AVENTURAS DO PAJEM
FORMOSO NO REINO DE GABOR
Formoso tinha pressa de chegar ao reino da
princesa dos Cabelos de Ouro para dar conta de sua embaixada.
Dois dias depois de sua última aventura,
aportava à capital. Pediu que lhe ensinassem onde ficava o palácio, e
disseram-lhe:
— Siga por esta rua, em frente, quando chegar
ao fim, encontrará uma praça muito grande que tem um chafariz de mármore, o qual
em vez de jorrar água, jorra leite para os pobres que a princesa manda dar. Em
frente a este chafariz fica um palácio muito bonito; é aí que mora a princesa
Mirtes.
O pajem seguiu pela rua que lhe haviam
ensinado, ficando maravilhado ao chegar em frente ao edifício.
Nunca vira nem mesmo imaginara em sonho um
palácio tão rico. Era um grande castelo todo de mármore cor-de-rosa, com portas
e portais de ouro maciço. Ao redor via-se um gradil de prata lavrada de uma
riqueza maravilhosa.
Vestiu-se com a roupa mais rica que tinha e
dirigiu-se para o palácio levando consigo um cachorrinho que comprara à
entrada de um bosque a alguns meninos que queriam atirar o animalzinho no rio.
Como dissemos, Formoso era um lindo rapaz.
Apresentou-se aos guardas do palácio da princesa, dizendo-lhe o que queria, é
os soldados acharam-no tão bonito, simpatizaram tanto com ele que o deixaram
passar.
Lacaios foram avisar a princesa que o
Formoso, o pajem de um rei vizinho, desejava uma audiência.
Mirtes ao ouvir o nome do pajem disse:
— Formoso é um nome que significa alguma
coisa; não foi à toa que lhe deram esse nome. Aposto que é um pajem bonito e
que me vai agradar.
— É verdade, princesa, disseram as damas de
honra; é um rapaz de uma beleza extraordinária. Nós o vimos através das
persianas e ficamos tão admiradas de sua beleza, que não saímos da janela
enquanto ele falava com os guardas do palácio.
Mirtes mandou então buscar o seu vestido mais
rico e depois de desatar os seus cabelos louros da cor do sol, foi sentar-se no
trono, dizendo:
— Quero que esse pajem tão bonito diga que
sou verdadeiramente a princesa dos Cabelos de Ouro.
As damas estavam com tanta curiosidade de ver
Formoso, que não sabiam mais o que faziam.
A princesa, depois de pronta, sentou-se no
trono e mandou que começassem a tocar vários instrumentos e cantassem baixinho,
de modo que não interrompessem a conversa.
Conduziram Formoso à sala das audiências e,
ele, ao entrar, ficou admirado, tão admirado de ver uma moça tão linda, a ponto
de perder a voz. Encorajando-se adiantou-se um pouco, e comunicou à princesa o
fim de sua embaixada.
— Formoso, respondeu ela, todas as razões que
me dás para me casar com teu rei são muito aceitáveis, e eu as aceitaria de bom
grado se não fosse o seguinte. Há um mês, indo eu tomar banho no rio, sem saber
como, por descuido mesmo, caiu dentro d’água o anel que trazia ao dedo, com um
enorme brilhante. A perda desse anel foi para mim maior que a do meu trono. Fiz
um juramento de não aceitar proposta alguma de casamento, se o embaixador que
para isso viesse ter comigo, não trouxesse o meu anel. Vê, portanto, o que te
compete fazer. E não há nada neste mundo que me faça mudar de resolução.
Formoso ficou admirado de ouvir tal juramento
e retirou-se para casa muito triste, sem saber que fazer.
Dizia o pobre rapaz.
— Onde irei achar o tal anel, e como posso
encontrá-lo no fundo do rio? A princesa inventou esse juramento para me colocar
na impossibilidade de reiterar o pedido de sua mão para o rei Frederico. É até
uma loucura empreender encontrar uma joia que caiu no rio.
O cachorrinho, que se chamava Peri, lhe
disse:
— Meu senhor, não desespereis assim de vossa
fortuna; tendes sido muito bom, para não serdes feliz. Vamos amanhã cedinho à
beira rio.
Formoso afagou o animalzinho e nada respondeu.
Sultão, assim que rompeu o dia, tanto gritou,
tanto latiu, que acordou o amo e lhe disse:
— Meu amo, vesti-vos e vamos até ao rio.
O rapaz vestiu-se e caminhou insensivelmente
para a margem do rio. Passeava muito triste, pensando como fazer a vontade da
princesa, e já planejando o dia de sua partida, quando ouviu uma voz que dizia:
— Formoso, Formoso!
Olhou para todos os lados e não viu pessoa
alguma.
Pensou que fora uma ilusão e começou a
passear quando ouviu de novo:
— Formoso, Formoso!
— Quem me chama? disse ele.
Imediatamente apareceu a piaba, que lhe
disse:
— Salvaste-me a vida, Formoso, um dia à beira
de um rio, muito longe daqui. Prometi pagar essa dívida. Aqui tens o anel da
princesa dos Cabelos de Ouro.
O pajem abaixou-se, apanhou da boca do peixe
o anel, agradecendo muito.
Em vez de voltar para casa, dirigiu-se
imediatamente ao palácio da princesa, com Sultão, que estava muito satisfeito
de ter conseguido seu senhor ir até à beira do rio.
Disseram à princesa que o jovem pajem pedia
para lhe falar.
— Coitado! O pobre rapaz, disse ela, veio se
despedir de mim, pois viu que o que eu quero é impossível, e vai dizer isso ao
seu rei.
Fizeram entrar o pajem que disse:
— Princesa aqui está o seu anel e, portanto
cumprida a sua ordem. Quer agora receber meu rei por esposo?
Quando Mirtes viu o anel ficou tão
admirada que pensava sonhar.
— De fato, é preciso que sejas protegido por
alguma fada, porque, sozinho, não acharias esta joia.
— Princesa, não conheço nenhuma fada, porém,
o desejo que tenho de obedecer é grande.
— Já que tens tanta vontade de me servir,
faze-me outro serviço, sem o que não me casarei. Há um príncipe vizinho do meu
reino que tem vontade de se casar comigo. Fez-me sabedora disso por meio de
ameaças temíveis que se eu não me casar com ele desgraçará meu reino. Assim,
qualquer dos meus vassalos que entra no seu país é logo morto e comido por ele.
Esse príncipe é o gigante Baltasar, tão alto como a mais alta torre. Quando vai
à caça, serve-se de canhões como se fossem pistolas. É o meu maior inimigo, por
isso se queres que me case com o teu rei, vai matá-lo e traze-me a sua cabeça.
Formoso amedrontou-se ouvindo tanta coisa de
um gigante e mais ainda quando a princesa comunicou querer que ele trouxesse a
cabeça do seu inimigo.
Ficou muito tempo pensativo e depois disse:
— Pois bem, princesa, eu vou combater com
Baltasar. Com certeza morrerei, porém, serei um herói.
Arranjou armas e partiu em direção ao palácio
do gigante.
No caminho, todos que encontrava diziam-lhe
que desistisse da empresa.
Tanto falaram do gigante, contaram tantos
horrores que Formoso já estava desanimado.
Nisto disse o cachorrinho:
— Meu amo, vá sem susto. Eu mordo-lhe os
calcanhares, e quando o gigante se abaixar para ver o que é, meta-lhe a espada.
Enfim, chegou perto do palácio de Baltasar,
onde encontrou ossos, caveiras de corpos humanos que tinha sido comidos pelo
gigante.
Começou a ouvir um estrondo que mais parecia
trovoada.
— Onde estão os pequenos homens para eu
trincar nos dentes?
Era o gigante que aparecia mais alto do que
as árvores.
Formoso respondeu: – Aqui estou para com
minha espada quebrar teus dentes.
Quando Baltasar ouviu aquilo, olhou para
todos os lados e viu o pajem mais baixo que os seus joelhos. Arremessou com
fúria uma bengala de ferro muito grossa, que trazia consigo, como se fosse uma
varinha, e teria esmagado Formoso, se nessa ocasião não aparecesse um corvo,
que, com o bico, lhe furou os dois olhos. Este, ao sentir a dor, e vendo-se
cego, começou a bater a torto e a direito sem nada conseguir.
Formoso, começou a ferir as pernas do
gigante, que cada vez mais se enfurecia.
Tanto sangue perdeu o gigante que afinal caiu
por terra; e Formoso, aproveitando, cortou-lhe a cabeça para levá-la à
princesa.
O corvo que fora se empoleirar numa árvore
assim que viu o gigante sem cabeça, dirigiu-se ao pajem desta maneira:
— Não me esqueci do serviço que me fizeste há
tempos, salvando-me das garras de uma águia. Não te lembras, Formoso? Agora
estamos pagos.
— Eu é que te devo ainda, corvo, disse o
pajem. Se não fosses tu, estaria agora reduzido a migalhas.
Montou o cavalo levando na garupa a cabeça do
gigante.
Assim que o pajem entrou na cidade, o povo
começou a gritar:
— Venham ver o bravo Formoso que matou o
gigante Baltasar.
A princesa, ouvindo aquela enorme gritaria
pensou que vinham lhe comunicar a morte do pajem.
Ficou admiradíssima ao saber que trazia a
cabeça do gigante.
Formoso lhe disse:
— Agora princesa, nada lhe resta senão
consentir em desposar o meu amo, o poderoso rei Frederico, já que o nosso
inimigo está morto.
— Consentirei em ser a esposa do teu rei,
intrépido e corajoso pajem. Para isso é preciso no entanto que me prestes um
último serviço. Desde já previno-te que é o mais arriscado de todos. Queres
assim ou preferes dizer ao teu rei que nada conseguistes?”
— Princesa, já que comecei irei até ao fim,
disse Formoso, falai que estou ao vosso serviço.
— Consentirei em me casar com o príncipe Frederico, se me trouxeres um pouco da água da gruta Tenebrosa. É uma gruta que existe perto daqui, com dez léguas de circunferência; sua entrada é guardada por dois dragões que impedem a aproximação de qualquer mortal, deitando fogo pela boca e pelos olhos, de sorte que não pode escapar da morte quem se aventura a ali penetrar. Quando se desce à gruta vê-se a duzentos passos um único buraco, que é ao mesmo tempo entrada e saída. Esse buraco está cheio de serpentes, cobras, lacraias, em suma, toda a espécie de bichos venenosos. No fundo dele é que está a fonte da Beleza e da Saúde. É essa água que eu quero. Quem se lavar com ela se é velho, fica moço; se é doente, são; se é feio, torna-se bonito; e se é bonito torna-se lindo como os amores. Compreendes, Formoso, que não posso deixar meu reino sem ter essa água. Vai e traze-me um frasco cheio dela.
— Princesa, disse o pajem, sois tão bela que
esta água vos é inútil. No entretanto, seja feita a vossa vontade: irei buscar
o que deseja embora na certeza de não voltar.
A princesa dos Cabelos de Ouro, não mudou de
resolução e o pajem partiu no dia seguinte em direção à gruta.
Sabendo do destino que levava, dizia toda a
gente:
— É pena que um moço tão bonito, tão amável,
vá à fonte dos Dragões. Nem que fossem mil soldados cada qual mais valente, lá
ficariam, quanto mais ele, que vai só. Para que anda a princesa a pedir
impossíveis?
O pajem, entretanto, caminhava sempre.
Chegando ao alto de uma montanha, sentou-se para descansar. Deixou o cavalo
pastando e Peri começou a seguir alguns pássaros. Formoso sabia que a gruta era
por ali perto, e olhava para ver se distinguia alguma coisa.
Descobriu afinal um rochedo, negro como tinta
de onde saía fumaça. Após dois minutos, viu um dragão que deitava fogo pelas
goelas, com o corpo malhado de preto e amarelo, e uma grande cauda que se enroscava
numa infinidade de voltas.
O cachorrinho latiu, assim que avistou tão
medonho bicho, e não sabia onde se esconder, tanto era o medo que tinha.
O pajem, estando resolvido a morrer, apanhou
a garrafa que a princesa lhe dera para encher. Com a outra mão segurou na
espada, dirigiu-se para a entrada da gruta, e disse ao cãozinho:
— Tudo está acabado para mim. Nunca poderei
apanhar esta água, guardada por dois dragões. Quando eu morrer, meu leal Peri,
enche a garrafa com o meu sangue, e leva-o à princesa, para que ela veja quanto
custou o seu capricho. Volta em seguida para o reino do nosso senhor e
conta-lhe a minha desgraça.
Havia apenas acabado de proferir tais
palavras, quando ouviu:
— Formoso, Formoso!
— Quem me chama? indagou. Olhando em torno
viu por acaso no buraco de uma velha árvore, uma coruja, que lhe disse:
— Há tempos livraste-me de um laço que
caçadores me tinham armado. Salvaste-me a vida. Quero te pagar essa dívida.
Dá-me a garrafa que irei buscar a água da fonte da Beleza e da Saúde.
Formoso deu-lha, e, em menos de um quarto de
hora, viu a coruja de volta com o vaso cheio.
Montou a cavalo, e apressadamente cavalgou
para o palácio da princesa, depois de agradecer muitíssimo ao pássaro aquele
favor que lhe fizera, livrando-o da morte.
Apresentou à moça a garrafa; e ela
agradecendo, deu ordem para que se preparasse tudo para a sua viagem.
***
No entanto a princesa achava Formoso cada vez
mais amável, e dizia:
— Se quisesses eu te teria feito rei, e não
teríamos partido do nosso reino.
Ele, porém, respondia:
— Nem por todos os reinos da terra, eu seria
capaz de trair meu amo, conquanto vos considere mais linda que o sol.
Passados alguns dias, a comitiva chegou,
enfim à grande cidade do rei Frederico, que sabendo da vinda da princesa dos
Cabelos de Ouro, foi ao encontro, levando os mais belos e ricos presentes do
mundo.
Semanas após, casou-se o rei com a princesa.
A moça, entretanto, que amava Formoso do fundo de seu coração, só estava
satisfeita quando o via, e vivia sempre a louvá-lo.
— Eu não seria tua esposa, Frederico, se não
fosse Formoso, que fez coisas impossíveis. Por minha causa, deves ser-lhe
grato. Se não fosse a sua intrepidez, eu não possuiria a Água da Beleza por
meio da qual nunca envelhecerei, e serei eternamente bela.
Os intrigantes, que ouviram a rainha,
disseram um dia ao rei:
— Vossa real majestade não é ciumento, e tem
contudo bastante motivos para o ser: a rainha gosta tanto de Formoso, que não
come no dia que não o vê. Elogia-o a todo o momento; diz que lhe deve muitas
obrigações; que ele é um herói como se outro qualquer que fosse designado a
embaixada não fizesse tanto como ele.
— Na verdade, previno-me a tempo. Prendam-no
na torre com ferros nos pés e nas mãos, ordenou ele.
Os intrigantes e invejosos, que não viam com
bons olhos as atenções e honras que os soberanos prestavam a Formoso,
apressaram-se em cumprir a ordem real.
Encarcerado nos lôbregos e úmidos
subterrâneos da torre, Formoso vivia isolado e esquecido, exceto pelo
carcereiro que, assim mesmo, lhe atirava por um buraco um pão duro e lhe dava
água numa caneca de ferro.
Todavia, Peri, o seu fiel cão, não o
abandonou. Todos os dias vinha visitá-lo, e contava-lhe as novidades ocorridas
no palácio.
Quando a princesa soube da desgraça que
acontecera ao pajem, lançou-se aos pés do rei, pedindo o perdão do corajoso
mancebo. Frederico, porém, enfurecido pela proteção de sua mulher ao pajem,
maltratava cada vez mais o pobre moço.
Torturado de ciúmes, julgando que não era
bonito, a ponto de não saber fazer-se amar pela esposa, o rei resolveu lavar o
rosto com a preciosa água da Fonte da Beleza, que se achava numa garrafa sobre
a toilette da rainha, onde ela própria a guardava, para melhor a vigiar.
Aconteceu, porém, que uma das criadas, indo
uma vez espanar o lavatório, desastradamente atirou a garrafa ao chão,
quebrando-a, e perdendo assim todo o precioso líquido.
Amedrontada, foi aos aposentos do rei
Frederico, e apanhou uma garrafa, em tudo semelhante à que quebrara e
substituiu-a.
A água que essa outra encerrava tinha a particularidade
de matar a pessoa que lavasse o rosto com ela.
Frederico, que não sabia da troca feita pela
criada, lavou-se na água e morreu pouco depois.
O cãozinho, assim que soube da morte do rei,
chegou perto da rainha e disse-lhe:
— Linda rainha, não vos esqueçais do pobre
Formoso.
A rainha, lembrando-se das penas e maldades
que por sua causa o pajem sofrera, correu à torre, e com as suas próprias mãos
tirou os ferros que torturavam o pajem. Depois, colocando-lhe uma coroa de ouro
sobre a cabeça e o manto real sobre os ombros, exclamou:
— Vem, amável Formoso, faço-te rei e tomo-te
para meu esposo.
Os invejosos e perversos cortesãos que tanto
haviam intrigado o ex-pajem, foram condenados à pena última, e subiram à forca.
Um ano depois, findo o luto, a princesa dos
Cabelos de Ouro celebrava o seu casamento com o valente Formoso, realizando-se
imponentes festejos que duraram sete dias e sete noites, toda uma semana de
folguedos, luminárias, bailes públicos, espetáculos gratuitos, e mil festejos
diversos.
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Ano de publicação: 1896.
Origem: Brasil (Reconto)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)
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