quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Como a noite apareceu (Da versão de Couto de Magalhães)

 

COMO A NOITE APARECEU
(Lenda tupi, da versão do General Couto de Magalhães

No princípio não havia noite — dia somente havia em todo tempo. A noite estava adormecida no fundo das águas. Não havia animais; todas as coisas falavam.

A filha da Cobra Grande — contam — casara-se com um moço.

Esse moço tinha três fâmulos fiéis. Um dia, ele chamou os três fâmulos e disse-lhes:

— Ide passear, porque minha mulher não quer dormir comigo.

Os fâmulos foram-se, e então ele chamou sua mulher para dormir com ele. A filha da Cobra Grande respondeu-lhe — Ainda não é noite.

— Não há noite, somente há dia. A moça falou:

— Meu pai tem noite. Se queres dormir comigo, manda buscá-la lá, pelo grande rio.

O moço chamou os três fâmulos; a moça mandou-os à casa de seu pai, para trazerem um caroço de tucumã.

Os fâmulos foram, chegaram à casa da Cobra Grande, esta lhes entregou um caroço de tucumã muito bem fechado e disse-lhes:

— Aqui está; levai-o. Eia! Não o abrais, senão todas as coisas se perderão.

Os fâmulos foram-se, e estavam ouvindo barulho dentro do coco de tucumã, assim: tem, tem, tem... xi... Era o barulho dos grilos e dos sapinhos que cantam de noite.

Quando já estavam longe, um dos fâmulos disse a seus companheiros:

— Vamos ver que barulho será este?

— Não, do contrário nos perderemos. Vamos embora, eia, remai!

Eles foram e continuaram a ouvir aquele barulho dentro do coco de tucumã, e não sabiam que barulho era.

Quando já estavam muito longe, ajuntaram-se no meio da canoa, acenderam fogo, derreteram o breu que fechava o coco e abriram-no. De repente, tudo escureceu.

O piloto então disse:

— Nós estamos perdidos; e a moça, em sua casa, já sabe que abrimos o coco de tucumã!

Eles seguiram viagem.

A moça, em sua casa, disse então a seu marido:

— Eles soltaram a noite; vamos esperar a manhã. Então, todas as coisas que estavam espalhadas pelo bosque se transformaram em animais e pássaros.

As coisas que estavam espalhadas pelo rio se transformaram em patos e em peixes. Do paneiro gerou-se a onça; o pescador e sua canoa se transformaram em pato; de sua cabeça nasceram a cabeça e o bico do pato; da canoa, o corpo do pato; dos remos, as pernas do pato.

A filha da Cobra Grande, quando viu a estrela-d'alva, disse a seu marido:

— A madrugada vem rompendo. Vou dividir o dia da noite.

Então, ela enrolou um fio e disse-lhe:

— Tu serás cujubim.

Assim ela fez o cujubim; pintou a cabeça do cujubim de branco, com tabatinga; pintou-lhe as pernas de vermelho com urucum e, então disse-lhe:

— Cântaras para todo sempre, quando a manhã vier raiando.

Ela enrolou o fio, sacudiu cinza em riba dele, e disse:

— Tu serás inhambu, para cantar nos diversos tempos da noite e de madrugada.

De então pra cá todos os pássaros cantaram em seus tempos, e de madrugada para alegrar o princípio do dia.

Quando os três fâmulos chegaram, o moço disse-lhes:

— Não fostes fiéis — abristes o caroço de tucumã, soltastes a noite e todas as coisas se perderam, e vós também, que vos metamorfoseastes em macacos, andareis para todo sempre pelos galhos dos pau.

(A boca preta e a risca amarela que eles têm no braço, dizem que são ainda o sinal do breu que fechava o caroço de tucumã e que escorreu sobre eles quando o derreteram.)


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Fonte:
"Contos tradicionais, fábulas, lendas e mitos": Ministério da Educação -  Fundescola - Projeto Nordeste -  Secretaria de Ensino Fundamental. Brasília, 2000 - Volume 2. (A imagem que acompanha o texto, não se inclui na referida obra).

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