No tempo em que Deus andava pelo mundo,
estava um pobre lavrador aquecendo-se à lareira enquanto se lastimava à mulher,
que perto dele fiava, desgostoso por não ser contemplado com filhos.
— Que sossego — acrescentou — vai nesta casa
enquanto que em outras então tanto barulho há causado pela alegria e pelos
risos da pequenada!
— Tens razão — apoiou a mulher, suspirando. —
Oxalá tivéssemos um só, embora tão pequenino que quase se não visse. Isso me
bastaria para nos alegrar e querer-lhe-íamos de todo o coração.
A boa mulher, alguns dias passados,
principiou a andar doente, e ao cabo de sete meses foi mãe de um menino tão bem
formado que se dissera de todo o tempo, mas muito pequenino. Ao vê-lo, a mãe
não se conteve que não dissesse:
— É exatamente como nós o havíamos desejado;
não deixa, apesar de mais pequeno do que um dedal, de ser o nosso filhinho.
Por via disso toda a parentela lhe ficou
chamando João Pequenino. Criaram-no tão bem quanto puderam; não cresceu mais,
ficando sempre do mesmo tamanho em que nascera. Era muito vivo, muito esperto;
e tinha uns olhitos muito brilhantes; e bem cedo mostrou o tino e atividade
suficientes para levar a bom-efeito qualquer empresa a que se abalançasse.
O camponês, certo dia, aprontava-se para ir
cortar madeira à mata vizinha e disse para consigo:
— Bem precisava eu de quem me conduzisse a
carroça.
— Pai— gritou João Pequenino — eu guio a
carroça, se quer; não se assuste que chegará a tempo.
O homem desatou a rir:
— Isso é impossível! Se és tão pequenino,
como hás de segurar a rédea ao cavalo?
— Isso não faz ao caso, pai! Se a mãe vai
atrelar o cavalo, eu meto-me na orelha do cavalo e ensino-lhe o caminho a
seguir.
— Pois então, experimentemos.
A boa da mãe meteu o cavalo à carroça, e introduziu João Pequenino na orelha do animal; e o João Pequenino gritava todo o caminho: Vá, cavalo! mas tão distintamente que o animal andava como se na realidade o guiasse algum carroceiro; desta maneira chegou a carroça à mata, indo pelos melhores caminhos.
No momento em que a carroça torneava uma
sebe, e se ouvia a voz do rapazinho: vá, cavalo! passaram dois indivíduos
desconhecidos que exclamaram estupefatos:
— É célebre! Uma carroça que anda à voz de um
carroceiro que não se vê!
— Alguma coisa há de extraordinário; sigamos
o veículo para ver onde para!
Continuou a carroça no caminho que levava até
parar no sítio onde havia árvores caídas. Assim que João Pequenino avistou o
pai, gritou:
— Então, pai, guiei ou não guiei a carroça?
Agora põe-me no chão.
O lenhador, segurando com uma das mãos a
rédea, serviu-se da outra para tirar de dentro da orelha do cavalo o rapazito a
quem pôs no chão; o rapazinho sentou-se num broto de planta.
Os dois desconhecidos, ao verem João
Pequenino, não sabiam que imaginar, de tal maneira ficaram estáticos com o
raríssimo fenômeno. Falaram em segredo e resolveram:
— Este exemplar pode trazer-nos uma fortuna,
se quisermos expô-lo a troco de alguns cobres em qualquer povoação; não será
mau comprá-lo.
Em seguida encaminharam-se para o camponês, e
propuseram-lhe:
— Quer vender-nos esse anãozinho sob a
condição que cuidaremos muito dele?
— Não,— respondeu o interrogado — é meu filho
e por dinheiro algum eu me desfaria dele.
João Pequenino, porém, que percebera e ouvira
bem toda a conversa, trepou pelas pernas do pai à altura do ombro e
segredou-lhe:
— Pai, aceite a proposta, que eu em breve
estarei de volta.
Ante esse conselho de João Pequenino, o pai
cedeu-o aos homens por uma valiosa moeda de ouro.
— Onde queres tu colocá-lo? — perguntaram
entre si.
— Ora, ponham-me na aba do chapéu; assim
posso ver tudo quanto se passa em volta de mim e não há meio de me perderem —
alvitrou João Pequenino, acrescentando: — Mas, cuidado, não me deixem cair.
Os homens assim fizeram; João Pequenino
despediu-se do pai, e foram-se embora com o rapazinho. Fartaram-se de caminhar
até ao cair da tarde; nessa ocasião o bocadinho de gente gritou-lhes:
— Parem, que preciso de descer!
— Deixa-te estar no meu chapéu; não estejas com
cerimônias, porque os passarinhos também me fazem isso muita vez!
— Não, não quero! — insistiu João Pequenino —
ponham-me depressa no chão.
O homem pegou no João Pequenino e pô-lo no chão num relvado à beira-estrada; João Pequenino depressa alcançou umas moitas e de repente encafuou-se numa toca de rato que buscara de propósito.
— Boa viagem, meus senhores, continuem o
caminho sem a minha companhia — lhes gritou, rindo. Quiseram agarrá-lo, fazendo
cócegas na toca de rato com palhinhas — como é de uso fazer-se aos grilos, mas
perderam o tempo e o feitio, pois que João Pequenino cada vez se metia mais
para dentro da toca, e a noite vizinhava-se, de modo que foram obrigados a ir
para casa, fulos e com as mãos a abanar.
Quando já iam longe, João Pequenino saiu do
improvisado esconderijo. Arreceou-se de seguir viagem à noite, por meio de
campos, porque quebrar uma perna não é difícil. Felizmente avistou uma cavidade
no topo de uma árvore, exclamando:
— Louvado Deus, já tenho casa para dormir.
Quando ia a pegar no sono, ouviu a voz de
três homens que abancaram por baixo da árvore, ceando e conversando:
— Como havemos de proceder para roubar a esse
rico pároco toda a sua fortuna?
— Eu lhes digo! — dirigiu-se-lhes a voz
invisível.
— Quem está aí?! — gritou um dos ladrões
verdadeiramente aterrorizado — Ouvi uma voz!
Calaram-se para escutar, quando João
Pequenino se tornou a ouvir:
— Tomem-me à sua conta, que eu os ajudarei
nessa piedosa tarefa.
— Onde é que estás?
— Procurem na árvore, no sítio de onde parte
a voz.
Os ladrões encontraram-no por fim e
exclamaram:
— Pedaço de gente, como é que tu nos podes
ser útil!
— Ora, de um modo bem fácil: meto-me pelas
grades da janela que há no quarto do pároco e vou-lhes passando tudo o que
quiserem.
— Pois bem, seja! — acederam os ladrões —
Vamos à experiência!
Assim que chegaram ao presbitério, João
Pequenino introduziu-se no quarto, e em seguida começou a gritar com toda a
força dos pulmões:
— Querem tudo o que está aqui?
Os ladrões amedrontados disseram-lhe:
— Fala mais baixo que acordas toda a gente!
João Pequenino fazendo ouvidos de mercador,
cada vez gritava mais:
— O que é que vocês querem? É tudo isto?
A criada, que dormia no quarto pegado àquele
em que o herói da historieta se encontrava, ouviu este ruído, levantou-se da
cama e pôs-se de ouvido à escuta; os malfeitores haviam desaparecido, mas
cobrando ânimo e, supondo que o rapazito só os queria amedrontar por mera
brincadeira, voltaram à carga, e disseram-lhe devagarinho:
— Tem mais tento: passa-nos alguma coisa,
anda! João Pequenino, se gritava até então, agora quase que berrava:
— Vou dar-lhes já tudo; aparem as mãos!
Desta feita, a criada ouviu tudo
perfeitamente; saltou da cama e correu para a porta. Os gatunos ao pressentirem
gente deram às de vila Diogo, como se o Diabo lhes tivesse dado asas; a criada,
não ouvindo mais coisa alguma, foi acender uma candeia. Quando apareceu, João
Pequenino, sem que ela o tivesse enxergado, foi esconder-se no palheiro. A
criada, depois de ter pesquisado todos os cantos à casa sem que nada visse,
tornou a deitar-se, supondo que tudo o que ouvira fora sonho.
João Pequenino tinha-se aninhado no feno,
onde arranjara uma boa caminha em que contava dormir até manhã, indo em seguida
para casa dos pais que a essa hora deviam estar em sobressaltos. Não pararam
porém, aqui as aventuras deste ratão; havia de passar ainda por bem maus
bocados. A criada ergueu-se ao luzir do buraco para dar ração ao gado. A
primeira coisa que fez foi ir ao palheiro buscar forragem, de onde tomou uma
braçada de feno com o infeliz João Pequenino lá metido muito ferrado no sono. E
tão bem dormia que não deu por coisa alguma e quando despertou viu-se na boca
de uma vaca, que o engoliu com um bocado de feno. A primeira impressão que
sentiu foi a de se julgar caído num moinho de pisoeiro; mas depressa
compreendeu onde é que realmente estava. Evitando o meter-se por entre os
dentes, deixou-se escorregar pela garganta até ao estômago. O compartimento em
que se encontrou parecia-lhe estreito, sem janela, e onde não havia sol, nem
luz, nem sequer candeia! A casa em que morava desagradava-lhe bastante, e o que
mais complicava a sua crítica situação, era a quantidade de feno que lá se
armazenava, estreitando mais ainda o pouco espaço em que se continha. Por fim,
não podendo mais suster-se do terror que dele se apossara, João Pequenino
gritou o mais que pôde:
— Basta de feno, basta de feno que eu não
posso mais... abafo!
A moça do pároco, que nesse momento estava
precisamente ouvindo mungir a vaca, ao ouvir a voz sem que visse quem falava, mas que
reconhecia pela que a tinha acordado durante a noite, assustou-se tanto que
saltou do banco em que estava sentada, entornando o leite. Foi de caminho, a
toda a pressa chamar o pároco para lhe dizer:
— Senhor cura, a vaca fala!
— Tu ensandeceste, rapariga? — tornou o
padre, enquanto que despreocupadamente se dirigia para o estábulo, para se
certificar do que ouvira.
Não tinha ainda o pároco franqueado o portal
quando João Pequenino gritou de novo:
— Basta de feno... que eu atabafo!
O terror apoderou-se então do padre, que
supondo a vaca enfeitiçada, ou que tinha o diabo metido no corpo, disse que era
preciso dar cabo dela. Abateram-na, e o estômago, onde o pobre João Pequenino
se via prisioneiro, foi lançado para o estrume.
O rapazito viu-se em pancas para se
desenvencilhar do malcheiroso sítio em que se conservava, e apenas conseguiu
ter a cabeça desembaraçada, uma nova desgraça o veio ferir, uma aventura
inesperada. Um lobo esfaimado atirou-se ao estômago da vaca, e, chamando-lhe um
figo, engoliu-o de uma assentada. João Pequenino não descoroçoou.
— Talvez — pensou com os seus botões — este
lobo seja sociável.
E de dentro da barriga, em que estava
novamente preso, gritou-lhe:
— Bom lobo, vou ensinar-te o sítio onde há
uma excelente presa.
— E onde fica isso? — perguntou o lobo.
— Nesta e naquela casa; pouco trabalho tens:
basta-te deslizar pelo esgoto da cozinha; aí encontrarás bons bocados, como
toucinho, chouriço à discrição; que mais queres? E olha que te não levo nada
pelo conselho!
E assim o experto João Pequenino lhe deu os
sinais certos da casa do pai.
O lobo não quis ouvir mais, nem se fez
rogado, nem se quer foi preciso dar-lhe o recado mais de uma vez; meteu-se pela
cozinha e comeu à tripa-forra. Quando, porém, quis sair, foi-lhe impossível.
Tirou o ventre de misérias, de tal maneira que não houve meio de passar pelo
cano. João Pequenino — que tudo previra começou a fazer um grande barulho no
corpo do lobo, aos pulos e em altos gritos; o lobo pedia-lhe:
— Vê lá se estás quieto! Tu assim acordas
meio mundo!
— Deixa-me cá... Tu comeste até que te
regalaste; agora sou eu que me divirto a meu modo! — e continuou a gritar tanto
quanto podia.
Acabou por acordar a família, que veio
pressurosa olhar para a cozinha pelo buraco da fechadura. O pai e a mãe ao
verem que estava ali um lobo, armaram-se: o pai com um machado e a mulher com
uma foice.
— Fica para traz — aconselhou o marido à
mulher quando entraram na cozinha, eu vou matá-lo com o machado, mas se o não
matar de um só golpe, tu abres-lhe a barriga!
João Pequenino — ao conhecer a voz do pai—
pôs-se a gritar:
— Sou eu, meu pai, sou eu que estou na
barriga do lobo!
— Graças! — exclamou o pai louco de contente.
— Ora até que enfim que o nosso filho foi encontrado!...
E disse logo à mulher que pusesse de parte a
foice não fosse ferir o João Pequenino. Em seguida com faca e tesoura abriu a
barriga do lobo de onde saltou lesto o nosso simpático João Pequenino.
— Não podes calcular, filho,— exclamou o pai—
os sustos que temos tido com a tua sorte!
— Acredito, pai... mas olhe, eu fartei-me de
correr mundo; felizmente que já vejo a luz do dia!
— Onde tens tu estado?
— Ora, onde tenho estado! Estive numa toca de
rato, na cavidade de uma árvore, no feno, na barriga de uma vaca, no estrume e
por fim na barriga de um lobo! Agora estou com os meus queridos pais!
— E nós não te tornaríamos a vender por
dinheiro algum deste mundo! — disseram os pais abraçando-o e apertando-o contra
o coração.
Deram-lhe de comer e vestiram-lhe outra roupa,
pois a primitiva vinha em estado lastimoso, o que é natural, atendendo aos
sítios pouco limpos por onde viajara o nosso João Pequenino.
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Fonte:
Tradução de Henrique Marques Júnior: "Pérolas e
Diamantes: Irmãos Grimm" (1908).
Pesquisa a adequação ortográfica: Iba
Mendes Editor Digital. São Paulo, 2021.
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