CONTO DE SÃO JOÃO
Junho. Depois de chuvas constantes, trazidas pela
lua nova, surgiu, do meio do enfado das águas, a cenografia luminosa do bom sol
de São João, e a lua dos batuques, a pulquérrima lua que se cristaliza no céu
sob o sopro gelado do inverno. Na fazenda de Santa Lucinda os pretos sambaram a
valer nessa véspera de São João e reboaram pelas caiçaras das montanhas, e
decerto que desceram até as mais esconsas criptas, os sons roucos dos tambores.
Palpitavam no céu embrumado grupos perdidos de constelações.
— Pã, pã, pã, belos amorosos, dai-me licença...
— Oh! sede vós quem fordes, entrai, pobre alma que
andais ao frio de junho pelos morros. Entrai, que ainda resta um bocado do
magusto dos, pobres...
— Oh! obrigado, mil vezes obrigado, retruquei
entrando, todo esfarrapado como vinha, vestido das desusadas roupas da
Fantasia, tremendo de frio, e apoiado ao cajado brutal da Verdade.
Achei sentados, um ao lado do outro, o Raimundo e a
Teresa, que se beijavam em plena boca. O Raimundo, um belo caboclo crestado por
vinte dezembros, de peitos largos e mãos bem rijas; para guiar gados
através de ravinas; a Teresa, um pouco mais moça, bela morena de seios cheios e
de olhos formosos. Um sadio par de belezas caipiras, ele com os olhos
sombreados de um azul forte cravados nos dela, dois formosos olhos negros, dois
formosíssimos mundos onde se recortavam as formas imutáveis dos países do amor,
da ternura, da felicidade... Raimundo fitava-os mergulhado no oceano imenso do
êxtase e de quando em quando, os seus lábios bem vermelhos de caboclo, acendiam
nos lábios de Teresa uma porção de beijos.
Penetrando no casebre, sorri-me complacentemente.
Vinha ávido de sensações e, como as achava nos arroubos não comuns de tão
simples paixão rústica, fiquei silencioso, parado a um canto, fitando os dois
amorosos, que continuaram logo no idílio, sem darem pela minha entrada; no canto
onde parara não chegava a luz fraca do lar — um pavio embebido em querosene e
que já ia acabando de queimar. Raimundo falou:
— Ora vê, Teresa, bateram na porta e não é ninguém.
Entretanto pareceu-me ouvir pedir licença — pã, pã, pã, belos amorosos, permiti!
— Não ouviste, Teresa?
— Ouvi... Mas, talvez ilusão do vento...
— Talvez alguma leria do hálito enluarado do bom
São João...
— Que ele nos proteja, Raimundo.
E o festival dos beijos de novo começou a bailar na
concha nacarada dos lábios dos caboclos. A procissão do amor prosseguiu,
levando a custódia do ósculo sob o palio vermelho dos lábios. Os olhos de
Teresa desmaiavam de suavidade, rendiam, amortecendo-se, uma ação de graças,
espalhavam no casebre quase escuro a suprema eucaristia dos amores. A luz de
querosene tremia num estrebucho lúcido, que ora alourava o chão, ora o enchia
de sombras dançantes, que pareciam errar com medo do cajado da Verdade, em que,
fantasiosamente, eu me apoiava, olhando, e olhando satisfeito, porque sentia as
sensações que viera procurando pelos morros, perseguido polo rolar frenético
dos sons roucos do batuque, que os pretos de Santa Lucinda dançavam.
Lá, no meio da epilepsia coreográfica dos
ex-escravos, ficara aborrecido com o rumor enorme dos tambores, e dos pulos, e
não achara sensações nenhumas, pois os rapazes, completamente absorvidos pelo
furor das danças, nem se lembravam que a lua de junho é propicia para a calidez
dos abraços nos corpos perfeitos das raparigas, abraços que geram ciúmes,
ciúmes que geram tragédias, as quais arrebentam tormentosas junto à eclosão das
rubras azaleias do inverno... Lá, no samba, não achara sensações violentas nem
suaves, viera vagando pelos morros, e, afinal, encontrara, no casebre do
Raimundo, qualquer coisa que me tocara as fibras do coração no idílio
suavíssimo dos caboclos, que me exauria a mente de todos os dramas inúteis para
contos que agradem, enchendo-a de profunda paixão pela simplicidade primitiva
dos caipiras. Ali ficara, na figura estranha em que viera, vestido de antigas
roupagens e apoiado ao cajado da Verdade, vendo, pensativo, o Raimundo dar
beijos cálidos, beijos de dezembro, na boca sumarenta de Teresa, boca
primaveril, boca de agosto...
A luz bruxuleou, bruxuleou, morreu. Os caboclos já
deviam ter dormido; decerto que se deitaram, sorrindo, no catre esponsalício,
que se abraçaram e depois dormiram, sonhando, o Raimundo com a Teresa, a Teresa
com o Raimundo... Escuridão. Ao longe, quebrado nos recortes orográficos, ecoa
o batuque. Faz frio. De repente começa a entrar no casebre uma fraca claridade
projetada pela lua, através das fendas. Alguma nuvem que ocultava o astro,
descobriu-o agora, e, assim, a escuridão vai se desmanchando numa suave cor
pálida, que destaca todos os recantos do ninho dos caboclos e o catre onde
dormem, com as bocas unidas num beijo que adormeceu com eles... Eu, do meu
canto, faço uma sombra esguia que vergasta o chão, e minhas fantasiosas vestes
confundem-se em brancura com o luar que atravessa as lendas e chega nuns leves
toques encanecidos, que mostram a velhice dos astros... Uma lufada glacial
entreabre a porta e a luz cai dentro do casebre numa larga réstia. De longe vem
se aproximando a toada melancólica de um vilancico amoroso, que parece exprimir
a tristeza de um abandono, a angústia de amores perdidos... Quando ele para,
ouve-se o barulho afastado do batuque dos pretos de Santa Lucinda e, às vezes,
cruzam-se no ar os dois rumores — a dor ingênua do vilancico e o batido másculo
do samba.
Teresa acordou. Ferira-lhe o ouvido a cantiga e ela
bem conheceu, na voz que a dizia, a voz do Alípio, o que fora seu namorado,
antes de aparecer em Santa Lucinda a figura guapa do Raimundo... Estremeci,
antecipando cenas violentas, e, quando o vilancico estava bem perto do casebre,
pareceu-me que naquela elegia passional havia uma fibra de ódio, ódio ao
caboclo Raimundo, que roubara, surgindo naqueles sítios um belo dia, a linda
amada ao rude carreiro Alípio... Teresa soerguera-se, assustada, no leito dos
seus esponsais com o Raimundo. Entretanto, a voz que vinha cantando era doce e
romântica, e a cantiga bem tristonha... Feria a alma.
Quando o Alípio passou pelo casebre, sua sombra
desenhou-se grande dentro da réstia de luar. O vilancico parara. Eu, com o
cajado da Verdade pronto para traçar, no pó da estrada a história da tragédia
que se ia dar então, pois a Teresa tremia vendo a sombra do antigo amado
estampada ao luar, esperei... Mas, a sombra do Alípio desapareceu, e daí a
pouco ouviu-se a cantiga que se ia, afastando, cheia de uma dor imensa, que
parecia infiltrar-se na noite e dar melancolia a todas as coisas... Sempre, ao
longe, o samba soava estranhamente na rouquidão dos tambores, e o vento, quando
passava pelas árvores, dava-lhes convulsões de pranto, e parecia um grande
choro cortante que vagava pelo morro, doente de frio, atacado da peste de junho...
O vilancico, feito em rimas acaipiradas e ternas,
do carreiro Alípio foi-se afastando até que se perdeu ao longe... A cabocla
beijou Raimundo, que dormia tão sossegado, e começou a rezar à Senhora dos
Aflitos para que levasse a serenidade ao coração do carreiro, juntamente com o
amor de alguma serrana bela de matar, a fim de que a esquecesse, a ela Teresa,
que adorava o seu Raimundo...
Ouvi extasiado aquelas palavras deliciosas e
consoladoras, e vi cenas tão simples a que hão viera turvar, como talvez
quisesse para a confecção de contos, o drama atroz do facão do rude carreiro
Alípio, brilhando sob os fiapos do luar que atravessavam as fendas do casebre,
e entrando de rijo no peito largo do caboclo Raimundo, à procura do coração que
seduzia raparigas e que enleara Teresa — enquanto ao longe ecoasse o batuque,
imitando um coro de bruxos a praguejar... Nada disso houvera e eu, extasiado,
fazia tenção de narrar, o mais simplesmente que pudesse, as cenas ingênuas que
vira nessa noite do bom São João, desde o milhão de beijos dos caboclos, beijos
que diziam do púlpito vermelho dos lábios a prédica do amor, até a oração de
Teresa, pedindo ao céu que desse novos amores ao carreiro Alípio, uma serrana morena
ou uma caipira cheia de graça...
E a noite foi seguindo suavemente, num suave
batismo de luar. Ascendia, como uma prece bárbara, ao firmamento, a alegria
desordenada e rústica da coreia selvagem dos ex-escravos na fazenda de Santa
Lucinda, e, apesar daquele rumor brutalíssimo, parecia descer do céu, nas
diáfanas gazes cor de opala do plenilúnio, o olhar de Deus abençoando o mundo.
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Origem: Brasil
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)
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