CAPÍTULO 1: E ERA ONÇA MESMO!
Dos
moradores do sítio de Dona Benta o mais andejo era o Marquês de Rabicó.
Conhecia todas as florestas, inclusive o capoeirão dos Taquaruçus, mato muito
cerrado onde Dona Benta não deixava que os meninos fossem passear. Certo dia em
que Rabicó se aventurou nesse mato em procura das orelhas-de-pau que crescem
nos troncos podres, parece que as coisas não lhe correram muito bem, pois
voltou na volada.
—
Que aconteceu? — perguntou Pedrinho, ao vê-lo chegar todo arrepiado e com os
olhos cheios de susto. — Está com cara de Marquês que viu onça...
—
Não vi, mas quase vi! — respondeu Rabicó, tomando fôlego. — Ouvi um miado
esquisito e dei com uns rastos mais esquisitos ainda. Não conheço onça, que
dizem ser um gatão assim do tamanho dum bezerro. Ora, o miado que ouvi era de
gato, mas muito mais forte, e os rastos também eram de gato, mas muito maiores.
Logo, era onça.
Pedrinho
refletiu sobre o caso e achou que bem podia ser verdade. Correu em procura de
Narizinho.
—
Sabe? Rabicó descobriu que anda uma onça no capoeirão dos Taquaruçus!...
—
Uma onça? Não me diga! Vou já avisar vovó...
—
Não caia nessa — advertiu o menino. — Medrosa como ela é, vovó ou morre de medo
ou trata de nos levar hoje mesmo para a cidade. Muito melhor ficarmos quietos e
caçarmos a onça.
A
menina arregalou os olhos.
—
Está louco, Pedrinho? Não sabe que onça é um bicho feroz que come gente?
—
Sei, sim, como também sei que gente mata onça.
—
Isso é gente grande, bobo!
—
Gente grande!... — repetiu o menino, com ar de pouco-caso. — Vovó e Tia
Nastácia são gente grande e, no entanto, correm até de barata. O que vale não é
ser gente grande, é ser gente de coragem, e eu...
—
Bem sei que você é valente como um galo garnisé, mas olhe que onça é onça. Com
um tapa derruba qualquer caçador, diz Tia Nastácia.
O
menino bateu no peito com arrogância.
—
Pois quero ver isso! Vou organizar a caçada e juro que hei de trazer essa onça
aqui para o terreiro, arrastada pelas orelhas. Se você e os outros não tiverem
coragem de me acompanhar, irei sozinho.
A
menina arrepiou-se de entusiasmo diante de tamanha bravura e não quis ficar
atrás.
—
Pois vou também! — gritou. — Uma menina de nariz arrebitado não tem medo de
coisa nenhuma. Vamos convidar os outros.
Saíram
os dois em busca dos demais companheiros. O primeiro encontrado foi o Marquês
de Rabicó, que estava na porta da cozinha, ocupadíssimo em devorar umas cascas
de abóbora.
—
Apronte-se, Marquês, para tomar parte na expedição que vai caçar a onça
aparecida lá na mata.
Aquela
notícia fez o leitão engasgar com a casca de abóbora que tinha na boca.
—
Caçar a onça? Eu? Deus me livre!...
—
Vai, sim, ainda que seja para servir de isca, está ouvindo, seu covarde? Rabicó
tremia que nem geleia fora do copo.
—
Um fidalgo! — prosseguiu Pedrinho, em tom de desprezo. — Um filho do grande
Visconde de Sabugosa a tremer assim de medo! Que vergonha...
Rabicó
não replicou. Bebeu um gole d’água para acalmar os nervos e voltou às suas
cascas de abóbora com esta ideia na cabeça: “No momento hei de dar um jeito
qualquer. Não tem perigo que eu me deixe comer cru pela onça”.
O
luxo dos leitões é serem comidos assados ao forno, com rodelas de limão em
redor e um ovo cozido na boca...
O
segundo convidado foi o Visconde de Sabugosa, o qual aceitou a proposta com
aquela dignidade e nobreza que marcavam todos os seus atos de fidalgo dos
legítimos. Iria para vencer ou morrer. Viscondes da sua marca mostram o que
valem justamente nos momentos perigosos.
Depois
convidaram Emília, que recebeu a ideia com palmas.
—
Ora, graças! — exclamou. — Vamos ter enfim uma aventura importante. A vida aqui
no sítio anda tão vazia que até me sinto embolorada por dentro. Irei, sim, e
juro que quem vai matar a onça sou eu...
Esse
dia e o outro foram passados em preparativos. Pedrinho levaria uma espingarda
que ele mesmo tinha fabricado escondido de Dona Benta, com cano de guarda-chuva
e gatilho puxado a elástico. Estava carregada com a pólvora duns pistolões
sobrados da última festa de São Pedro.
A
arma que Narizinho escolheu foi a faca de cortar pão, instrumento mestiço de
faca e serrote.
O
Visconde recebeu um sabre feito de arco de barril, bastante pontudo, mas danado
para entortar. Em vista da sua importância e do seu título, também recebeu o
comando da expedição.
—
E você, Emília, que arma leva? — perguntou Narizinho.
—
Levo o espeto de assar frangos. Tenho mais fé naquele espeto do que nas armas
de vocês todos.
Restava
o Marquês. Como fosse um grande medroso, em vez de arma Pedrinho deu-lhe
arreios. Rabicó iria puxando um canhãozinho feito dum velho tubo de chaminé,
que o menino havia montado sobre as rodas do seu carrinho de cabrito. Para
carregar o canhãozinho foi necessário empregar a pólvora de três pistolões.
Servia de bala uma pedra bem redondinha, encontrada nos pedregulhos do rio.
Indo atrelado ao canhão, o grande Marquês ficaria impedido de fugir.
No
dia marcado tomaram o café com farinha de milho da manhã e saíram na ponta dos
pés, para que as duas velhas nada percebessem. Passaram a porteira do pasto,
atravessaram a mata dos Tucanos Vermelhos e de lá seguiram rumo ao capoeirão da
onça.
Rabicó
não havia mentido. Os rastos da onça estavam impressos na terra úmida. Ao
fazerem tal descoberta o coração dos cinco heróis bateu mais apressado. Dos
cinco, não; dos quatro, porque, como todos sabem, Emília não tinha coração.
—
Que é isso, Pedrinho — disse a boneca, notando a palidez do chefe. — Será medo?
—
Não é medo não, Emília. É...
—
É... receio, eu sei — caçoou a terrível bonequinha.
—
Não brinque comigo, Emília! — gritou Pedrinho, avermelhando de raiva. — Você e
toda gente sabe que só tenho medo duma coisa neste mundo — maribondo. De mais
nada, hem?
O
Visconde, que havia trazido a tiracolo o binóculo de Dona Benta, ajustou-o aos
olhos para examinar “detetivamente” os rastos.
—
É de onça, sim, e de onça-pintada — disse ele.
—
Como sabe?
—
Estou vendo no chão dois pelos, um amarelo e outro preto.
Aquela
confirmação de que era onça mesmo, e das grandes, desanimou profundamente
Rabicó. Gotas de suor frio começaram a pingar da sua testa. Teve ímpetos de
soltar-se do canhãozinho e disparar para casa; só não o fez de medo que
Pedrinho lhe despejasse no lombo a carga de chumbo destinada à onça. E
resignou-se ao que desse e viesse.
Orientados
pelos rastos da onça, os caçadores não podiam errar. Era seguir na direção
deles, que fatalmente dariam com a bicha.
—
Avante, Sabóia! — gritou Pedrinho, espichando no ar a espingarda como se fosse
espada.
—
Avante! — repetiram todos os outros, menos Rabicó, que estava sem fala.
E
com o maior entusiasmo os heroizinhos foram caminhando durante meia hora.
Súbito, o Visconde, que ia na frente, de binóculo apontado, gritou com voz
firme:
—
A onça...
—
Onde? — indagaram todos, ansiosos.
—
Lá longe, naquela moita — lá, lá... Realmente, alguma coisa se mexia na moita
indicada e não tardou que uma enorme cara de onça aparecesse por entre as
folhas, espiando para o lado dos cinco heróis.
Pedrinho
dispôs tudo para o ataque. Assestou na direção da moita o canhãozinho e ordenou
ao artilheiro Rabicó, enquanto o desatrelava:
—
Fique nesta posição. Quando ouvir a voz de “Fogo!” risque um fósforo, acenda a
mecha e dispare.
—
Disparo para casa? — perguntou o artilheiro, mais trêmulo do que uma fatia de
manjar branco.
—
Dispare o canhão, idiota! — berrou Pedrinho. Enquanto isso, a onça deixava a
moita e com o andar manhoso dos gatos dirigia-se, agachada, para o lado deles.
Era o momento. O Visconde ergueu a espada e com voz grossa de comandante
superior deu um berro de comando:
—
Fogo!
Rabicó,
todo treme-treme, não conseguiu nem riscar o fósforo. Foi preciso que Pedrinho
viesse ajudá-lo. Por fim riscou-o e deitou fogo à mecha. Ouviu-se um chiado e
logo depois um tiro soou — Pum! Mas
um tiro chocho que não valeu nada. A bala de pedra rolou a dois passos de
distância, imaginem: Havia falhado a artilharia, na qual eles depositavam
tantas esperanças.
Pedrinho
então disparou a sua espingardinha. Outro tiro chocho que nada valeu e só
serviu para irritar a fera. Viram-na arreganhar os dentes e apressar a marcha
na direção dos atacantes.
A
situação tornava-se muito séria e Pedrinho, desapontado com o nenhum efeito das
armas de fogo, berrou a plenos pulmões:
—
Salve-se quem puder!
Foi
uma debandada. Cada qual tratou de si e, como se houvessem virado macacos,
todos procuraram a salvação nas árvores. Felizmente havia ali um pé de
grumixama que dava para abrigar o grupo inteiro. Nele treparam, sem
dificuldade, Pedrinho, Narizinho e Emília. Já o velho Visconde embaraçou as
pernas na bainha da espada e com toda a sua importância estendeu-se no chão, ao
comprido. Foi preciso que o menino o pescasse com o gancho dum galho seco.
Rabicó
fez coisa de que ninguém nunca o julgaria capaz: botou-se à árvore que nem gato
e conseguiu enganchar-se na forquilha do primeiro tronco. Pedrinho e Narizinho,
que estavam no galho acima, puderam agarrá-lo pela orelha e içá-lo fora do
alcance da onça. Quando a fera chegou, estavam já todos muito bem empoleirados
e livres dos seus botes.
A
onça, desapontadíssima, ali permaneceu, sentada sobre as patas de trás, com os
olhos fixos nos caçadores que a tinham logrado. Parece que sua intenção era
ficar de guarda até que eles descessem.
—
Espera que te curo — disse Pedrinho, lembrando-se que trazia no bolso um pouco
da pólvora dos pistolões. Tomou um punhado e, ajeitando-se no galho que ficava
bem a prumo sobre a onça, derramou-lhe a pólvora em cima dos olhos.
A
ideia valeu. Completamente cega pela pólvora, a onça pôs-se a corcovear que nem
doida, enquanto esfregava os olhos com as munhecas, como se quisesse
arrancá-los.
—
É hora! Avança, macacada! — gritou Pedrinho, escorregando pela árvore abaixo.
Todos
o imitaram. Apanharam as armas e se arrojaram contra a fera com verdadeira
fúria. Narizinho esfregou-lhe a faca no lombo, como se a onça fosse pão e ela
quisesse tirar uma fatia. O Visconde conseguiu, depois de várias tentativas,
enterrar-lhe no peito o seu sabre de arco de barril. Emília fez o mesmo com o
espeto de assar frango. Pedrinho macetou-lhe o crânio com a coronha da sua
espingarda. Até Rabicó perdeu o medo e, depois de carregar de novo. o canhão,
deu-lhe um bom tiro à queima-roupa.
Assim
atacada de todos os lados, a onça não teve remédio senão morrer. Estrebuchou e
foi morrendo. Quando deu o último suspiro, Pedrinho, no maior entusiasmo de sua
vida, entoou um canto de guerra:
—
Ale guá, guá, guá...
E
todos responderam em coro:
—
Hurra! Hurra! Pica-Pau Amarelo!...
CAPÍTULO
2: A VOLTA PARA CASA
Foi
um delírio de contentamento. Os caçadores rodearam a onça morta, discutindo as
peripécias da formidável aventura. Emília reclamou logo todas as honras para
si.
—
Se não fosse a minha espetada com o espeto de assar frango, queria ver...
—
O que decidiu tudo foram as facadas que eu dei — alegou Narizinho.
—
Qual nada! Juro que foi o meu tiro de canhão — disse Rabicó.
—
Pexote! — berrou Pedrinho. — A bala de canhão nem arranhou a pele da onça, não
está vendo?
Como
daquela disputa pudesse sair briga, o Visconde ponderou gravemente:
—
Todos ajudaram a matar a onça e todos merecem louvores. Mas se não fosse a
pólvora de Pedrinho, estaríamos perdidos; de maneira que a Pedrinho cabe a
melhor parte da vitória. Depois de cegar a onça, tudo ficou mais fácil e cada
qual fez o que pôde. Basta de discussões. Em vez disso, tratemos mas é de
levá-la para casa.
Os
heróis concordaram com o sensatíssimo Visconde e Pedrinho afundou no mato para
tirar cipós, visto não terem trazido corda. Logo depois reapareceu com um rolo
de cipó ao ombro.
—
Segure aqui! Puxe lá! Força! Vamos!...
Pedrinho
conduziu o trabalho da amarração da onça ajudado por todos, menos Emília, que
se afastara dali e estava numa grande prosa com dois besouros que tinham vindo
assistir à cena. Bem amarrada que foi a onça, era preciso conduzi-la até a
casa. Foi o que mais custou. Em certo ponto do caminho, Rabicó, que suava em
bicas, parou para tomar fôlego.
—
Francamente — disse ele — prefiro matar dez onças a puxar uma só! Estou que não
posso mais...
Pararam
todos para um bem merecido descanso e sentaram-se em cima do pelo macio da fera
morta. Vendo que o sol já ia alto, Narizinho disse:
—
Pobre vovó! Passa bem maus momentos por nossa causa. A estas horas deve estar
aflitíssima a procurar-nos por toda parte...
—
Mas vai consolar-se vendo a bichona que matamos — disse Pedrinho.
“Que
matamos, uma ova!”, pensou, lá consigo, Rabicó. “Que eu matei com o meu tiro de
canhão, isso sim.”
Pensou
apenas. Não teve coragem de o dizer em voz alta, de medo do pontapé que
Pedrinho fatalmente lhe pregaria.
Descansados
que foram, prosseguiram na caminhada. Duas horas depois avistavam a casa, e
viram Dona Benta e Tia Nastácia, muito aflitas, procurando-os pelo pomar.
Pedrinho pôs na boca dois dedos e desferiu um célebre assobio que só ele sabia
dar. As velhas voltaram-se na direção do som e Tia Nastácia, que tinha melhor
vista, enxergou-os logo.
—
Lá vêm vindo eles, sinhá! e vêm puxando uma coisa esquisita... Quer ver que
caçaram alguma paca?
Aproximaram-se
os heróis. Penetraram no terreiro. Narizinho, de longe, gritou:
—
Adivinhe, vovó, o que matamos!
—
Uns danadinhos como vocês são bem capazes de terem matado alguma paca...
A
menina deu uma risada gostosa.
—
Qual paca, nem pera paca, vovó! Suba!
—
Então, algum veado — lembrou a velha, começando a arregalar os olhos.
—
Suba, vovó!
—
Porco-do-mato, será possível?
—
Suba, suba!
—
Então foi capivara...
—
Vá subindo, vovó!
A
boa senhora não sabia como subir além duma capivara, que era o maior animal
existente por ali. Narizinho, então, chegou-se para ela e disse, fazendo uma
careta de apavorar:
—
Uma onça, vovó!
O
susto de Dona Benta foi o maior da sua vida — tão grande que caiu sentada, com
sufocação, exclamando:
—
Nossa Senhora da Aparecida! Esta criançada ainda me deixa louca...
Mais
corajosa, a negra aproximou-se, viu que era mesmo onça e:
—
O mundo está perdido, sinhá — murmurou, de mãos postas. — É onça mesmo...
CAPÍTULO 3: OS HABITANTES DA MATA SE
ASSUSTAM
As
cenas da caçada da onça haviam sido presenciadas por muitos animaizinhos
selvagens, entre eles um intrometidíssimo sagui. Ficou tão admirado da proeza
dos meninos que levou longo tempo a piscar muito depressa — sinal de que estava
pensando alguma ideia de sagui. Por fim resolveu-se e, pulando de galho em
galho, foi em busca duma capivara que morava perto, na beira do rio.
—
Sabe, Dona Capivara, o que aconteceu à onça da Toca Fria? Morreu... — disse
ele, fazendo uma carinha muito assustada.
—
Morreu de quê, sagui? — indagou a capivara. — De morte morrida ou de morte
matada?
—
De morte matadíssima. Os meninos do sítio de Dona Benta mataram-na a tiros e
facadas e espetadas, e depois a arrastaram com cipós até lá, ao terreiro.
E
contou por miúdo toda a cena a que havia assistido. A capivara abriu a boca.
Aquela onça era o terror de todos os bichos da redondeza, graças à sua força e
ferocidade. Por várias vezes os caçadores das terras vizinhas haviam organizado
batidas a fim de dar cabo dela, sem nenhum resultado. A onça escapava sempre.
Como, então, fora vítima dos netos de Dona Benta, simples crianças? Era
espantoso, não havia dúvida. E se essas crianças haviam matado a onça
dominadora da mata, com muito maior facilidade matariam a qualquer outro filho
das selvas, fosse veado, paca, tatu ou mesmo capivara.
—
A situação é bastante grave — disse, por fim, o animalão, depois de muito
pensar e repensar. — Vejo que esses meninos constituem um grande perigo para
nós aqui. Vou reunir uma assembleia de todos os bichos, para discutirmos o caso
e tomarmos as medidas necessárias à nossa segurança.
Ia
passando pelo céu azul um gavião perseguindo dois bem-te-vis. A capivara
chamou-os.
—
Parem com essa eterna briga e venham ouvir o que tenho a dizer. A situação de
todos os viventes da floresta é muito séria.
Quando
a vida dos animais selvagens se vê ameaçada de perigo geral, as velhas
rivalidades cessam. A jaguatirica deixa de perseguir as lebres. A lontra
esquece a fome e pode até conversar amavelmente com os peixes de que se
alimenta. O cachorro-do-mato passa perto do porco-espinho sem que este erice as
agulhas. Assim, ao ouvirem as palavras da capivara, tanto o gavião como os
bem-te-vis esqueceram a briga e vieram sentar-se diante dela, um ao lado do
outro, como se nada tivesse havido entre eles.
—
Os meninos de Dona Benta mataram a onça da Toca Fria — começou a capivara. —
Ora, se mataram a onça, que era a rainha da floresta, o mesmo farão, com a
maior facilidade, a qualquer outro bicho menos forte do que a onça. Estamos
pois com as nossas vidas ameaçadas de grande perigo e temos de tomar
providências. Por isso quero convocar uma reunião de todos os animais. Vocês,
que voam, sejam meus mensageiros.
Voem
sobre a mata e avisem a todos para que estejam aqui reunidos, amanhã à
noitinha, debaixo da Figueira-Brava.
O
gavião e os bem-te-vis obedeceram. Voaram de árvore em árvore, dando uns pios
que significavam reunião geral na Figueira-Brava no dia seguinte.
Essa
figueira parecia ter mil anos de idade. Era a maior árvore da zona. Em seu
tronco o tempo abrira um enorme oco, no qual dez homens poderiam abrigar-se perfeitamente.
Erva nenhuma crescia debaixo dela, porque as ervas não crescem onde não bate
sol e ali havia séculos que não batia um raio de sol.
No
dia seguinte, à tarde, os animais foram chegando. Vieram as pacas, tão
medrosinhas; vieram os veados ariscos; as antas pesadonas; os quatis sempre
alegres e brincalhões; os cachorros-do-mato e as irarás de olhar duro; as
jaguatiricas de movimentos macios. Vieram os tatus encapotados em suas cascas
rijas; as lontras embrulhadas em suas capas de pele macia como o veludo; as
preás assustadinhas. Também vieram cobras — as jiboias enormes que engolem um
bezerro taludo; as cascavéis de guizos na ponta da cauda; as lindas
corais-vermelhas; as muçuranas que se alimentam de cobras venenosas sem que
nada lhes aconteça. E sapos — desde o sapo-ferreiro, cujo coaxo lembra
marteladas em bigorna, até a pequenina perereca, que vive pererecando pelo
mundo. E aves, desde o negro urubu fedorento, até essa joia de asas que se
chama beija-flor. E ainda insetos — borboletas de todos os desenhos e cores,
besouros de todas as cascas, serra-paus de todas as serras. E joaninhas e
louva-a-deus e carrapatos...
Os
macacos empoleiraram-se nos galhos da figueira e no rebordo inferior do oco.
Enquanto esperavam, divertiam-se fazendo cabriolas das mais complicadas, e
caretas.
Logo
que os viu reunidos, a capivara tomou a palavra e expôs a situação perigosa em
que se achavam todos.
—
Quem faz um cesto faz um cento — disse ela. — O fato de terem matado a onça vai
encher de coragem esses meninos e fazê-los repetir suas entradas nesta floresta
a fim de nos caçar a todos. O caso é bastante sério.
—
Peço a palavra! — gritou o bugio, que estava de cabeça para baixo, seguro pelo
rabo no seu galho. — Acho que o melhor meio de vocês escaparem à fúria desses
meninos é fazerem como nós fazemos: morar em árvores. Quem mora em árvores está
livre de todos os perigos do chão.
—
Imbecil! — resmungou a capivara, furiosa de tamanha asneira. — Não é à toa que
os macacos se parecem tanto com os homens. Só dizem bobagens. Esta reunião foi
convocada para discutir-se a sério, visto que o caso é muito sério. Quem tiver
uma ideia mais decente que a deste idiota pendurado, que tome a palavra e fale.
Um
jabuti adiantou-se e disse:
—
O meio que vejo é mudar-nos para outras terras.
—
Que terras? — replicou a capivara. — Não há mais terras habitáveis neste país.
Os homens andam a destruir todas as matas, a queimá-las, a reduzi-las a
pastagens para bois e vacas. No meu tempo de menina podíamos caminhar cem dias
e cem noites sem ver o fim da floresta. Agora, quem caminha dois dias para
qualquer lado que seja dá com o fim da mata. Os homens estragaram este país. A
ideia do jabuti não vale grande coisa. Impossível mudar-nos, porque não temos
para onde ir.
—
Amor com amor se paga — disse uma jaguatirica. Matando a nossa rainha esses
meninos nos declararam guerra. Paguemos na mesma moeda. Declaremos guerra a
eles. Reunamos todos os animais de dentes agudos e garras afiadas para um
assalto ao sítio de Dona Benta.
A
capivara ficou pensativa. Isso de assaltar um sítio era realmente coisa que só
onças e jaguatiricas podiam fazer, porque são animais guerreiros.
—
Sim — disse a capivara:— a ideia não me parece de todo má, mas semelhante
guerra só poderá ser feita por vocês, onças, ajudadas pelos cachorros-do-mato e
irarás. Eu, por exemplo, e também as pacas e veados e lontras e borboletas e
serra-paus e carrapatos, não entendemos nada de guerra.
—
Pois que fique a luta a nosso cargo — disse a jaguatirica. — Encarregar-me-ei
de reunir todas as onças e jaguatiricas e cachorros-do-mato e irarás da
floresta para um ataque ao sítio de Dona Benta. Havemos de vencer aqueles
meninos e comer a todos da casa — inclusive as duas velhas.
A
assembleia aprovou a lembrança. “Muito bem!”, pensaram os animais. As onças
fariam a guerra. Se vencessem, a bicharia inteira das selvas estaria salva de
novas incursões dos meninos. Se não vencessem, a vingança deles iria recair
sobre as onças, não sobre os outros. Ótimo!
—
Está aprovada a ideia — disse a capivara. — A Senhora Jaguatirica
encarregar-se-á de falar com as suas companheiras, com as onças grandes, as
irarás e cachorros-do-mato, combinando do melhor modo os planos estratégicos. E
nós, animais pacíficos, comedores de ervas, ficaremos de lado, ajudando os
guerreiros com as nossas “torcidas”.
A
assembleia dissolveu-se. Cada qual foi para sua casa, enquanto a jaguatirica
disparava em procura das companheiras a fim de combinar os meios de conduzir a
guerra.
CAPÍTULO 4: OS ESPIÕES DA EMÍLIA
Entre
os animais da floresta que iam atacar o sítio de Dona Benta havia traidores.
Eram os espiões da Emília. A terrível bonequinha fizera amizade com um casal de
besouros cascudos, muito santarrões, que viviam fingindo estar a dormir mas que
não perdiam coisa nenhuma do que se passava na floresta. Na reunião dos animais
também eles estiveram presentes, vendo e ouvindo tudo lá do seu cantinho. Em
seguida foram dar parte do acontecido à boneca.
—
Eles vão atacar a casa e comer toda a gente do sítio — disse o besouro com voz
cautelosa.
—
Eles quem? — indagou Emília.
—
As onças, as irarás e os cachorros-do-mato.
— Elas, então — disse Emília, que
implicava muito com a regra de gramática que manda pôr pronome no masculino
quando há diversos sujeitos de sexos diferentes. Elas vão atacar o sítio, não é? Pois que venham. Serão muito bem
recebidas. Tenho lá um espeto próprio para espetar onça, irará, jaguatirica e
cachorro-do-mato.
Mas
os besouros contaram minuciosamente tudo quanto tinham ouvido na assembleia da
capivara e a boneca viu que o caso não era de brincadeira. Resolveu lá consigo
ir incontinenti avisar Pedrinho, mas para não dar a perceber os seus receios
fez-se de valentona.
—
Veremos! — disse aos besouros, muito admirados daquele sangue-frio. — Veremos!
Nós matamos há pouco uma onça-pintada, a maior que existia por aqui, e faremos
a mesma coisa até para leões e hipopótamos, se aparecerem. A bicharia há de
convencer-se de que conosco ninguém brinca. Atacar o sítio! Desaforados... E
para quando é a guerra?
—
O dia ainda não está marcado. A jaguatirica anda a correr a mata para reunir os
atacantes.
—
Muito bem — concluiu Emília, sem pestanejar. — Continuem espionando e
avisando-me de tudo quanto souberem. Vou prevenir Pedrinho.
Emília
voltou para casa de carreira e, já de longe, foi gritando pelo menino.
Encontrou-o na varanda, a fazer uma arapuca de talos de folhas de embaúba para
apanhar rolinhas.
—
Largue disso — gritou Emília, ao galgar a escada. — Temos novidade grande. O
sítio vai ser assaltado pelas onças, cachorros-do-mato e irarás.
Pedrinho
olhou para ela com os olhos arregalados.
—
Que bobagem está você dizendo, Emília? Assaltado, por quê? Como?
A
boneca desfiou toda a conversa tida com os besouros e concluiu:
—
Temos guerra, é isso. Matamos a onça e agora a onçada inteira quer a desforra.
Pedrinho
refletiu por alguns instantes. Depois recomendou:
—
Não diga nada a vovó, nem a Tia Nastácia, pois são capazes de morrer de medo.
Vou estudar o caso e organizar a defesa. Vá depressa ver Narizinho e o Visconde.
Diga-lhes que me esperem no pomar, debaixo da jabuticabeira grande. Aqui na
varanda não podemos tratar disso. Vovó descobriria tudo.
Minutos
depois realizava-se, debaixo da jabuticabeira grande, uma segunda assembleia,
menos numerosa que a dos bichos. Compareceram todos, inclusive o Marquês de
Rabicó. Pedrinho pediu à boneca que repetisse a sua conversa com os besouros
espiões. Emília repetiu-a, terminando assim:
—
É guerra e das boas. Não vai escapar ninguém — nem Tia Nastácia, que tem carne
preta. As onças estão preparando as goelas para devorar todos os bípedes do
sítio, exceto os de pena.
O
Marquês de Rabicó sorriu. Se as onças iam devorar todos os bípedes, ele, na sua
nobre qualidade de quadrúpede, estaria fora da matança. “Que felicidade ser quadrúpede!”,
refletiu, lá consigo, o maroto.
Pedrinho
começou a estudar a defesa.
—
Sabem do que mais? — disse ele. — Vou abrir uma linha de trincheiras em redor
da casa.
—
Inútil isso, Pedrinho — objetou a menina. — As onças são umas danadas para
saltar. Pulam qualquer trincheira.
Pedrinho
achou razoável a observação e refletiu um pouco mais. Depois disse:
—
Nesse caso, podemos rodear a fazenda duma cerca de paus-a-pique, bem pontudos.
Construir uma estacada, como faziam os índios.
—
Impossível — objetou outra vez Narizinho. — Para fazer semelhante estacada
teríamos de contratar vários homens para cortar os paus e fincá-los — e vovó
desconfiaria e viria a saber de tudo. Com estacada não vai. Temos de descobrir
outro meio.
E,
voltando-se para o Visconde que ainda não pronunciara uma só palavra:
—
Qual a sua opinião, Visconde?
Como
tivesse corpo de sabugo, o Visconde jamais mostrou o menor medo de onça, ou de
qualquer outro animal carnívoro. Só tinha medo de vaca, bezerro, cavalo e
outros animais comedores de sabugo. Por isso, caçoou:
—
Ataque de onça! Ora, ora. Que valem onças? Se fosse um ataque de vacas, sim,
compreendo que estivéssemos assustados. Mas de onças...
—
E você, Rabicó, que acha? — perguntaram ao Marquês.
O
Marquês nunca achava coisa nenhuma. Sua preocupação única era descobrir coisas
de comer. Quando lhe pediam opinião sobre abóboras, chuchus, cascas de bananas
ou mandioca, ele dava opiniões ótimas. Mas sobre onças...
—
Eu acho que... que... que... — e engasgou.
—
Quequerequeque... Para achar isso não valia a pena ter aberto a boca — disse
Pedrinho. — Temos que achar qualquer coisa. Temos que resolver. O caso é dos
mais sérios. Nossas vidas correm perigo, bem como as vidas de vovó e Tia
Nastácia. Vamos! Venham ideias. Deem tratos à bola e resolvam.
—
Tenho uma ideia excelente! — gritou Narizinho, batendo palmas.
—
Qual é? — exclamaram todos, voltando-se para ela.
—
É deixarmos isto para amanhã. As grandes coisas devem ser bem pensadas e não
podem ser decididas assim, do pé para a mão. A guerra não é para já, pois que a
jaguatirica ainda anda a avisar as companheiras. Até que fale com todas e
organizem o plano de ataque, passar-se-ão alguns dias. Para agora tenho uma
coisa excelente a fazer. Uma surpresa...
Disse
e ergueu-se, correndo para a margem do ribeirão, onde na véspera Tia Nastácia
havia escondido qualquer coisa. Todos a seguiram, curiosos.
—
Que é, que é, Narizinho? Que surpresa é essa?
Em
vez de responder, a menina espalhou um montinho de folhas secas que havia junto
às pedras do rio e revelou, aos olhos do bando, um lindo cacho de brejaúvas.
—
Viva! Viva! — gritou Pedrinho, que se pelava por brejaúvas. — Como arranjou
isto, Narizinho?
—
Foi o Antônio Carapina que nos mandou de presente ontem à noite. Tia Nastácia
recebeu o cacho e veio escondê-lo aqui para que não acontecesse como da outra
vez, que sujamos de cascas a varanda.
—
E por que não me disse nada?
—
Para fazer uma surpresa. Não acha que foi melhor assim?
Sentaram-se
todos em redor do cacho de brejaúvas e começaram a partir os cocos sobre uma
grande laje que havia ali.
—
Ótimas! — exclamou o menino, comendo com gula a deliciosa polpa branca e macia
daqueles cocos no ponto. — O Antônio Carapina tem as melhores lembranças do
mundo. Prove, Emília, este pedacinho...
Minutos
depois estava o chão coberto de cascas, por entre as quais passeava o focinho
de Rabicó, lambiscando o que podia. Enquanto isso, as onças lá na mata marcavam
o ataque ao sítio para o dia seguinte. Felizmente os dois besouros encapotados
estiveram presentes à reunião e tudo ouviram dum galhinho seco.
CAPÍTULO
5: A DEFESA ESTRATÉGICA
Eles
mataram minha esposa! — clamava com voz trêmula de cólera um enorme onção (como
dizia a Emília). — Estou viúvo da minha querida onça por artes daqueles meninos
daninhos do sítio de Dona Benta. Mataram-na e levaram-na de arrasto, amarrada
com cipós, até o terreiro da casinha onde moram. Tiraram-lhe a pele, que depois
de esticada e seca ao sol está servindo de tapete na varanda. Ora, isto é crime
que pede a mais completa vingança. Guerra, pois! Guerra de morte a essa ninhada
de malfeitores.
—
Guerra! Guerra! — exclamaram as jaguatiricas e suçuaranas e cachorros-do-mato e
irarás ali reunidas (como queria a Emília).
O
onço agradou-se daquele entusiasmo.
—
Combinemos o seguinte — disse ele. — Amanhã de manhã cercaremos a casa de modo
que ninguém escape. As irarás e cachorros-do-mato guardarão os lados e nós,
onças, atacaremos pela frente.
—
Bravos! Bravos! Assim o faremos! — gritaram, em coro, as feras.
—
Assaltaremos a casa — prosseguiu o viúvo — e mataremos todos os seus moradores.
—
Sim, matá-los-emos a todos! — repetiu o coro.
—
E depois os comeremos um por um!
—
Sim, sim, comê-los-emos a todos, um por um! — uivou a bicharia, com as línguas
vermelhas a lamberem a beiçaria feroz.
A
assembleia dissolveu-se, indo cada qual para sua toca sem que nenhuma daquelas
feras pensasse em caça naquele dia. Estavam a preparar uma fome especial para o
almoço de carne humana que iam ter no dia seguinte.
Os
besouros espiões tudo ouviram do seu galhinho e lá se foram, a zumbir, dar
parte a Emília dos grandes acontecimentos. A boneca estava ansiosa por eles,
visto como não os tinha visto na véspera.
—
Então? — perguntou logo que os dois sonsos entraram na varanda como se fossem
besouros à toa, desses que se deixam atrair pela luz dos lampiões.
—
É amanhã o ataque — responderam os dois besouros, que eram gêmeos e sempre
falavam e agiam juntos. — As onças acabam de resolver isso numa reunião que
tiveram debaixo da Figueira-Brava. Os cachorros-do-mato e as irarás guardarão
os lados da casa, e as onças, guiadas pelo onço viúvo, darão o assalto. Também
juraram matar e comer a todos.
Emília
não empalideceu de susto, nem tremeu que nem vara verde, como aconteceria se
ela fosse gente de verdade. Emília era a mais corajosa boneca que ainda existiu
no mundo. Apenas disse:
—
Isso de dizer que cerca e assalta e mata e devora é fácil. O difícil é cercar,
assaltar, matar e devorar realmente. Nós saberemos defender-nos. Que venham as
tais onças duma figa!
Os
dois besouros não deixaram de admirar-se daquele espantoso sangue-frio.
—
Mas de que armas dispõem vocês para lutar contra tantas feras raivosas? —
perguntaram eles gemeamente, isto é, cada um dizendo uma palavra. O modo dos
besouros conversarem com a boneca era esse. Um dizia as palavras pares e o
outro dizia as palavras ímpares.
—
Não sei — respondeu Emília. — Isso é com Pedrinho, o nosso generalíssimo. Ele
está estudando o assunto — e eu também. Não sei ainda o que o General Pedrinho
vai fazer, mas sei o que vou fazer. Pensei, pensei e repensei sobre o caso e já
tenho cá uma ideia que vale ouro em pó.
—
Qual — disse o primeiro besouro, é — disse o segundo, essa — continuou o
primeiro, ideia? — concluiu o segundo.
—
Não posso dizer em voz alta — respondeu Emília.
—
Só ao ouvido — e chegando-se bem pertinho dos gêmeos cochichou-lhes ao ouvido a
sua ideia pelo mesmo sistema, isto é, dizendo a palavra par ao besouro número 1
e a palavra ímpar ao besouro número 2.
Os
besouros admiraram-se da esperteza da boneca e partiram — '! — a fim de cumprir as ordens recebidas.
Logo
que os viu se sumirem no espaço, Emília foi correndo contar a Pedrinho o que
acabava de ouvir dos seus espiões de casaca preta.
Pedrinho
já havia resolvido o problema da defesa.
—
Como não temos armas de fogo para enfrentar as onças — disse ele — lembrei-me
do seguinte. Faço uma porção de pernas de pau bem compridas; um par de pernas
para cada morador do sítio, inclusive o Marquês e as galinhas. Quando as onças
nos atacarem, subiremos sobre essas pernas de pau, bem lá no alto — e quero
ver!...
—
E se as onças também subirem pelas pernas de pau acima? — perguntou a menina.
—
Impossível — respondeu ele. — Além de serem pernas muito compridas e de bambu,
que é liso, ainda serão ensebadas. Cada uma corresponderá a um verdadeiro
pau-de-sebo. Nem macaco será capaz de subir.
Foi
considerada ótima a ideia e Pedrinho correu em busca da foice e do serrote. Com
a foice cortou no bambuzal próximo meia dúzia de compridas varas de bambu, e
com o serrote serrou-as do tamanho necessário. Depois, com um formão, abriu
furos, nos quais fixou um estribo, isto é, uma travessinha em que um pé pudesse
apoiar-se.
Prontas
que foram as pernas de pau, tinham de exercitar-se um bocado. Nada mais fácil
do que o equilíbrio sobre pernas de pau, mas mesmo assim não dispensa um pouco
de prática. Quem começou foi Pedrinho, e como as pernas fossem muito altas teve
de trepar a uma escada para colocar-se sobre elas. Assim fez, dando em seguida
umas passadas tontas pelo terreiro, até acertar o equilíbrio. Em poucos minutos
ficou tão hábil naquele pernilonguismo que até parecia ter anos de experiência.
Vendo
a facilidade, Narizinho imitou-o. Trepou à escada e ajeitou-se sobre o par de
pernas que lhe cabia. Também em minutos ficou adestrada a ponto de dar
carreirinhas.
Emília
e o Visconde não ficaram atrás. Eram jeitosos. Restava Rabicó.
—
Vai começar a encrenca — disse Narizinho, quando chegou a hora do ilustre
Marquês.
Assim
aconteceu. A dificuldade principiou com aquele negócio de Rabicó ter quatro
pernas, em vez de duas, como todas as criaturas decentes — os homens, as
galinhas, as escadas. Rabicó tinha duas pernas mais que os outros,
inutilíssimas pernas, porque se uma criatura pode viver muito bem com duas, ter
quatro é ter pernas demais.
—
Se eu tivesse clorofórmio e instrumentos cirúrgicos, fazia uma operação em
Rabicó, transformando-o em bípede. Não deixa de ser uma vergonha um quadrúpede
em nosso bando — disse Pedrinho.
Seguramente
uma hora foi gasta naquilo de amarrar quatro pernas de pau nas perninhas do
leitão e fazê-lo equilibrar-se sobre os espeques. Bem que ele esperneou,
gritou, como se o estivessem matando com uma faca de ponta bem pontuda. Atraída
pelos seus gritos, Tia Nastácia apareceu na porta da cozinha para ver o que era
— e quase desmaiou de susto vendo o bandinho lá em cima, pernejando
pernilongalmente pelo terreiro.
—
Corra, sinhá! — gritou para dentro. — Venha ver o “felómeno” que aconteceu com
a criançada. Está tudo pernilongo!...
Dona
Benta apareceu à janela e assombrou-se da habilidade com que seus netos corriam
e brincavam sobre pernas daquele comprimento, como se tivessem nascido
pernaltas.
—
Cuidado! — exclamou ela. — Se um de vocês perde o equilíbrio e vem ao chão, esborracha
o nariz para o resto da vida. Mas que ideia foi essa, meninos?
Não
houve remédio senão explicar-lhe tudo, mesmo porque Dona Benta e Tia Nastácia
tinham também de colocar-se sobre tais pernas quando as onças chegassem.
—
Às onças vão atacar o sítio amanhã, vovó, umas cinquenta — disse Pedrinho — e
como não temos carabinas com que nos defender, a defesa que achei foi esta.
—
Onças? Cinquenta? — repetiu Dona Benta, com os olhos arregaladíssimos.
—
Quem contou semelhante coisa?
—
Os besouros gêmeos da Emília, vovó — disse Narizinho. — Acabam de nos avisar
que as onças, para vingarem a morte da que matamos, organizaram um ataque ao
sítio para amanhã.
As
duas pobres velhas ficaram na maior aflição do mundo, como era natural. Com
semelhantes travessuras, o terrível bandinho acabaria dando cabo delas, não
havia dúvida. Tia Nastácia, de olhos arregalados do tamanho de xícaras de chá,
até perdeu a fala. Limitava-se a fazer pelo-sinais, um em cima do outro.
—
Mas isto não tem propósito, Pedrinho! — ralhou Dona Benta. — Vocês põem-me
doida. Onças e logo cin-quen-ta!... Como irei arranjar-me aqui embaixo, sozinha
com Tia Nastácia?
—
O remédio, vovó, é a senhora e Tia Nastácia meterem-se em pernas de pau também.
Olhe, as suas já estão ali prontinhas, feitas sob medida — e as de Tia Nastácia
são aquelas acolá...
A
aflição das duas velhas cresceu ainda alguns pontos. O medo de serem comidas
pelas onças se somou ao medo de caírem de cima de tão compridas pernas. Mas que
fazer? Ficarem embaixo, sozinhas, era suicídio puro, porque seriam fatalmente
comidas pelas onças.
Dona
Benta cocou a cabeça, desanimada.
—
Inútil procurar outra saída, vovó — disse Pedrinho.
—
As onças amanhã de manhã estarão aqui para o assalto e ou a senhora se utiliza
desta defesa pernil que inventamos, ou deixa-se devorar viva. Escolha.
Não
havia escolha possível e, apesar dos seus sessenta anos e dos seus vários
reumatismos, a pobre Dona Benta teve de trepar na escada e ajeitar-se sobre o
par de andaimes que Pedrinho lhe destinara.
Custou!
Além de ter os músculos emperrados, a boa velhinha era medrosíssima. Por várias
vezes quis desistir, e só não desistiu porque os meninos não cessavam de
lembrar que nesse caso seria fatalmente devorada, como a avó da Menina da
Capinha Vermelha. Afinal aprendeu o equilíbrio, dando uns passos muito
desajeitados pelo terreiro.
—
Serve — disse Pedrinho, que dirigia a aprendizagem. — Já dá para escapar de
onça. Tratemos agora de Tia Nastácia.
Aí
é que foi a dificuldade. A pobre negra era ainda mais desajeitada do que Rabicó
e Dona Benta somados. Quando depois de inúmeras tentativas, ia se tenteando
sobre as pernas de pau, perdeu de súbito o equilíbrio e veio ao chão, num
berro. Felizmente caiu sobre um varal de roupa e não se machucou.
—
Não trepo mais nesses andaimes — exclamou ela, ainda enganchada no varal. —
Prefiro que as onças me comam viva. Figa, rabudo!...
Mas
isso de preferir que as onças nos comam vivos é conversa. Na hora em que onça
aparece, até em pau-de-sebo um aleijado é capaz de subir. A pobre da Tia
Nastácia ia ficar sabendo disso no dia seguinte...
CAPÍTULO 6: APARECE UMA NOVA MENINA
De
noite houve discussão das hipóteses que poderiam dar-se no dia seguinte.
Dona
Benta disse:
—
Concordo que, se estivermos sobre pernas de pau, as onças não poderão
apanhar-nos. Mas depois? E se elas resolverem ficar por aqui até que nos
cansemos e sejamos forçados a descer?
Era
uma hipótese bastante provável, que não havia ocorrido a Pedrinho. Sim; se as
onças ficassem por lá, como era?
—
Hão de cansar-se e ir-se embora — sugeriu Narizinho. — Quando a fome apertar,
não fica nenhuma aqui.
—
E se se revezarem? — lembrou Dona Benta. — E se, enquanto a metade das onças
for caçar, a outra metade ficar montando guarda?
Pedrinho
não soube responder, nem Narizinho, nem o Visconde. Ficaram todos de nariz
caído, pensando nessa terrível hipótese. Quem respondeu foi a Emília, que
andava toda misteriosa, piscando cavorteiramente, como quem tem no bolso a
solução dum grande problema.
—
Não tenham medo de coisa nenhuma — disse ela, por fim. — Arranjei umas granadas
de mão, ótimas para espantar onças.
—
Granadas de mão? — repetiu Pedrinho franzindo a testa. — Que história é essa,
Emília?
—
Uma surpresa. Preparei as granadas com a ajuda dos meus besouros. Fiz cinco,
número suficiente para espantar até cem onças.
—
E onde estão?
—
No telhado.
—
Por que no telhado?
—
Botei-as lá para estarem ao meu alcance na hora em que as onças aparecerem e
nós estivermos sobre as pernas de pau. Também botei lá pão com manteiga, um
guarda-chuva e mais coisas. Pode nos apertar a fome, pode chover...
Narizinho
estava intrigadíssima com o negócio das granadas.
—
Explique isso melhor, Emília. Que granadas são essas?
—
Nada posso dizer. É segredo. Só adiantarei que são de cera e do tamanho de
laranjas-baianas.
Granadas
de cera, do tamanho de laranjas-baianas! Ou a boneca estava de miolo mole...
ou... Em todo o caso, como a Emília era uma danadinha capaz de tudo, os meninos
e as velhas sossegaram um pouco mais.
A
razão de Tia Nastácia haver desistido das pernas de pau era que não acreditava
muito no tal assalto das onças. “Isso há de ser imaginação dessas crianças”,
refletia de si para si. “Os diabretes vivem com a cabeça quente e inventam
coisas para atormentar os mais velhos. Não acredito.”
Dona
Benta igualmente não acreditou — no princípio. Depois, lembrando-se de outras
coisas inda mais espantosas que já tinham acontecido, achou melhor acreditar.
—
Qual nada, sinhá! — insistiu a negra. — Onde já se viu onça andar em bando a
atacar casa de gente? Estou com setenta anos e nunca ouvi falar de semelhante
coisa.
—
Nem eu. Mas lembre-se, Nastácia, que também nunca vimos contar de nenhuma
boneca que falasse, nem de nenhum visconde de sabugo que agisse tal qual uma
gentinha — e aí estão a Emília e o Visconde de Sabugosa.
—
Lá isso é — resmungou a preta, pendurando o beiço.
—
Se isso é, como vai você arranjar-se amanhã, se as onças vierem mesmo e nos
atacarem aqui?
—
Como vou me arranjar? — repetiu Tia Nastácia, cocando a cabeça. — Não sei.
Francamente não sei. Na hora veremos...
Ela
continuava com a esperança de que o tal ataque das cinquenta onças não passasse
duma “pulha” de Pedrinho para meter medo aos “mais velhos”.
Foram
dormir. Cada qual sonhou pelo menos com uma onça. Emília, porém, teve sonhos
cor-de-rosa, a avaliar-se pelos sorrisos que animaram seu rostinho durante a
noite inteira. É que estava sonhando com as suas famosas granadas de cera...
Pela
madrugada alguém bateu na porta da rua — toque,
toque, toque... Pedrinho pulou da cama, assustado. “Seriam já as onças?” Os
outros também se ergueram, inclusive Dona Benta e Tia Nastácia. Reuniram-se
todos na sala de jantar, à escuta.
Nova
batida — toque, toque, toque...
—
Parece batida de nó de dedo — sussurrou Narizinho.
—
Onça não bate assim.
Pé
ante pé, a menina aproximou-se da porta e espiou pelo buraco da fechadura. Não
viu onça nenhuma. Em vez disso viu... outra menina!
—
Uma menina! — exclamou Narizinho, batendo palmas.
—
Assim do meu tamanho, lindinha! Quem sabe se não é Capinha Vermelha?...
Abro
ou não a porta, vovó?
—
Pois se é uma menina, abra. Veja primeiro se não vem algum lobo atrás, como
aquele que acompanhou Capinha.
Narizinho
espiou de novo e não viu lobo nenhum. Em vista disso, abriu. Uma menina muito
desembaraçada, da mesma idade que ela, entrou.
—
Boa madrugada para vocês todos! Boa madrugada, Dona Benta! Boa madrugada, Tia
Nastácia!
A
menina conhecia a todos da casa e, no entanto, não era conhecida de nenhum
dali. Quem seria?
—
Quem é você, menina? — perguntou Dona Benta, meio desconfiada.
—
Não me conhecem? — tornou a desconhecidazinha com todo o espevitamento. — Pois
sou a Cléu...
Foi
uma alegria geral. Não havia ali quem não conhecesse de nome a famosa Cléu, que
falava pelo rádio e de vez em quando escrevia cartas a Narizinho, dando ideias
de novas aventuras.
—
Viva, viva a Cléu! — exclamaram todos, numa grande alegria.
—
Pois é — disse a menina sentando-se sobre a mesa — cá estou para conhecê-los
pessoalmente. Desde que li as primeiras aventuras de Narizinho, fiquei doida
por entrar para o bando. Moro em São Paulo, uma cidade muito desenxabida, com
um viaduto muito feio e gente apressada, passeando pelas ruas. Enjoei do tal
São Paulo e vim morar aqui. Fiquem certos duma coisa: o único lugar
interessante que há no Brasil é este sítio de Dona Benta.
Todos
mostraram-se contentíssimos. Dona Benta, entretanto, disse:
—
Mas veio em má ocasião, Cléu. Imagine que justamente hoje o sítio vai ser
atacado por um exército de onças e irarás e cachorros-do-mato.
—
Ótimo! — respondeu a menina. — Um dos meus sonhos sempre foi ser atacada por um
exército de onças e irarás e cachorros-do-mato, de modo que adivinhei vindo em
momento tão propício...
— Ché... — exclamou lá consigo Tia
Nastácia. — Agora é que o sítio pega fogo mesmo. Menina de “propícios”...
Credo!
O
dia estava clareando e, como as onças podiam chegar dum momento para outro,
Pedrinho tratou de ensinar a Cléu o uso das pernas de pau, explicando-lhe que
fora esse o meio que descobrira para se defenderem do ataque.
Tia
Nastácia foi para a cozinha acender o fogo para o café. Estava de olho parado,
pensando, pensando...
—
A Cléu aqui! — murmurava ela, olhando para o fogo. — Ché...
CAPÍTULO
7: O ASSALTO DAS ONÇAS
Depois
de tomado o café com farinha de milho, Pedrinho pendurou o Visconde no galho
mais alto duma árvore próxima, armado do binóculo de Dona Benta, para dar aviso
da chegada das onças. O nobre fidalgo, porém, sempre tivera o costume de
acordar tarde, ali pelas dez horas, mais ou menos. Em vista disso resolveu
dormir no seu galhinho, certo de que só lá pelas dez horas as onças viriam.
Dormiu e, portanto, não pôde dar aviso da chegada das onças, que já estavam bem
perto. Quem percebeu a aproximação delas foi a Emília, que tinha um faro maravilhoso.
—
Estou sentindo no ar um cheirinho de onça! — exclamou, em certo momento. Por
força da sugestão ou porque de fato andasse pelo ar algum cheiro de onça, todos
ergueram o nariz e sentiram um forte cheiro de onça. Como é então que o Visconde
não dava nenhum aviso? Pedrinho correu ao terreiro e gritou:
—
Avise duma vez, palerma! Não vê que as onças já estão chegando?
O
pobre fidalgo acordou com o berro e ainda cheio de sono espiou pelo binóculo,
mas em sentido contrário, de modo que viu as onças muitíssimo longe.
—
Vêm, sim — disse ele —, mas tão longe, tão longe e tão pequenininhas, que até
que cresçam e cheguem dá tempo de...
Não
pôde concluir. Escorregou do galho e veio de ponta-cabeça ao chão.
Mas
não havia tempo de acudir o pobre Visconde, caído de mau jeito bem em cima duma
lama onde ficou de cabeça enterrada. O tempo era o exatamente necessário para
se colocarem sobre as pernas de pau. Corre-corre geral. Cada um tratou de
apanhar o par de pernas que lhe pertencia e de ajeitar-se em cima. Em três
minutos o terreiro ficou povoado daqueles estranhos bípedes pernaltas. A
primeira coisa que lá do alto viram foram as granadas de cera da Emília,
arranjadinhas sobre o telhado. Pedrinho quis examiná-las. Não pôde. A boneca
espantou-o com um grito.
—
Não se aproxime! Não bula, não me estrague o capítulo!...
E
Tia Nastácia? Essa ficou embaixo, rezando e riscando a cara e o peito de
trêmulos pelo-sinais. Apesar de descrente da vinda das onças, que lhe parecia
coisa
impossível,
começou a sentir um horrível medo. E se viessem mesmo? pensava ela. E se o tal
cheirinho que a boneca sentira no ar fosse mesmo cheiro de onça?
Súbito
— Miau! Um horrível miado ressoou no
pasto. Devia ser o sinal de ataque do onço viúvo. Logo em seguida surgiram de
dentro de todas as moitas uma infinidade de caras de onças e jaguatiricas e
irarás e cachorros-do-mato, com olhos ameaçadores e dentuças arreganhadas.
Só
então a pobre negra se convenceu de que tinha errado. Correu qual uma
desvairada às pernas de pau que Pedrinho lhe tinha feito. Nada achou. A Cléu se
havia utilizado delas. Olhou aflita para a escada. Bobagens, escada! As onças
também trepariam pelos degraus. Seus olhos esbugalhados procuravam inutilmente
a salvação.
—
Trepe no mastro! — gritou-lhe a Cléu.
Sim,
era o único jeito — e Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos,
trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal
agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em
mastros.
Foi
a continha. A onçada toda já estava no terreiro.
A
princípio, os assaltantes não perceberam o truque inventado por Pedrinho para
lográ-los. Os animais de quatro pés raro olham para o alto e, como os pernaltas
guardassem o mais absoluto silêncio, as onças não os viram lá em cima de seus
espeques. Entraram pela casa adentro em procura deles e, não os encontrando,
mostraram-se desapontadíssimas.
—
Fugiram, os covardes! — uivou, com os olhos chispantes de cólera, o onço viúvo.
— Alguém os avisou e eles fugiram...
Nisto,
uma cuspidinha da Emília caiu-lhe bem no focinho. O onço olhou para cima e
sorriu, lambendo os beiços.
—
O nosso “almoço” não fugiu, não! — exclamou, contentíssimo. — Lá estão todos os
“pratos”, cada qual em cima de dois “espetos”.
Toda
a bicharia olhou para cima, com água na boca. Não tinham comido na véspera, o
apetite era forte e viram que iam ter uma bela variedade de petiscos — um
menino, duas meninas, um leitão, uma boneca, uma velha branca e uma velha
preta. Ótimo!
—
Isso é que é almoço! — observou uma irará. — Vai ser um banquete dos bons...
Mas
como devorar aqueles pernaltas? O onço, que era o mais forte do bando,
experimentou o pulo. Deu quatro ou cinco pulos formidáveis, os maiores de sua
vida
—
mas inutilmente. Os espetos tinham quatro metros de altura e os seus pulos não
iam acima de três metros e noventa e cinco centímetros.
—
Com pulo não vai — disse ele. — Precisamos inventar outra coisa. Que há de ser?
—
Tenho uma ideia — latiu um cachorro-do-mato de talento. — Eles não podem ficar
lá em cima toda a vida. Hão de descer logo que a fome aperte. Minha ideia é
ficarmos aqui de plantão até que desçam.
—
Sim — disse o onço, que era burríssimo — mas se a fome aperta para eles, também
aperta para nós — e como é?
—
Revezamo-nos — resolveu o cachorro. — Metade do bando vai caçar e almoçar no
mato, enquanto a outra metade fica de guarda. Desse modo poderemos permanecer
aqui a vida inteira, se for preciso.
—
Eu não disse? — cochichou Dona Benta. — As malvadas vão revezar-se e estamos
perdidos...
A
situação era gravíssima. Cléu, que não tinha prática de aventuras maravilhosas,
fez bico de choro. As onças estavam decididas a tudo; e, se os pernaltas podiam
resistir por muitas horas, o mesmo não acontecia à pobre Tia Nastácia, que já
mal se aguentava no mastro. — Vou cair! — berrou ela, de repente. — Não aguento
mais. Minhas mãos já começam a escorregar...
—
Estão vendo? — disse o onço, passando a língua pela beiçaria. — O nosso
banquete vai começar pela sobremesa. O furrundu está dizendo que não aguenta
mais e vai descer...
—
Emília! — gritou Pedrinho. — Estamos esperando por você! Que venha a surpresa
das granadas.
A
boneca tratou de tirar partido da situação.
—
Muito bem — disse ela — mas só lançarei as minhas granadas sob três condições.
—
Diga depressa!
—
Primeiro: que todos reconheçam que sou a mais esperta e inteligente do bando.
Segundo: que Dona Benta me dê um regadorzinho de jardim, dos verdes — de outra
cor não quero. Terceiro que...
—
Socorro! — berrou, num tom de cortar a alma, a pobre Tia Nastácia, que não
podendo mais aguentar-se no mastro vinha escorregando lentamente.
Emília
não esperou pela resposta às suas condições. Aproximou-se do telhado, tomou as
granadas e — zás! — arremessou-as contra o bando de feras. As granadas romperam-se
ao bater nos alvos e deixaram sair de dentro enxames de caçunungas, que são as
mais terríveis vespas que existem.
Foi
uma tragédia! As vespas ferraram nos focinhos e olhos das onças e irarás e
cachorros-do-mato, fazendo-os fugirem dali numa desabalada louca. Em meio
minuto o sítio ficou inteiramente limpo de bicho feroz.
Não
foi sem tempo. Tia Nastácia já estava no chão, escarrapachada ao pé do mastro,
mais morta do que viva, suando o suor frio da morte. Se as granadas da Emília
não tivessem produzido aquele maravilhoso resultado, a boa negra realmente não
escaparia de virar furrundu de onça...
—
Viva! Viva a Emília! — gritou Cléu, entusiasmada com a proeza da boneca.
—
Viva! Viva a rainha das bonecas! — gritaram os outros.
Prática
como era, Emília tratou de aproveitar aquele entusiasmo para ganhar coisas.
Obteve de Dona Benta a promessa dum lindo regadorzinho verde; de Pedrinho
apanhou, ali na hora, cinco tostões novos; e de Narizinho conseguiu uma mobília
de boneca.
—
E você, Cléu, que me dá?
—
Um beijo, Emília.
A
boneca fez um muxoxo de pouco-caso. Depois, voltando-se para Tia Nastácia:
—
E você, pretura?
Tia
Nastácia não pôde responder. O susto por que passara fora tanto que havia
perdido a voz. Foi preciso darem-lhe a beber uma caneca d’água. Só então pôde
abrir a boca e dizer:
—
Você me salvou a vida, Emília, e não há o que pague semelhante coisa. Dou tudo
quanto me pedir.
—
Quero aquele pito de barro em que você pita — respondeu a boneca.
Foi
assim que Emília ganhou o célebre pito de barro que mais tarde deu de presente
ao Pequeno Polegar.
CAPÍTULO 8: OS NEGÓCIOS DA EMÍLIA
Desde
essa aventura ficou Pedrinho com mania de caçadas — mas caçadas de feras
africanas. Queria leões, tigres, rinocerontes, elefantes, panteras, e
queixava-se a Dona Benta (como se a boa senhora tivesse culpa) da pobreza do
Brasil a respeito de feras. Chegou a propor-lhe que vendesse o sítio para
comprar outro bem no centro de Uganda, que é a região da África mais rica em
leões.
—
Aqui nem dá gosto morar, vovó — dizia ele, torcendo o nariz. — Fora o jaguar,
que outra fera possuímos? Só paca e veado e anta — uns pobres herbívoros que
têm medo de gente. Eu queria mas era enfrentar peito a peito um rinoceronte!...
Dona
Benta arrepiava-se com aquilo. Lera muita coisa sobre as grandes feras
africanas e sabia que nenhuma existe mais traiçoeira e feroz do que o
rinoceronte, com aquele seu terrível chifre no meio da testa. A pobre senhora
esfriava da cabeça aos pés só ao lembrar-se do horror que seria uma chifrada de
tal espeto.
—
Veja, Nastácia, para que deu Pedrinho agora! — dizia ela. — Quer caçar
rinocerontes... Não sei por quem puxou essa terrível inclinação.
Tia
Nastácia benzia-se. Ignorava o que fosse um rinoceronte, não tendo visto
nenhum, nem no cinema, nem em sonho; mas a simples palavra lhe metia medo.
“Rinoceronte, credo!”
—
E o pior — continuou Dona Benta — é que quando estas crianças encasquetam fazer
uma coisa, fazem mesmo. Elas viram e mexem e acabam caçando algum rinoceronte.
Você vai ver.
E
assim aconteceu. Parece fábula, parece mentira do Barão de Munchausen e, no
entanto, é a verdade pura: os netos de Dona Benta caçaram um rinoceronte de
verdade!...
—
Como?
—
Esperem lá. Algum tempo depois do assalto das onças havia chegado ao Rio de
Janeiro um circo de cavalinhos que era uma verdadeira arca de Noé. Trazia
enorme bicharada — seis leões, três girafas, quatro tigres, zebras, hienas,
focas, panteras, cangurus, jiboias e um formidável rinoceronte. Quando Pedrinho
leu nos jornais a notícia do grande acontecimento, ficou assanhadíssimo. Quis
ir ao Rio ver as feras, chegando a escrever a Dona Tonica, sua mãe, pedindo
licença e meios. Antes, porém, de receber qualquer resposta, um fato
sensacional se deu no Rio: o rinoceronte arrebentou as grades da jaula durante
certa noite de temporal e fugiu. Fugiu para as matas da Tijuca, tomando depois
rumo desconhecido.
Esse
fato causou o maior rebuliço no Brasil inteiro. Os jornais não tratavam de
outra coisa. Até uma revolução, que estava marcada para aquela semana, foi
adiada, porque os conspiradores acharam mais interessante acompanhar o caso do
rinoceronte do que dar tiros nos adversários.
“Um
rinoceronte interna-se nas matas brasileiras”, era o título da notícia que
vinha em letras graúdas em todos os jornais. Durante um mês ninguém cuidou de
mais nada. Grande número de bombeiros e soldados da polícia foram mobilizados.
Os melhores detetives do Rio aplicavam toda a sua esperteza em formar planos
para a captura do misterioso animal. As forças do norte que andavam caçando o
Lampião deixaram em paz esse bandido para também se dedicarem à caça do
monstro. Dizem até que o próprio Lampião e seus companheiros pararam de
assaltar as cidades para se entregarem ao novo esporte — a caça ao rinoceronte.
Onde
estaria ele? Nas florestas do Amazonas? Nas matas virgens do Espírito Santo?
Ninguém sabia. Telegramas chegavam de toda a parte sugerindo pistas. Um de
Manaus dizia: “Numa floresta, a dez léguas desta cidade, foi visto, dentro dum
cerrado de taquaruçus, o vulto negro dum monstro que parece ser o tal
rinoceronte. Pedimos providências”.
Cinco
detetives e numerosos bombeiros foram mandados de avião para aquele ponto, a
fim de investigar. Descobriram tratar-se duma vaca preta que ficara entalada na
moita de taquaruçus...
Outro
telegrama do mesmo gênero veio da cidade de Cachoeiro, no Espírito Santo. “Nas
matas vizinhas ouvem-se urros que não são de onça, nem de nenhum animal
conhecido por aqui. Pedimos enérgicas providências.”
O
avião dos detetives voou para lá. Era um papagaio que fugira dum jardim
zoológico, no qual aprendera a imitar o urro de todos os animais.
Onde
estará o rinoceronte? — eis a pergunta que, da manhã à noite, se repetia pelo
país inteiro. Onde poderia ter-se escondido a tremebunda fera?
Ninguém
possuía elementos para responder. Ninguém sabia. Ninguém — exceto... Emília!
Parecerá
um absurdo. Parecerá invenção de gente sem serviço e, no entanto, é a verdade
pura. Só a pequenina boneca do sítio de Dona Benta sabia realmente onde estava
escondido o monstro!...
O
caso foi assim. Logo que, naquela noite de temporal, o rinoceronte escapou da
jaula e se internou nas matas da Tijuca, deu de andar sem rumo, e foi varando,
sempre para diante, num trote respeitável até que, pela madrugada, surgiu na
mata virgem do sítio de Dona Benta. Gostou do lugar e resolveu ficar por ali,
pastando a viçosa folhagem das ervas que encontrou.
A
presença do rinoceronte causou grande rebuliço entre os habitantes daquela
mata. A capivara, que vive tanto em terra como em água, atirou-se ao rio e não
teve mais coragem de sair. As onças fugiram. Os macacos empoleiraram-se na mais
alta de todas as árvores. Nenhum animal podia compreender um bicho tão estranho
e monstruoso. Observando aquilo, os besouros da Emília resolveram correr e
avisá-la.
Foram
ter com a boneca.
—
Apareceu lá na mata um bicho, que não se parece com bicho nenhum nosso
conhecido — informaram eles gemeamente.
—
Grande? — perguntou a boneca.
—
Terá o tamanho duma casinha de caipira.
Emília
calculou logo que fosse algum boi tresmalhado mas, pela descrição que os
besouros fizeram, viu logo que não podia ser boi. De repente, teve uma ideia.
—
Escutem: o tal monstro não é preto?
—
Sim.
—
Não tem o couro enrugado?
—
Enrugadíssimo.
—
Não tem um chifre só no meio da testa?
—
Isso mesmo. Um chifre pontudo.
—
Come gente?
—
Não, só come capim e folhas de árvore.
Emília
pôs-se a refletir, com a mãozinha no queixo. Ou era unicórnio, animal fabuloso
que não existe, pensou consigo, ou era rinoceronte, e como Emília andasse com a
cabeça cheia de rinocerontes, de tanto ouvir Pedrinho ler as notícias do
rinoceronte que fugira do circo, imediatamente percebeu que se tratava do
mesmo.
—
É ele! — exclamou, em voz alta. — Que sorte tem Pedrinho! Quis um rinoceronte e
um rinoceronte apareceu!...
—
Ele quem? — indagaram os besouros, com as testinhas franzidas.
—
Ele! — repetiu a boneca, fazendo uma tal cara de pavor que os besouros se
puseram a tremer. — Ele é ele, não sabem?
Emília
teve preguiça de ensinar àqueles burrinhos o que era um rinoceronte. E para
ainda mais os assustar, fez outra cara horrendíssima e repetiu em tom
cavernoso:
—
Ele!...
Os
dois besouros desmaiaram.
Emília
deixou-os lá e voltou para casa sem pressa nenhuma, pensando, pensando.
Ciganinha como era, costumava tirar partido de tudo. Por isso estava se
tornando a boneca mais rica do mundo. O acaso a fizera descobrir um
rinoceronte. Pois bem: Emília iria vender esse rinoceronte a Pedrinho...
Quando
entrou na varanda já trazia o seu plano formado.
—
Pedrinho — disse ela —, tenho um bom negócio a propor.
O
menino estava espichado na cadeira preguiçosa, lendo os últimos jornais
recebidos. Sem tirar os olhos da notícia que lia, respondeu:
—
Já vem ela com os tais negócios! Negócios de boneca — bobagens...
—
Trata-se dum negócio muito sério, Pedrinho. Quando você souber o que é, vai
arregalar um olho deste tamanho!
—
Pois então desembuche logo e não amole — disse ele, sem tirar os olhos do
jornal. — Estou lendo uma notícia muito interessante sobre o rinoceronte fugido.
Emília
fingiu-se interessada.
—
Sim? E que diz a notícia?
— Diz que tudo isto, toda esta história de rinoceronte fugido não passa duma
formidável peta. Não existe rinoceronte nenhum. O diretor do circo inventou o
caso apenas para reclame.
—
Que pena! — exclamou a boneca, fingindo tom compungido. — Seria tão bom se
fosse verdade...
—
Eu logo vi que era peta — disse Pedrinho, querendo bancar o esperto. — Percebi
desde o começo que se tratava duma formidável peta. Rinoceronte no Brasil!
Impossível. Esses animais não suportam o nosso clima.
Emília
sorriu de tal jeito que o menino desconfiou.
—
De que está rindo assim, boba?
—
Da sua esperteza, Pedrinho. Bem diz Tia Nastácia que você é um alho...
—
Muito obrigado pelo elogio; mas, alho ou cebola, deixe-me em paz. Olhe, Emília,
vá ver se eu estou no pomar, ouviu?
—
Então não quer fazer o negócio que venho propor?
Pedrinho
queria e não queria. Por fim, a curiosidade o venceu.
—
Que negócio é? Vamos, diga logo.
Emília
preparou-se para apresentar o negócio. Antes, porém, fez um rodeio.
—
Escute cá, Pedrinho. Quanto acha você que vale um rinoceronte no Brasil?
Responda!
O
menino tonteou com o disparate. Não podia haver pergunta mais absurda e boba do
que aquela. Ficou danado.
— Foi para isso que me veio interromper a leitura do jornal? Ora, vá lamber
sabão, ouviu?
Novo
sorriso finório da boneca, que disse:
—
Paz, paz! Não se queime. Responda à minha pergunta. Dê um preço qualquer.
—
Não amole, Emília. Se continua a insistir, leva um peteleco.
—
Não sabe — disse ela. — É natural. Um menino que jamais saiu do Brasil, que não
esteve nem no Rio de Janeiro, é natural que não saiba o preço dum rinoceronte.
Está desculpado...
—
Bobagem! — exclamou Pedrinho, queimado. — Então é preciso ter saído do Brasil,
ter viajado pelo mundo, para saber uma coisa à toa como essa? Basta um pouco de
raciocínio.
—
Pois raciocine e responda à minha pergunta.
—
Vale contos de réis. O valor das coisas depende da raridade delas, diz vovó.
Numa terra onde haja centenas de rinocerontes, um deles vale... vale quanto?
Vale o mesmo que um boi aqui ou uma vaca. Mas em terra onde não há nenhum, vale
o que for pedido pelo seu dono. Eu, por exemplo, se fosse rico, era capaz de
dar até trinta contos por um rinoceronte.
—
Bom. Se fosse rico, dava trinta contos. E quanto dá sendo pobre? Tinha coragem
de dar por um deles o carrinho de cabrito?
Esse
carrinho de cabrito constituía o orgulho do menino. Fora presente do Manuel
Carapina, um carpinteiro que passara lá uns dias, reformando o assoalho da
casa. Pedrinho dava mais valor ao carrinho do que a todos os coches dourados de
todos os reis da Terra — pela simples razão de que o carrinho lhe pertencia e
os coches pertenciam aos reis. Mas um rinoceronte era um rinoceronte, de modo
que a resposta do menino foi a que podia ser.
—
Um rinoceronte vale todos os carrinhos de cabrito do mundo inteiro — disse ele.
—
Pois eu tenho um belo rinoceronte à venda e se você quiser trocá-lo pelo
carrinho, o negócio está feito.
—
Basta! — gritou o menino. — Se continua a amolar-me com essa história, vou lá
no seu cantinho e quebro todos os seus brinquedos. — Disse e absorveu-se de
novo na leitura dos jornais.
Emília
não contara com aquela saída. Percebeu que nem Pedrinho, nem ninguém no mundo
jamais acreditaria que ela realmente tivesse um rinoceronte para vender — e
desse modo estava arriscada a perder um grande negócio, talvez o melhor negócio
de sua vida...
CAPÍTULO 9: EMÍLIA VENDE O RINOCERONTE
Emília
tratou de procurar outro freguês. Foi à cozinha e propôs o negócio à Tia
Nastácia. A negra, que estava depenando uma galinha, nem a ouviu no começo;
depois, como Emília amolasse, disse apenas, em tom de brincadeira:
—
Era só o que faltava, esse bicho de nome esquisito aqui para meter medo na
gente! Se fosse uma chocolateira eu fazia negócio, porque a minha está vazando.
Para
Dona Benta era inútil oferecer. A pobre senhora tinha horror a bichos,
sobretudo depois que teve de meter-se em pernas de pau no dia do assalto das
onças.
O
Visconde seria capaz de aceitar, porque os fidalgos adoram as grandes caças —
mas o pobre Visconde pertencia à classe dos fidalgos arruinados que só possuem
o seu título de nobreza. Nunca teve de seu nem sequer um tostão furado.
Narizinho...
Rabicó...
Estava
Emília na maior indecisão quando a Cléu apareceu.
—
Cléu — disse a boneca —, tenho um negócio excelente que ando a propor a todos e
ninguém aceita. Pedrinho não acredita, Tia Nastácia não quer, o Visconde não
tem dinheiro, com Rabicó e Narizinho ainda não falei.
—
Que espécie de negócio é? — perguntou a menina. — Venda ou troca?
—
Venda ou troca de um animal preciosíssimo que descobri na mata.
—
Vai ver que é um rinoceronte! — sugeriu Cléu.
—
Como sabe? Como adivinhou?
—
Esperteza — respondeu Cléu. — Estou lendo nos seus olhos, Emília, que você é
dona dum enorme rinoceronte de verdade.
—
Sério?
—
Seriíssimo!
Emília
foi examinar-se ao espelho e achou que realmente estava com cara de dona de
rinoceronte. Os sábios chamam a esse fenômeno “sugestão”.
—
Bem — disse Emília, de volta do espelho. — Você adivinhou, Cléu. Tenho mesmo um
rinoceronte para vender. Quer comprar?
—
Não. Mas posso associar-me a você no negócio. Arranjarei jeito de vendê-lo a
Pedrinho e metade do dinheiro é meu. Serve?
—
Não quero vendê-lo por dinheiro e sim trocá-lo pelo carrinho de cabrito.
—
Nesse caso eu terei metade do carrinho, as rodas, por exemplo — lembrou Cléu,
mais para amolar a boneca do que por desejar realmente possuir as tais rodas.
Emília
refletiu uns instantes. Depois disse:
—
E você mais tarde me dá de presente as rodas?
—
Dou, sim, dou desde já. Estou brincando. Não preciso, nem quero roda nenhuma.
Ajudarei você a vender o rinoceronte sem cobrar comissão nenhuma.
Emília
deu dois pinotes — e as duas foram ter com Pedrinho, que ainda estava lendo o
jornal.
—
Escute, Pedrinho — disse a boneca, tirando-lhe o jornal das mãos. — Vou ser
franca. O tal rinoceronte que fugiu do circo existe, sim, e por um acaso
descobri o lugar onde ele está. Juro! Ora, se você nos promete dar o carrinho de cabrito em troca, o negócio está
feito.
Pedrinho
estranhou aquele nos.
— Nos? — repetiu ele, admirado. — Nos, quem?
—
Eu e Cléu. Ela é sócia, tem metade do rinoceronte. O tom com que Emília falava
começou a convencer o menino.
—
Sério, Emília? Está falando sério?
—
Nunca na minha vida falei tão a sério, Pedrinho. Sei onde está o rinoceronte
fugido, mas só direi se você me
der...
— Nos der... — corrigiu Cléu.
—
Sim, se você nos der o carrinho.
Um
rinoceronte de verdade por um carrinho de cabrito era o melhor negócio do
mundo. Pedrinho não vacilou um instante.
—
Pois está fechado! — gritou ele. — Onde anda o bicho?
—
Na mata dos Taquaruçus.
—
Como o descobriu, Emília?
—
Os meus besouros espiões são uns amores. Tudo o que se passa no mato eles
correm a me contar. Inda há pouco vieram, muito assustados, dizer do
aparecimento dum animalão enorme, assim, de chifre único na testa — e percebi
que se tratava do rinoceronte fugido.
Era
espantoso aquilo. Pedrinho sentiu o seu coração palpitar com violência. Um
rinoceronte! Um rinoceronte de verdade, morando no sítio de Dona Benta! Não
podia haver nada mais fantástico...
—
Resta agora decidir o que faremos dele — murmurou o menino, atrapalhado.
—
Matá-lo, caçá-lo, prendê-lo, devolvê-lo ao circo, amansá-lo, conservá-lo?...
Que fazer?
—
Acho que vocês devem amansá-lo e fazê-lo entrar para o bandinho — sugeriu Cléu.
— Sempre achei que fazia muita falta aqui um bicho assim, dos grandes.
—
Impossível, Cléu — disse Pedrinho. — Esses animais, além de ferocíssimos e
traiçoeiros, são incomodamente grandes. Não cabem em parte nenhuma. E depois há
ainda vovó e Tia Nastácia — as duas maiores medrosas do mundo. Se conservarmos
o rinoceronte aqui no sítio, elas se trancarão em casa pelo resto da vida. São
bobíssimas. Mas é coisa que veremos depois. Agora temos de ir espiar o bicho.
Guiados
pela Emília, foram os três ao encontro dos besouros, que justamente naquele
instante estavam voltando a si do longo desmaio.
—
Onde está o rinoceronte? — perguntou-lhes Pedrinho, ao chegar.
Mal
acordados ainda, e ignorantes do que significava a palavra “rinoceronte”, os
pobres besouros olharam apatetada-mente para o menino.
Emília
interveio, explicando que só ela sabia falar com aqueles bichinhos.
—
Escutem — disse ela —, queremos saber onde ele está.
Os
besouros entenderam e deram indicações do ponto exato onde ele se achava
escondido.
Pedrinho,
que conhecia a moita de taquaruçus, encaminhou-se para lá.
Meia
hora depois chegaram todos a um ponto onde a moita se abria em clareira, tendo
dum lado a Figueira-Brava, debaixo da qual os bichos costumavam reunir-se em
assembleia, e do outro, a tal moita de taquaruçus. Chegaram, espiaram e nada.
—
Vejo lá adiante uma pedra preta — disse Cléu, apontando para um rochedo de dorso
redondo que os capins altos meio escondiam. — De cima talvez possamos avistar o
monstro.
Correram
todos para a tal pedra, treparam-lhe em cima e do alto espiaram por entre as
árvores em todas as direções. Nada! Nem sombra de rinoceronte.
—
Emília — disse Pedrinho, desapontado —, não há rinoceronte nenhum por aqui. Os
senhores besouros nos tapearam da maneira mais indigna. Como castigo, merecem
ser depernados de todas as perninhas. Se eu fosse você...
Pedrinho
não pôde concluir. A pedra mexeu-se! Não era pedra — era o próprio rinoceronte
que se tinha deitado naquele ponto para dormir...
O
pulo que eles deram merecia ir para um quadro na parede, com moldura de ouro,
pois foi o mais rápido e belo pulo que ainda se deu no mundo. Mas como o
rinoceronte era pesadão, enquanto se punha em pé os quatro caçadores alcançavam
o mais alto galho da Figueira-Brava, donde podiam vê-lo sem perigo nenhum.
—
Realmente! — exclamou Pedrinho, lá no seu poleiro. — É rinoceronte dos
legítimos. Vejam que formidável chifre tem na testa e que terrível couraça no
corpo...
—
A onça nós matamos — disse Narizinho —, mas este bicho cascudo não há meio.
Bala não entra, faca não entra. Como iremos nos arranjar?
—
O jeito é passarmos um telegrama para o Rio de Janeiro, contando às autoridades
que o rinoceronte que elas procuram está aqui. O pessoal lá tem canhões e
metralhadoras. Que acha, Emília?
Emília
estava de ruguinha na testa, sinal de “ideia-mãe” em formação.
—
Acho — respondeu — que não devemos mandar telegrama nenhum nem falar nisto a
ninguém. Do contrário o sítio se entope de gente grande e adeus! Gente grande
estraga tudo. Eu não aturo gente grande.
Os
outros também, mas o caso era muito especial, muito sério mesmo, de modo que
não havia remédio senão pedirem socorro à gente grande. Pelo menos Dona Benta
tinha de ser avisada. O sítio, afinal de contas, era dela; o rinoceronte
invadira a sua propriedade — natural pois que, como dona, ela resolvesse o
caso. E foi decidido darem parte a Dona Benta do extraordinário acontecimento.
Mas
como descer da árvore com aquele perigo chifrudo embaixo? O rinoceronte se
havia posto de pé, embora sem mostrar intenção nenhuma de afastar-se dali.
Tosava
as copas dos arbustos vizinhos e mascava as folhas com um sossego de boi de
carro.
Quem
salvou a situação foi a boneca.
—
Tenho cá no meu bolsinho do avental uma isca do pó de pirlimpimpim. Se não
perdeu a força, poderá levar-nos até ao terreiro.
Pedrinho
arregalou o olho. Pó de pirlimpimpim no bolso da Emília? Como isso? Será que a
boneca virará gatuna?
—
Não furtei coisa nenhuma — protestou Emília, percebendo na cara de Pedrinho a
desconfiança. — Não sou nenhuma ladrona, fique sabendo.
—
Como então obteve esse pó?
—
Muito simples. Quando fomos ao País das Fábulas e você me deu a pitada que eu
devia tomar, tomei só meia pitada. O resto guardei no meu bolsinho para o que
desse e viesse. Chegou agora a ocasião.
Foi
uma grande alegria. Graças à providência da boneca iam todos salvar-se daqueles
apuros. Mas no bolso da Emília só se encontrava meia pitada. Dividida entre
quatro, caberia um oitavo de pitada a cada um.
—
Bastará, Pedrinho? — perguntou Cléu.
—
Basta. Com um oitavo iremos parar justamente no terreiro da casa.
Assim
sucedeu. Tomaram a pitadinha do pó maravilhoso e imediatamente se acharam no
terreiro do sítio. Dona Benta estava na varanda, conversando com Tia Nastácia
sobre assunto agrícola — um pé de couve que Rabicó havia tosado na horta.
—
Esse Marquês duma figa está precisando mas é de ir para o forno — dizia a
preta, que nunca tomara muito a sério a fidalguia do leitão. — Nesse andar,
protegido desse jeito pelos meninos, acaba virando aí um cachaço inútil, que
ainda nos há de dar muito trabalho. Mas vá a gente falar nisso a Narizinho! A
casa cai...
Nesse
momento surgiram no terreiro os meninos. Detiveram-se um instante, cochichando
entre si, e depois se encaminharam para a varanda.
—
Temos novidade — resmungou Tia Nastácia. — Pedrinho está de mão no bolso e
Emília, de ruguinha na testa. Esses sinais não falham. Credo!
Pedrinho
subiu à varanda e, sem nenhum preparo do terreno, foi contando a Dona Benta a
história do rinoceronte encontrado.
—
Quê? Um rino... — repetiu a velha sem poder concluir a palavra.
—
...ceronte, vovó, um rinoceronte real de chifre único na testa e aquela couraça
duríssima no corpo. Está lá perto da Figueira-Brava.
Dona
Benta olhou para Tia Nastácia com ar de quem pede misericórdia.
—
Um rinoceronte! — gemeu a boa senhora, com voz moribunda. — Era só o que
faltava, santo Deus! Que irá ser de nós?...
A
negra, que nada sabia a respeito de rinocerontes, ofereceu-se para ir espantar
o bicho com o cabo da vassoura. Mas quando Narizinho lhe mostrou, na História
natural, o retrato dum desses paquidermes e lhe explicou que tamanho tinham e
que terrível era o chifre que possuem no meio da testa, a pobre criatura pôs-se
a tremer da cabeça aos pés.
—
E agora, sinhá? E agora, sinhá? — murmurava, no meio dos credos e figarabudos e
pelo-sinais que não cessava de murmurar e desenhar na cara e no peito.
—
Agora? — respondeu Dona Benta, depois de refletir uns instantes. — Agora temos
que avisar a polícia do Rio para que tome providências, e enquanto isso ninguém
tem ordem de sair desta casa. Dizem os naturalistas que o rinoceronte é talvez
a fera mais traiçoeira e perigosa da África. Se apanha um de nós!...
Emília
quis meter a sua colherzinha torta e começou:
—
Dona Benta, eu acho que... Mas foi interrompida.
—
Pelo amor de Deus, Emília, não ache mais coisa nenhuma. É por causa de tantos
achados que vivo aqui de susto em susto, com a alma na boca, atacada por onças
e agora até com feras africanas perto de casa...
Emília,
desapontada, botou-lhe a língua, logo que a velha voltou as costas.
CAPÍTULO
10: O RIO DE JANEIRO É AVISADO
Dona
Benta enviou um telegrama para o Rio de Janeiro que dizia assim: “Meus netos
acabam de informar-me que o famoso rinoceronte, que andam procurando pelo país
inteiro, acha-se escondido nas matas deste meu sítio. Encarecidamente peço
providências imediatas. Benta de Oliveira”.
Cléu,
a quem ela ditara o telegrama, observou que era bom mudar a assinatura para Dona Benta de Oliveira, avó de Narizinho e
Pedrinho e dona do Sítio do Pica-Pau Amarelo, pois do contrário lá no Rio
todos ficavam na mesma. Bentas de Oliveira há muitas e “meus sítios” também há
muitos.
Dona
Benta concordou.
—
Façam como quiserem, mas que o telegrama siga quanto antes. Chamem um camarada
do compadre Teodorico para o levar à cidade, no galope.
O
telegrama foi passado naquele mesmo dia. Na manhã seguinte veio a resposta:
“Seguem forças armadas sob comando detetive X B2.”
Fazia
dois meses que o governo se preocupava seriamente com o caso do rinoceronte
fugido, havendo organizado o belo Departamento Nacional de Caça ao Rinoceronte,
com um importante chefe geral do serviço, que ganhava três contos por mês e
mais doze auxiliares com um conto e seiscentos cada um, afora grande número de
datilógrafas e “encostados”. Essa gente perderia o emprego se o animal fosse
encontrado, de modo que o telegrama de Dona Benta os aborreceu bastante. Em
todo caso, como outros telegramas recebidos de outros pontos do país haviam
dado pistas falsas, tinham esperança de que o mesmo acontecesse com o telegrama
de Dona Benta. Por isso vieram. Se tivessem a certeza de que o rinoceronte
estava mesmo lá, não viriam!
Certa
manhã, quando Tia Nastácia se levantou de madrugada e foi abrir a porta da rua,
deu com o animalão a vinte passos de distância, olhando para a casa com os seus
olhos miúdos. A negra teve um faniquito dos de cair desmaiada no chão. Ouvindo
o baque de seu corpo, todos pularam da cama — e foi uma dificuldade fazê-la
voltar a si. Desmaio de negra velha é dos mais rijos. Por fim, acordou e, de
olhos esbugalhados, disse num fiozinho de voz:
—
O canhoto já foi embora?
Ninguém
sabia do que se tratava, porque ninguém ainda havia olhado para o terreiro.
—
Que canhoto é esse? — indagou Dona Benta.
—
O tal de um chifre só na testa — respondeu a negra.
—
Estava aí fora quando abri a porta...
Só
então os meninos espiaram pela janela e viram que o rinoceronte estava, de
fato, no terreiro. Mas quieto, de cara pacífica, sem mostra nenhuma de ânimo
agressivo. Olhava para a casa com toda a atenção, como se entendesse de
arquitetura rural — isto é, de arquitetura de casas da roça. Depois, mansamente,
dirigiu-se à porteira e lá se deitou de atravessado.
—
Pronto! — exclamou Narizinho. — Atravessou-se na porteira e quero ver agora
quem entra ou sai. Estamos bloqueados...
A
aflição de Dona Benta aumentou. Viu que, de fato, estavam com a saída do sítio
bloqueada por aquele monstruoso animal que parecia não ter a mínima intenção de
afastar-se dali.
Nesse
momento viram um grupo de homens que se aproximavam.
—
São eles! — gritou Cléu. — São os homens da polícia secreta que receberam o
nosso telegrama. Secretas a gente conhece de longe!...
E
eram. Era o famoso grupo dos Caçadores do Rinoceronte, que se formara logo em
seguida à fuga do misterioso paquiderme e que vinha percorrendo o país inteiro
em sua procura. Comandava-os o espertíssimo detetive X B2, que tinha lido todos
os fascículos das Aventuras de Sherlock Holmes existentes nas livrarias. Esses
homens traziam consigo numerosas armas e armadilhas próprias para caçar
rinocerontes — mundéus desmontáveis, ratoeiras de gigantescas proporções, correntes
de aço, um canhão-revólver e uma metralhadora. A única coisa que não traziam
era intenção real de apanhar o monstro.
Assim
que chegaram ao pasto do sítio e deram com o enorme paquiderme atravessado na
porteira, começaram a discutir se atiravam ou não. Um queria que se empregasse
o “mundéu desmontável”. Outro queria que se armasse a “ratoeira gigante”. Por
fim, o detetive X B2 decidiu empregar o canhão-revólver.
—
Atirem — disse ele —, mas com pontaria que não venha a prejudicar os nossos
empregados.
Disse
e piscou. O que todos queriam era passar toda a vida caçando aquele mamífero.
Mas
a Emília, que tinha terríveis olhos de retrós, viu de longe a piscadela
cavorteira e percebeu a manobra.
—
Vão atirar e errar! — gritou ela muito contente, porque já estava criando amor
ao “seu rinoceronte” e não queria que lhe estragassem o couro com um furo de
bala; apenas admitia que o caçassem vivo.
Ao
ouvir aquilo Dona Benta protestou.
—
Então não quero! — disse ela. — Se esses homens não têm boa pontaria, as balas
podem passar por cima do alvo e virem quebrar algum vidro das nossas vidraças.
Não quero!... E voltando-se para a Cléu, que tinha muito boa letra e sabia
escrever com todos os Fs e Rs:
—
Escreva uma carta ao chefe daqueles caçadores dizendo que não admito que atirem
de lá para cá. O Visconde que leve a carta.
Cléu
escreveu a carta sem um erro, e pediu ao Visconde que a levasse. Como fosse
pequenininho, o Visconde podia passar por trás do rinoceronte sem ser percebido
— e ainda que fosse percebido e devorado não fazia mal, pois que era de sabugo
e havendo muitos sabugos no sítio, Tia Nastácia num momento fazia outro
Visconde.
O
nobre mensageiro nem se deu ao trabalho de passar por trás do monstro. Subiu
por cima dele como quem sobe um morro, e desceu do outro lado sem ser
percebido. Depois foi correndo entregar a carta. Chegou no instantinho em que o
artilheiro ia disparar o canhão.
—
Alto! — gritou o detetive X B2. — Deixe-me primeiro ler esta carta.
—
A dona da propriedade não quer saber de tiros daqui para lá. Diz que as balas
poderão quebrar os vidros das suas vidraças. Acho que ela tem toda a razão.
—
Nesse caso, que fazer? — perguntou o artilheiro.
—
Temos de passar para o lado de lá. Podemos colocar o canhão e a metralhadora na
escadinha da varanda. Desse modo, se houver balas perdidas, poderão apenas
alcançar algum macaco na floresta, lá longe.
Muito
bem. Mas como atravessar para o outro lado, com o canhão e a metralhadora, se a
única passagem era pela porteira, e o inimigo estava deitado ali, de través? O
problema tornava-se dos mais sérios. Requeria estudos. O detetive X B2
reconcentrou-se cheio de rugas na testa, a refletir. Refletiu e, depois de
muito refletir, disse:
—
Antes de mais nada, temos de construir uma pequena linha telefônica que nos
ponha em comunicação com a gente do sítio, a fim de que eu possa debater o caso
com a Senhora Dona Benta e agir de acordo com ela e os demais moradores. Assim,
por meio de cartas, a coisa levará toda a vida. Não há como o telefone para as
comunicações rápidas. Vou telegrafar para o Rio de Janeiro, pedindo a remessa
do material necessário para a construção duma linha telefônica.
Resolvido
isso, retiraram-se todos para a vila próxima, onde ficaram tocando violão e
contando casos pândegos até que o material encomendado chegasse. Isso levou um
mês. Mas afinal chegou, e o detetive deu ordem para que no dia seguinte os
trabalhos fossem iniciados.
Na
manhã do dia seguinte os moradores do sítio viram reaparecer no pasto os
caçadores do governo, seguidos duma turma de operários com rolos de arame,
postes e mais coisas telefônicas. Nesse dia, porém, o rinoceronte falhou de vir
deitar-se de atravessado na porteira, como era seu costume. O trânsito estava
completamente livre.
—
Ué! — exclamou o detetive X B2, muito admirado. — Para onde terá ido o malandro
do rinoceronte?
Dirigiu-se
à casa para falar com Dona Benta.
—
Como foi isso, Dona Benta? — disse ele, subindo à varanda. — Deixei o
rinoceronte deitado na porteira e agora não encontro o menor sinal do bicho.
Dona
Benta explicou tudo quanto sucedera durante as semanas em que eles estiveram
tocando violão na vila. O rinoceronte adquirira o hábito de passar o dia na
Figueira-Brava, só vindo deitar-se à porteira lá pelas três horas da tarde.
—
Chega sempre a essa hora, deita-se e fica a cochilar até à noite — explicou a
boa senhora. — É um animal bastante sistemático.
—
Bem — disse o detetive —, nesse caso teremos toda a manhã livre para
trabalharmos na construção da linha telefônica.
Dona
Benta arregalou os olhos.
—
Que linha telefônica é essa? — perguntou.
—
A linha que resolvemos construir para ligar esta casa ao nosso acampamento.
Como naquele dia o rinoceronte estivesse atravessado na porteira, impedindo a
passagem, eu não pude discutir com a senhora vários assuntos importantes. Tive
então a excelente ideia de construir essa linha, com os fios passando por cima
do “obstáculo”.
Dona
Benta admirou-se da complicação.
—
Sim — disse ela —, mas já que o senhor pôde chegar até aqui, creio que a linha
telefônica já não é mais necessária.
O
detetive sorriu da ingenuidade da velha e explicou que o material já havia
chegado e que, portanto, a linha ia ser construída. Terminou piscando o olho
vermelho e dizendo: — O Departamento Nacional de Caça ao Rinoceronte sabe o que
faz, minha senhora.
—
Pois façam lá como entenderem — concluiu Dona Benta. — Não entendo de tais
serviços, nem quero entender. Aqui estamos nós para prestar aos senhores toda a
ajuda possível. O que quero é que o quanto antes me livrem desse animalão. Mas,
meu caro senhor, esse negócio não está me parecendo sério...
O
detetive sorriu indulgentemente e respondeu:
—
É que a senhora não conhece as condições. Para nós é um negócio da maior
importância, visto como dele tiramos o pão de cada dia...
CAPÍTULO
11: INAUGURA-SE A LINHA
A
linha telefônica foi construída com todo o luxo, como é de costume nas obras do
governo. Os postes foram até pintados! Era a mais curta linha do mundo: com cem
metros de comprimento e dois postos apenas, um no terreiro da casa e outro no
acampamento dos caçadores. Um poste foi pintado de verde, outro de amarelo. No
dia da inauguração, porém, aconteceu um fato imprevisto: o rinoceronte não veio
deitar-se à porteira na hora do costume. Nem apareceu no dia seguinte, nem durante
toda a semana. Os caçadores tiveram de armar barracas e ficar ali esperando,
pacientemente, que ele se resolvesse a voltar.
Por que isso? Porque ficava sem jeito inaugurarem a linha sem o rinoceronte atravessado na porteira. Sem rinoceronte poderiam entrar duma vez no terreiro e falar diretamente com a dona da casa. Mas precisavam justificar a construção da linha, e por isso resolveram esperar que o monstro voltasse.
Vendo
as coisas assim encrencadas, Emília resolveu intervir. Foi à Figueira-Brava
pedir ao rinoceronte que não desapontasse a gente do governo e continuasse a ir
dormir na porteira. Não se sabe de que argumentos a boneca usou; o que se sabe
é que no dia seguinte, exatamente às três da tarde, o rinoceronte veio de novo,
pachorrentamente, deitar-se de atravessado na porteira.
Houve
vivas de entusiasmo no acampamento dos caçadores. Podiam, enfim, inaugurar a
linha.
Trlin, trlin... soou na varanda a campainha do aparelho.
—
Vá atender — disse Dona Benta ao Visconde, que estava cochilando por ali.
—
Eu atendo — gritou Cléu, que tinha muita prática em falar ao telefone. E numa
vozinha muito clara e espevitada atendeu: — Alô! Quem fala?
—
Fala aqui o detetive X B2, chefe do Departamento Nacional de Caça ao
Rinoceronte — respondeu uma voz grossa. — E quem está falando aí?
—
Aqui fala Cléu, por ordem da proprietária da casa, Dona Benta Encerrabodes de
Oliveira, avó de Narizinho, Pedrinho e Rabicó. Que deseja Vossa Rinocerôncia?
—
Desejo participar à dona da casa que a linha telefônica está concluída e que
agora podemos discutir as operações necessárias à caçada do rinoceronte, tendo
o gosto de fazer com que as nossas palavras passem bem por cima dele sem que o
bruto perceba, ah! ah! ah!...
— Mas por que não discutiu isso durante a semana em que o rinoceronte andou sumido e a passagem pela porteira estava completamente franca? Acho que Vossa Rinocerôncia perdeu um tempo precioso.
—
Menina — respondeu, meio ofendido, o detetive X B2 —, não se meta no que não é
da sua conta. O governo sabe o que faz. Quero falar com a dona da casa.
Cléu
tapou com a mão o bocal do telefone e voltou-se para Dona Benta.
—
Ele quer falar com a senhora mesma.
Mas
a velha não estava pelos autos. Considerava aquela gente uma súcia de idiotas,
um verdadeiro bando de exploradores.
—
Diga-lhe que não me aborreça. Estou muito velha para andar servindo de
instrumento a piratas.
Cléu
deu o recado, com outras palavras para não ofender o governo, e então o
detetive X B2 explicou que necessitava da autorização de Dona Benta para
construir outra linha...
—
Segunda linha telefônica? — indagou Cléu, admirada.
—
Não, menina abelhuda. Agora será uma linha de transporte aéreo, que nos permita
levar para aí as nossas armas e bagagens. Só assim poderemos assestar o
canhão-revólver e a metralhadora na escadinha da varanda, de modo a abrir fogo
de barragem contra o inimigo, sem dano para os vidros das vidraças de Dona
Benta.
—
E foi só para pedir tal licença que os senhores levaram tanto tempo construindo
esta linha telefônica? — perguntou Cléu, admiradíssima.
—
Não discuta os nossos processos, menina impertinente — disse com cara feia o
detetive X B2. — O governo sabe o que faz, torno a dizer.
Cléu
tapou de novo a boca do aparelho, enquanto consultava Dona Benta.
—
Ele pede licença para construir uma nova linha — uma linha de cabos aéreos,
como aquela do Pão de Açúcar...
Dona
Benta respondeu que fizessem como entendessem e não a incomodassem mais.
Pedrinho
estava assombrado da esperteza daqueles homens. Iam construir uma linha de cabos
só para levar ao terreiro um canhãozinho e uma metralhadora!...
Muitos
rinocerontes já haviam sido caçados desde que o mundo é mundo, mas nenhum seria
caçado tão caro e com tanta ciência como aquele. Apesar de nunca saídos daqui,
tais homens bem que podiam mudar-se para a África, a fim de ensinar aos negros
do Uganda como é que se caçam feras...
Tanto
tempo levou a construção da linha de cabos aéreos que o rinoceronte se foi
familiarizando não só com as pessoas do sítio, como ainda com o pelotão de caçadores.
Várias vezes chegou até o acampamento onde farejava com curiosidade o
canhão-revólver e a metralhadora, sem saber para que serviam. Numa dessas vezes
ajudou os construtores da linha a arrancarem um poste que fora fincado torto,
trabalhando tal qual um elefante manso da índia.
Emília
tornara-se amiga íntima do animalão. Ia sempre à Figueira-Brava vê-lo pastar
arbustos, e com ele entretinha-se horas a ouvir casos da vida africana. Era um
rinoceronte de boa paz, já velho, com a ferocidade nativa quebrada por longos
anos de cativeiro no circo. Só queria uma coisa: sossego. Por isso fugira do
circo e viera esconder-se ali, no silêncio do capoeirão dos Taquaruçus.
—
Eles querem matar você — disse-lhe Emília certa manhã. — Trouxeram para esse
fim um canhão-revólver e uma metralhadora.
O
rinoceronte arrepiou-se todo. Jamais supusera que a atividade daqueles homens e
toda a trapalhada das linhas, que andavam assentando, tivessem por fim dar cabo
da sua vida.
—
Mas por quê? — indagou, em tom magoado. — Que mal fiz eu a essa gente?
—
Nenhum, mas você é o que os homens chamam “caça” — e o que é caça deve ser
caçado. Quando os homens encontram no seu caminho uma lebre, uma preazinha, um
inambu, um pato selvagem ou o que seja, ficam logo assanhadíssimos para matá-lo
— só por isso, porque é caça. Mas você não tenha medo que não será caçado. Hei
de dar um jeito.
—
Que jeito?
—
Não sei ainda. Vou ver. Mas não se incomode. Sou jeitosíssima! Dou um jeito de
afugentar os homens e você ficará morando toda a vida neste sítio. Já temos em
nosso bandinho um quadrúpede, o Marquês de Rabicó, que é leitão, conhece?
—
Não tenho a honra.
—
Pois é um senhor muito importante, apesar da sua covardia e gulodice (Emília
não teve a coragem de contar que Rabicó era seu marido). Tem quatro pés, como
você, mas nem um pingo de chifre. Com mais um companheiro, e este de formidável
chifre na testa, havemos de pintar o sete pelo mundo...
Emília
estava radiante com a ideia de ver o rinoceronte incorporado à família de Dona
Benta. Tia Nastácia é que iria ficar tonta de susto...
—
E que tenho de fazer nesse bando? — perguntou o rinoceronte, comovido com o
oferecimento.
—
Nada, por enquanto. Mais tarde, veremos. O pelotão dos caçadores já está com a
linha aérea pronta. Breve farão o transporte do canhão-revólver, da
metralhadora e do resto. Vão assestar essas armas na escadinha da varanda.
—
Devo então continuar a deitar-me na porteira, não é?
—
Está claro. Para que eles possam utilizar-se da linha de cabos aéreos é
indispensável que você esteja atravessado na porteira.
O
rinoceronte não entendia aquilo.
—
Mas por que já não transportaram esse tal canhão no tempo que passei sem ir
deitar-me à porteira?
—
Não sei — respondeu Emília, que de fato não sabia. — Dona Benta também não
sabe, nem Cléu, que foi quem conversou com o detetive X B2 pelo telefone, nem
Narizinho, nem Pedrinho, nem o Visconde, nem Rabicó — ninguém sabe. Diz Cléu
que são “coisas do governo”, um puro mistério.
O rinoceronte ficou pensativo. Devia ser uma bem estranha criatura esse tal
governo, que fazia coisas acima do entendimento até da Emília!
Às
três da tarde apareceu o animalão no terreiro, indo deitar-se no seu lugarzinho
do costume. Grande alegria entre os caçadores. Podiam, afinal, fazer o
transporte das armas e bagagens, e também de si próprios, utilizando-se da
linha de cabos aéreos, e em seguida dar começo ao ataque à fera. Um
entusiasmadíssimo telegrama foi passado para o Rio, nestes termos: “Trabalhos
linha aérea brilhantemente concluídos ponto iniciaremos hoje transporte armas e
bagagens ponto vitória segura ponto saúde e fraternidade”.
Os
jornais publicaram a notícia com grandes elogios aos heróicos caçadores do
rinoceronte, que tão bravamente arrostavam os maiores perigos a fim de limpar o
solo da pátria daquele perigosíssimo animal. O detetive X B2 foi chamado
“impertérrito”, e outros lindos adjetivos que a imprensa só usa para homens de
pulso e tremendos heróis do mais alto calibre. Choveram telegramas de parabéns
pela beleza dos trabalhos realizados.
Às
três da tarde, logo que o rinoceronte se atravessou na porteira, a linha de
cabos foi posta a funcionar. Primeiro passou, pendurado em carretilhas, o
canhão-revólver. Depois a metralhadora. Depois passaram as munições, a bagagem,
as violas e, por fim, os caçadores.
Dona
Benta viu, com má cara, toda aquela gente encher o terreiro. Já andava enjoada
deles, e quando Tia Nastácia falou em lhes oferecer um café com bolinhos, não
consentiu.
—
Nada de comedorias — disse ela. — Do contrário esses heróis nunca mais me
abandonam o sítio.
—
É isso mesmo, sinhá — tornou a preta. — O meu cafezinho parece que tem visgo.
Enquanto
os homens descansavam, um tanto desapontados de não aparecer o café com
bolinhos, Emília foi secretamente à caixa das munições e trocou a pólvora que
lá havia por farinha de mandioca. Em seguida, mandou pelo Visconde um recado
muito comprido ao rinoceronte, o qual terminava assim: “... e quando eu soltar
um assobio, você levanta-se e dá uma investida de rinoceronte selvagem contra
esses homens”.
—
E se o rinoceronte errar e investir também contra algum de nós? — objetou com
muita sabedoria o Visconde. — Porque aqui da casa ele só conhece você.
Emília
refletiu um bocado. Depois:
— Diga-lhe para só chifrar os que não tiverem uma rodela de casca de laranja no peito.
Enquanto
o Visconde dava o recado, Emília foi ao pomar com uma faca e trouxe meia dúzia
de rodelas de casca de laranja, que colocou no peito de cada morador da casa
sem perder tempo em explicar para que era. Só Tia Nastácia insistiu em saber as
razões.
—
Ah, não quer? — disse Emília. — Sua alma sua palma. Depois não se queixe — e
deixou-a sem rodela no peito.
—
Tudo pronto? — indagava ele.
— Tudo
pronto! — responderam os perguntados.
—
Então, fogo!
—
Parem! Parem! Não ainda! — berrou Tia Nastácia lá de dentro. — Estou procurando
algodão para botar nos meus ouvidos e nos de Dona Benta. Onde já se viu dar
tiro de peça na escadinha da varanda sem a gente estar com um bom chumaço de
algodão nos ouvidos? Credo!
Os artilheiros esperaram que os ouvidos das duas velhas ficassem perfeitamente
enchumaçados. Depois, ouvindo de novo a ordem de “Fogo!”, fecharam os olhos e
bateram na espoleta.
A
decepção foi completa. Em vez dum terrível Bum!
que atroasse os ares, o que saiu do canhãozinho foi pirão de farinha de
mandioca. O grande tiro falhara da maneira mais vergonhosa. Nesse momento
Emília, imitando Pedrinho, meteu dois dedos na boca e tirou um assobio
agudíssimo.
O
rinoceronte ouviu lá longe. Levantou-se de cara feia e veio, que nem uma
avalancha de carne, contra os seus perseguidores.
Soou
um berro de pânico misturado com a ordem do detetive X B2 de “salve-se quem
puder”. Todos puderam, porque todos se salvaram, como veados, pelos fundos do
quintal, imperterritamente. Naquela velocidade, em menos de uma hora estariam
no Rio de Janeiro.
Ao
alcançar a escadinha, o rinoceronte não encontrou um só inimigo, isto é, uma só
pessoa sem rodela de casca de laranja no peito. Minto. Encontrou uma: Tia
Nastácia, e ao vê-la sem rodela pensou que fosse cozinheira da gente do
governo. Abaixou a cabeça e investiu. A pobre preta mal teve tempo de
trancar-se na despensa, onde fez, no escuro, mais pelo-sinais do que em todo o
resto de sua vida.
—
Toma! — gritou a diabinha da Emília. — Quis ser muito sabida, não é? Pois
toma...
CAPÍTULO 12: RINOCERONTE FAMILIAR
A
vida no sítio mudou depois da entrada do rinoceronte para o bando. No começo
Narizinho e Pedrinho não podiam esconder certo medo. Quanto a Dona Benta e Tia
Nastácia, isso nem é bom falar. Tremiam de pavor sempre que à tarde, conforme
seu costume, o paquiderme vinha da Figueira-Brava postar-se no terreiro para
longas prosas com a Emília. Nem espiar pela janela espiavam, as coitadas. Mas
os meninos espiavam. Regalavam-se de espiar.
O
rinoceronte vinha e dava um bufo. Emília e o Visconde largavam incontinenti o
que estivessem fazendo e iam na volada ao encontro dele, para ouvirem histórias
da África. Depois se punham os três a brincar de esconde-esconde, de
chicote-queimado, de pegador. Emília logo inventou jeito de montar a cavalo no
chifre dele para passear pelo terreiro. O Visconde puxava o monstruoso
paquiderme por uma cordinha atada à orelha.
—
Que danada esta Emília! — dizia Narizinho, lá da sua janela, com uma inveja
louca de fazer o mesmo. — Não tem medo de coisa nenhuma...
—
Grande milagre! — retorquia Pedrinho, com uma ponta de inveja. — Se eu fosse de
pano, como ela, até em três rinocerontes montava ao mesmo tempo.
—
Não sei, não sei, Pedrinho — intervinha a Cléu, fazendo cara de dúvida. —
Emília é mesmo uma exceção completa. Isso de não ter medo me parece o de menos.
O que me assombra é o jeito que ela tem para tudo. Repare que neste caso do
rinoceronte foi quem fez sempre o primeiro papel. Foi quem o descobriu, foi
quem o amansou, foi quem passou a perna nos caçadores e os botou daqui para
fora a fugirem como veados. Ora, isto é muito para uma boneca, não acha?
Pedrinho,
que estava namorando a Cléu, não teve remédio senão achar que sim. Numa dessas
vezes Tia Nastácia criou coragem e entreabriu muito devagarinho a janela.
Espiou pela fresta.
—
Nossa Senhora da Aparecida! — exclamou, com os olhos pulando da cara. — Venha
ver, sinhá! A Emília a cavalo no tal boi de um chifre só e o Visconde puxando
ele por uma cordinha, como se fosse a coisa mais natural do mundo! Credo!...
Dona
Benta espiou e também assombrou-se.
—
Realmente! Para mim a Emília é alguma fadinha que anda pelo mundo disfarçada em
boneca de pano. Passear a cavalo num rinoceronte! Vá a gente contar isso lá
fora — ninguém acredita, nem pode acreditar...
—
E o Visconde, sinhá, repare o jeitinho dele, puxando o boi...
—
Não é boi, Nastácia, é ri-no-ce-ron-te — emendou Dona Benta.
—
Para mim é boi — insistiu a negra. — Não sei dizer esse nome tão comprido e
feio. Estou velha demais para decorar palavras estrangeiras. Mas repare no
Visconde, sinhá. Puxa o boi da África como se estivesse puxando um boizinho de
chuchu, daqueles que Seu Pedrinho costuma fazer...
E
as duas ficavam de boca aberta, admirando aqueles assombros. Um dia Narizinho
gritou lá da sua janela:
—
Emília, estou com vontade de perder o medo e montar nele também. Que acha?
—
Pois venha, boba! Não há bicho mais manso que este. A História natural de Dona
Benta está errada. Não vê como faço dele gato e sapato?
—
Sim, mas você é de pano e eu não. Sou de carne...
—
Por dentro; por fora é de pano como eu — os vestidos. Faça de conta que é de
pano inteirinha e venha. Ele tem reparado muito na sua ausência, está até
sentido. Venha e diga a Pedrinho e Cléu que venham também.
Narizinho,
Pedrinho e Cléu entreolharam-se com uma vontade louca de aceitar o convite.
—
Vamos? — propôs Narizinho, já meio decidida.
—
Vamos! — responderam os outros, corajosamente. Minutos depois estavam os três
repimpados no lombo do rinoceronte.
—
Falta Rabicó! — berrou a Emília. E pôs-se a chamar: — Rabicó! Rabicó! Não seja
bobo, venha também!...
Mas
Rabicó estava a duzentos metros dali, no pasto, espiando a cena por detrás dum
capim. Não vê que ia!
As
brincadeiras com o rinoceronte repetiam-se diariamente, por horas. Além das
passeatas, inventaram novas coisas, como, por exemplo, fazê-lo puxar o carrinho
de cabrito, com um passageiro de cada vez porque não cabiam dois. Ora ia
Narizinho, ora o menino, ora a Cléu. Emília nunca deixava o seu posto no
chifrão do monstro. Aquele lugar era dela só.
Um
dia Tia Nastácia não resistiu. Foi para o terreiro ver de perto a brincadeira.
Quando virou o rosto, viu Dona Benta que vinha vindo. Dona Benta também não
resistira à tentação.
Os
meninos fizeram-lhes uma grande festa.
—
Ora, graças que se estão civilizando! — berrou Narizinho. — Viva vovó! Viva Tia
Nastácia!
Nisto,
Cléu, que estava dentro do carrinho, pulou fora e disse:
—
Chegou sua vez, Dona Benta. Suba!
Era
um despropósito aquilo, coisa para desmoralizar a boa velha para o resto da
vida. Apesar disso a tentação foi forte e, como Cléu a ia empurrando, Dona
Benta de súbito decidiu-se. Ajuntou a saia e, sem olhar para Tia Nastácia (de
vergonha), subiu ao carrinho.
—
Viva! Viva vovó! — berraram, do alto do paquiderme, os meninos. — Toca, Emília!
Puxa, Visconde!
Emília
deu no rinoceronte com o seu chicotinho e o Visconde o puxou quatro vezes até à
porteira, ida e volta. Se houvesse por ali um aparelho de cinema podia ser
tirada a melhor fita do mundo...
Nesse
ponto da brincadeira, porém, aconteceu uma atrapalhação. Dois homens a cavalo
surgiram na estrada. Mais que depressa Dona Benta pulou fora do carrinho e
correu para a varanda.
Os
homens pararam na porteira e pediram licença para entrar. Entraram. Apearam-se.
Dirigiram-se para a varanda.
—
Desejamos falar com a dona da casa — disseram.
—
Sou eu a dona da casa. Que é que Vossas Senhorias desejam? Um dos homens era
alemão. O outro, brasileiro. Foi este quem falou.
—
Minha senhora — disse ele —, quero apresentar a VOSSA EXCELÊNCIA o Senhor Fritz
Muller, proprietário do circo de cavalinhos que está no Rio de Janeiro. O
Senhor Muller é dono dum rinoceronte que fugiu de lá faz uns meses. Depois de
longas pesquisas descobriu que o animal estava escondido aqui e veio comigo
reclamá-lo. Sou o seu advogado.
O
rinoceronte reconheceu o Senhor Muller e pendurou o focinho, muito triste, já
sem vontade de brincar.
—
Que é que há? — perguntou-lhe a boneca, ao ouvido.
—
Aquele homem louro é o meu dono — respondeu o paquiderme — e veio buscar-me.
Estou triste porque gosto muito mais daqui do que do circo...
Emília
abespinhou-se toda, lançando um olhar terrível para os dois intrusos. Refletiu
uns instantes e depois disse ao animalão:
—
Não se aborreça. Darei um jeito desses piratas fugirem daqui ainda mais
depressa que os caçadores. — Disse e desceu, dirigindo-se para a varanda, onde
ficou atrás duma cadeira, escutando a conversa dos homens com a velha.
—
Pois não haja dúvida — dizia Dona Benta. — Se o animal é seu, pode levá-lo,
apesar de que está muito acostumado aqui e não nos incomoda em nada.
—
Está bem — disse o alemão. — Vou levá-lo já.
Ao
ouvir tais palavras Emília não se conteve. Pulou de trás da cadeira, plantou-se
diante do homem, de mãozinhas na cintura, e disse:
—
A coisa não vai assim, meu caro senhor! Não basta ir dizendo que o rinoceronte
é seu. Tem que provar que é seu, sabe?
O
alemão ficou espantadíssimo daquele prodígio: uma bonequinha falando, e falando
daquele jeito, com tal arrogância.
—
Quem é esta “senhorrita”? — perguntou ele a Dona Benta.
—
Pois é a Emília, Marquesa de Rabicó; nunca ouviu falar dela? Foi quem descobriu
o rinoceronte no capoeirão dos Taquaruçus. Depois o vendeu a Pedrinho. Depois o
amansou e agora passa o dia a brincar com ele.
O
alemão estava cada vez mais assombrado. Apesar de ser homem vivido, e de ter
corrido o mundo inteiro com o seu circo, jamais observara fenômeno igual: uma bonequinha
tão pernóstica. Quis continuar a falar e não pôde. Estava engasgado.
Quem
falou dali por diante foi o seu companheiro.
—
Sim, sim, minha senhorinha — disse este —, o rinoceronte pertence aqui ao meu
amigo Muller, que o vem reclamar. Vejo que tanto a senhorinha como os outros
meninos já estão acostumados com o paquiderme. Infelizmente somos obrigados a
levá-lo para o circo.
Emília
empertigou-se mais ainda.
—
Vamos por partes — disse ela. — Antes de mais nada, quero que o senhor doutor
me prove que ali o Senhor Muller é mesmo o dono deste rinoceronte. Exijo
provas, sabe? Eu não uso anel de advogado no dedo, mas acho que em direito o
que vale são as provas.
Foi
a vez de o advogado abrir a boca, de espanto. A tal bonequinha sabia discutir
como um perfeito rábula.
—
Toda gente deste país sabe que o rinoceronte pertence ao Senhor Muller — disse
ele. — Os jornais deram mil notícias a respeito de sua fuga e da busca que os
homens do detetive X B2 andaram fazendo pelo Brasil inteiro. É um fato de
domínio público.
—
Perfeitamente — replicou Emília. — Não nego que esse cara-de-cavalo-melado...
—
Emília! — repreendeu Dona Benta. — Mais modos, hem?...
—
... seja dono dum rinoceronte. Mas quero que prove que o rinoceronte dele é
este, está entendendo?
O
advogado deu uma risadinha amarela.
—
Muito fácil provar, bonequinha. No Brasil não há rinocerontes. O Senhor Muller
foi o primeiro homem que trouxe um para cá. Esse um fugiu. Em seguida aparece
este rinoceronte por aqui. Logo, o presente rinoceronte é o mesmo rinoceronte
do referido Senhor Muller.
— Isso nunca foi prova, nem aqui nem na casa do diabo — contestou Emília. —
Quero prova de verdade. Alguma marca, algum sinal de nascença...
—
A marca é aquele chifre único que ele tem na testa — disse o advogado, piscando
o olho, como se Emília não soubesse que todos os rinocerontes daquela espécie
possuem sempre um chifre só.
Emília
não respondeu. Achou um grande desaforo querer aquele idiota fazê-la de boba.
Em vez de responder, disse apenas:
—
Espere aí.
O
advogado esperou, com um sorriso nos lábios, certo de que a tinha vencido na
argumentação. Enquanto esperava, ia trocando olhares velhacos com o Senhor
Muller.
Emília
foi mexer nos guardados de Pedrinho e trouxe uma pitada de pó de pirlimpimpim
num pires.
—
Vamos resolver esta questão dum outro modo — disse ela, ao voltar. — Tenho aqui
este tabaco que vou dividir em duas porções. O senhor toma uma pitada e ali o
“cara-melada...”
—
Emília!... — repreendeu de novo Dona Benta.
—
... toma outra. Se não espirrarem, é que o rinoceronte é o mesmo que andam
procurando.
O
advogado e o alemão acharam muita graça naquilo e, sem desconfiança nenhuma,
resolveram tomar a pitada de pó de pirlimpimpim, certos de que não espirrariam.
Era dose pequena demais para fazer espirrar dois homões como eles, acostumados
ao fumo forte. Tomaram a pitada, sorridentes e... fiunnn! — ninguém nunca soube onde foram parar! Sumiram-se no
espaço...
A
vitória da Emília foi saudada com berros e palmas. Até o rinoceronte aplaudiu
com urros, contentíssimo do feliz desfecho do incidente.
Dona
Benta deu um suspiro de alívio e voltou ao terreiro. Queria continuar o seu
passeio no carrinho. Mas não pôde. Tia Nastácia já estava escarrapachada dentro
dele.
—
Tenha paciência — dizia a boa criatura. — Agora chegou minha vez. Negro também
é gente, sinhá...
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