oficial e muito hábil, dentro
em pouco tempo passou a contramestre.
Mais tarde precisou-se de um carpinteiro e
José ofereceu os seus serviços.
No dia em que Joaquim dava entrada na cadeia,
preso, escoltado por seis soldados, João e José, usando da grande consideração
com que eram tratados pelo administrador das prisões, por serem ótimos oficiais
e homens honrados e dignos, foram empenhar-se com o rei para soltar o irmão,
alegando que ele era inocente.
Sua majestade não lhes atendeu o pedido e o
mais moço foi condenado à forca, ao passo que os verdadeiros ladrões que haviam
arrombado o Tesouro foram absolvidos recaindo toda a culpa, por uma dessas
fatalidades inexplicáveis, um desses erros muito comuns na justiça de todo os
países, sobre o inocente.
No dia da execução, na praça pública, quando
Joaquim já estava quase a ser enforcado, chegou um cavaleiro a toda a brida,
gritando que suspendessem tudo. Dirigiu-se ao palácio do rei e disse-lhe:
— Venho para que atendas ao pedido que te
fizeram os irmãos daquele inocente, e isso quanto antes senão morrerás, e
Joaquim ficará com o teu reino.
O rei pasmado com tamanha audácia, e ao mesmo
tempo encolerizado, bradou:
— Quem és tu, homem atrevido, que vens ao meu
palácio me ordenar coisa que não quero fazer? Vai-te embora, senão mando-te
fazer companhia àquele pobre diabo que a esta hora já deve estar enforcado.
O cavaleiro, que era o diabo, soltou
estridente gargalhada. Em seguida encostou um dedo na fronte do rei, que tombou
fulminado, como se fosse um raio que lhe tivesse caído em casa.
Ficou o ex-preso, pois, com a coroa, e João e
José tornaram-se vassalos de seu irmão.
Essa notícia correu mundo, e chegou até aos
ouvidos do pai de Joaquim, que, quando soube que o seu filho era rei de um
grande e opulentíssimo país, se dirigiu ao palácio, pedindo-lhe perdão pelo que
tinha dito quando saíra de casa.
Joaquim respondeu:
— Fique sabendo meu pai, que passei por
grandes aflições, disse o rapaz. Estive preso por ladrão, e quase fui
enforcado; vi a morte de perto, e quem me salvou foi o diabo. Quem o há de
valer nos mesmos perigos será minha mãe. Por isso quero que a traga aqui, sob
pena de mandar enforcá-lo.
O velho humilhando-se, respondeu cheio de
medo:
— Ah! rei, senhor e caro filho. Tua mãe eu a
mandei matar por ter três crianças. Quem te amamentou foi uma vaca, que hoje
pertence ao Rei das Chamas e está no campo das Feras.
— Não quero saber disso. Quero já e já, sem
demora, minha mãe e mais a vaca que me amamentou.
O velho retirou-se do palácio, muito triste,
quando encontrou um cavaleiro que lhe perguntou por que motivo ia ele tão
aflito.
O pobre homem narrou o que acabava de lhe
suceder, chorando amargamente, porque sabia que ia ser condenado à morte.
— Pois eu vou te ensinar o remédio de
alcançares o que desejas. Quando tiveres percorrido os três rios deste país,
distantes um do outro mil léguas, encontrarás o que queres.
O pai de Joaquim ficou espantado, ouvindo o
que lhe dizia aquele desconhecido. Quis indagar de que maneira conseguiria
tamanho impossível, mas não teve tempo, porquanto o misterioso cavaleiro deu de
esporas ao cavalo; e partiu na disparada, rápido como um relâmpago.
O velho, pôs-se, então, a matutar.
Lembrando-se que tinha fatalmente de fugir,
para ver se conseguia escapar aos furores do novo rei, resolveu seguir o
conselho do cavaleiro, pois tanto lhe fazia ir para um como para outro lado, e
era bem possível que tivesse ligado com Satanás, e assim viesse a ser bem
sucedido.
***
Pôs-se, então, a caminho, no mesmo instante,
e tão depressa viajou, que, ao fim de três dias, chegou à margem do primeiro
rio.
Não podendo atravessá-lo, por já ser escuro,
e não ter canoa, ou qualquer outro meio de transporte, dispôs-se a passar aí a
noite. Entrou num buraco ou gruta, cavado na ribanceira, e deitou-se.
Ora, era nesse lugar que os diabinhos se reuniam,
à meia-noite, para se comunicarem as bruxarias que faziam pela Terra, antes de
se retirarem para o Inferno. Julgando-se a sós, puseram-se a conversar.
O diabo, que era o mais velho, perguntou a um
deles:
— Ó Capenga! que fizeste hoje?
— No reino das Chamas fiz uma mulher ter três
filhos gêmeos, porque sabia que o marido havia de matá-la.
Os outros diabinhos, cada um por sua vez,
contaram então as suas proezas.
Pela madrugada findou-se a sessão; e o velho,
que não tinha dormido, levantou-se do lugar onde estava e continuou a viagem.
Andou quinhentos dias e, no fim desse tempo
encontrou o segundo rio. Deitou-se à margem para dormir, por ser noite fechada,
e não poder atravessá-lo.
À meia-noite chegaram Fadas, em vez de
demônios que ali se reuniam em certos dias do ano, em numerosa assembleia.
Sentaram-se, e a mais velha propôs:
— Vamos contar os nossos feitos pela Terra.
Uma delas tomou a palavra:
— Eu fiz um rei deserdar a filha do trono.
— Eu encantei o reino das Maravilhas, disse
outra, e só o desencantará João, o Ferreiro, que é vassalo do irmão.
— Eu, retorquiu a terceira, encantei a cidade
do Amor, que só será desencantada pelo José Carpinteiro.
— Eu o reino das Chamas, que só desencantará Jorge,
pai dos três felizes que hão de ser reis, mas só depois de andar mil semanas.
Terá que passar três dias debaixo da água, e ser comido pela serpente. Depois
de tudo isso, será então, feliz – falou a última fada, dando-se assim por
terminada a sessão.
O velho estava mais morto do que vivo, por
ouvir que tinha de passar por tantas provações.
Estando muito fatigado, viu uma gruta e
deitou-se para adormecer.
Ia adormecendo, quando ouviu uma voz, que
lhe, disse:
— Levanta-te, depressa, segue tua viagem,
senão serás comido por uma serpente.
Acordou e começou a correr. Mas já era tarde;
foi engolido por uma enorme serpente, que o perseguia.
Aí, no ventre do bicho, viveu ele
quatrocentas e noventa e sete semanas, quando ela entrou num grande rio,
conservando-se três dias dentro da água.
No fim do terceiro dia morreu, e foi parar na
outra margem, à beira das matas encantadas no reino das Chamas.
O velho saiu de dentro da barriga da
serpente, muito magro e fraco. Adormeceu sobre a relva macia, e ouviu outra vez
a mesma voz, que lhe dizia:
— Levanta-te e acompanha-me. Pega nestas
chaves, abre aquela porta e todas as outras que encontrares em tua frente. No
último quarto verás uma caixa com uma bola de vidro, e dentro da bola um fio de
cabelo. Em uma gaveta da mesa que ali verás, está uma espada. Amola-a bem, até
ficar afiada como uma navalha. Em seguida quebra a bola e apanha o fio de
cabelo. Corta-o nos ares. Se o não cortares da primeira vez, todos os bichos
ferozes que existem nas matas encantadas irão sobre ti e te devorarão. Se ao
contrário, conseguires fazer o que te digo, serás feliz.
O velho seguiu, tremendo, o caminho que lhe
ensinavam.
Abriu todas as portas que encontrou, e, ao
chegar ao último quarto, viu os objetos que a voz lhe indicara.
Levou um dia inteiro a amolar a espada, que
ficou mais afiada que uma navalha. Depois, deu um golpe no fio de cabelo,
partindo-o em dois, enchendo-se, então, a casa de sangue. Tantos eram os
pingos, quantos soldados apareceram.
Apareceram-lhe, depois, sua mulher mais a
vaca que amamentara Joaquim. Levou-as ao rei.
Viveram todos muitos felizes, sendo o pai e
cada um dos irmãos, João e José, reis de três países riquíssimos.
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Ano de publicação: 1896.
Origem: Brasil (Reconto)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)
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