sábado, 4 de dezembro de 2021

Dá-me o meu meio tostão (Conto popular português), de Teófilo Braga

 

DÁ-ME O MEU MEIO TOSTÃO

Um compadre perseguia outro por uma dívida; todas as vezes que lhe passava pela porta dizia:

— Dá-me o meu meio tostão.

O devedor, vexado, disse para a mulher que se ia fingir morto, e que ela o carpisse muito, para ver se quando o compadre passasse lhe perdoava pela sua alma o meio tostão. Assim fez; a mulher pranteou e depenou-se, mas o compadre veio ao acompanhamento do enterro, e quando o corpo se depositou na igreja deixou-se ficar escondido debaixo da eça. De noite os ladrões entraram na igreja, e como viram a luz das tochas alumiando o morto, entenderam que ali era lugar seguro para repartirem o dinheiro e fazerem os quinhões do que tinham roubado. Quando estavam nisto, desavieram-se, porque todos queriam umas certas joias que o capitão dos ladrões reservava para si. Faziam muita bulha, mas o que se fingia morto na eça, e o compadre que estava escondido, passaram sustos medonhos e não se mexiam. Por fim disse o capitão dos ladrões:

— Eu cá não faço questão deste quinhão; mas quem o quiser há de ir espetar esta faca no morto que está ali naquela eça.

Dizia um: "Vou eu"! Outro também queria ir; mas o que se fingia defunto, sem saber como se havia de ver livre da situação desesperada, senta-se no caixão, e diz com terror:

Acudam-me aqui os defuntos
E venham já todos juntos.

Os ladrões fugiram todos espavoridos e deixaram o dinheiro ao pé da eça; o compadre que se fingia morto desceu para baixo, e começou a ajuntar o dinheiro espalhado pelo chão. Quando estava nisto sai-lhe debaixo da eça o credor, que nem à borda da cova o largava, e começa a repetir-lhe sem parar:

— Dá-me o meu meio tostão! Dá-me o meu meio tostão.

E não se tirava disto. Os ladrões por fim envergonharam-se da sua covardia, e mandaram um mais valente à igreja ver o que por lá havia, e se podiam ir buscar o seu dinheiro. O ladrão veio sorrateiro, escondeu-se detrás de uma porta a escutar, e ouvia só:

— Dá-me o meu meio tostão!

Desatou a fugir, e foi dizer aos companheiros:

— Está tudo perdido; andam lá tantos defuntos, que não cabe meio tostão a cada um. 

Os ladrões conformaram-se com esta desgraça, e o compadre assim é que pagou a sua dívida e ficou rico.

 

 

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Ano de publicação: 1883
Origem: Portugal (Porto)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)

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