Havia numa terra uma rainha, com uma filha
muito linda chamada Clarinha, a qual estava tratada para casar com um príncipe
logo que chegasse à idade em que havia de receber o reino de sua mãe, que o
estava governando. Clarinha costumava ir todos os dias ao jardim; um dia passou
uma águia, e todas as vezes que passava lhe dizia:
— Clarinha, Clarinha! qual queres, passar
trabalhos na mocidade ou na velhice?
A princesa foi dizê-lo à rainha, e ela lhe
respondeu:
— Diga a menina: Antes na mocidade, que se
pode com tudo, e na velhice não se pode com nada.
Clarinha foi para o jardim como o seu
costume, e a águia tornou a dizer o mesmo. No ponto que a princesa disse:
“Antes na mocidade”, a águia levou-a pelo ar fora e foi deitá-la na terra onde
vivia o príncipe com quem tinha tratado o casamento. Clarinha não conhecia ali ninguém
a não ser a rainha e o príncipe, mas não se podia falar com eles sem
requerimento, e ela não o tinha. Foi ter a uma padaria, e pediu para ser
criada. A padeira tomou-a; indo um dia para fora, deixou para Clarinha cozer
uma fornada de pão já amassado. A menina com medo fechou todas as portas e
janelas para a águia não entrar, mas ela sempre entrou pela chaminé e
esborralhou-lhe o forno sobre o pão, quebrou-lhe os alguidares e muita louça, e
fugiu. Chegando a padeira, deu muitas pancadas em Clarinha e pô-la no andar da
rua. Por mais que pedisse e chorasse, a padeira não a acreditava. Foi a menina
ter com um vendeiro, para o servir; saindo um dia, ele deixou-a na venda. Com
medo ela fechou-se por dentro, mas a águia sempre entrou e quebrou copos, medidas
e garrafas, e destapou as pipas. Quando o vendeiro chegou achou tão grande
destroço, e sem se importar com o que dizia Clarinha, deu-lhe muitas bofetadas
e pô-la logo na rua. Clarinha foi ter dali ao palácio, não se dando por
conhecida, e ofereceu-se para criada do príncipe. A rainha disse que não
precisava de mais criadas. O príncipe tornou:
— Tome-a, minha mãe, ainda que seja para
vigiar as patas.
— Pois sim; que ela entre.
Todos os dias morriam as patas que ela
vigiava, e o príncipe vendo que ela chorava tanto, pediu à rainha que a tomasse
para costureira. Passados tempos, o príncipe aprontou-se para ir ver a sua
noiva, e chegando ao pé das aias disse:
— Que querem que eu lhes traga da terra aonde
vou?
Todas elas lhe pediram alguma coisa, menos a
Clarinha. O príncipe insistiu com ela para que dissesse o que queria de lá.
— Traga-me vossa alteza uma pedra do palácio.
O príncipe partiu, e ao chegar ao palácio da
sua noiva ouviu que tudo estava de luto pela falta da princesa. Muito triste
ficou, e no mesmo instante comprou tudo que as criadas lhe tinham pedido, e a
pedra para Clarinha, e partiu. Chegou cá muito triste e alguma coisa
desconfiado de quem seria Clarinha. Entregou-lhe a pedra, e para saber o que
ela quereria fazer disso, meteu-se debaixo da cama, quando a criada deu volta.
Quando ela veio para o seu quarto, fechou-se por dentro e cuidando que não
estava ninguém, começou a dizer à pedra isto:
— Pedra do palácio de meu pai, vou contar-te
a minha vida.
E contou desde os passeios do jardim e da
águia, até ali. E no fim de tudo a pedra deu um estouro, e Clarinha disse:
— Abre-te, pedra, numa roda de navalhas, que
me quero deitar nelas.
O príncipe então saiu debaixo da cama, e
abraçou-a dizendo:
— Por que me não contaste teus males, querida
Clarinha?
— Porque logo que a águia queria que eu
passasse trabalhos, quis passá-los enquanto era nova, porque sempre tinha
alguma esperança.
Dali a um momento os dois príncipes casaram-se, e foram ter com a rainha mãe da princesa, que ficou muito satisfeita e veio viver com eles.
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Ano de publicação: 1883
Origem: Portugal (Ilha de São
Miguel—Açores)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2021)
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