Era uma vez uma velha que vivia com o seu
netito numa pequena aldeia da serra.
Uma noite acendeu o lume para fazer a ceia e
disse ao rapaz que fosse buscar uma alcofinha de ovos que ela tinha guardado
debaixo da cama. O rapaz foi, mas, vendo uns olhos a luzir debaixo da cama,
começou a gritar de terror:
— Ó minha avó, venha cá ver! Estão aqui uns
olhos que metem medo, venha cá, venha cá!
A velha pegou na candeia e foi ver. Realmente
encontrou lá um homem com cara de ladrão, mas não se deu por achada. Fingiu que
não tinha medo nenhum, dizendo com muito bom modo:
— Eh! não te aflijas, rapaz. É um pobrezinho
que se recolheu em nossa casa. Venha cá, irmãozinho, venha aquecer-se ao meu
lume que deve estar com muito frio e comeremos todos uns ovinhos que vou fazer
para a ceia.
O homem saiu de lá, agradecendo e dizendo que
estava ali por causa do frio. Que passara, vira a porta aberta e por isso
entrara, mas que não queria fazer mal a ninguém.
A velha deu-lhe toda a razão, desfazendo-se
em cumprimentos, apesar de lhe ver uma grande faca debaixo do casaco. Foram
para a cozinha, sentaram-se ao lume e cearam todos três.
No fim da ceia disse a velha:
— Agora, meu irmãozinho, enquanto nos não dá
o sono, vou entretê-lo um bocado, contando algumas histórias que sei. Como sou
já muito velha, tenho visto tanta coisa que podia estar a contar casos um ano
inteiro, sem acabar nunca. Olhe, meu pai era muito bom homem, mas falto de
paciência para doenças como nunca vi outro. Tudo sofria com muita resignação,
menos uma qualquer doença, por pequena que fosse. Então custava-nos muito a
aturar, coitado! Um dia apareceu-lhe um tumor que muito o atormentou. Gritava
constantemente. Já não o podíamos ouvir e fomos com ele à cidade consultar o
médico. Como o tumor não estivesse ainda bom para ser lancetado mandou-nos lá
voltar daí a dois dias. Passados os dois dias voltamos à cidade, e todo o caminho
fomos a pedir ao nosso pai que tivesse paciência, que não gritasse porque era
uma vergonha. Primeiro, esteve muito bem; mas logo que o médico lhe levantou a
pele com a ponta da lanceta foi uma gritaria espantosa: "Aqui del-Rei!
Aqui del-Rei! Aqui del-Rei que me matam!...”
E a velha gritava com quanta força tinha.
O homem, muito aflito, dizia-lhe:
— Senhora, não grite tanto que lá fora os
vizinhos podem ouvir.
— Não há dúvida, meu irmãozinho. Já tenho
contado esta história a mais hóspedes que têm aqui dormido e a vizinhança sabe
o que é. Voltando ao meu pai: lá o acomodamos conforme pudemos para o médico
espetar a lanceta. Se ele não fosse tão desinsofrido era só uma dor, assim foi
mil vezes pior! Quando o médico enterrou a lanceta, o senhor nem pode imaginar
o que ali foi! Parecia o dia de juízo uma gritaria assim: "Aqui del-Rei
que me querem matar! Acudam-me! Acudam-me"
E a velha gritava com toda a força dos seus
pulmões ainda vigorosos.
O homem, atrapalhado e aflito, dizia:
— Não grite assim, tiazinha, olhe que podem
ouvir!
— Isso sim! Descanse, que não há perigo. O
meu pai, coitado, gritou muito, mas o pior foi ainda quando lhe espremeram o
tumor! Já se vê que não podia ficar assim e tinha de ser espremido. Não
imagina! Então é que foi o bom e o bonito!
E a velha pôs-se a berrar com toda a força:
— Acudam-me! Aqui del-Rei que me matam! Aqui
del-Rei!...
Ainda não tinha acabado e já a vizinhança lhe
batia à porta perguntando:
— Que é isto, vizinha, em que aflição se vê?!
Ela, muito descansada, foi abrir e respondeu
alto:
— Não é nada, não é nada! Então os vizinhos
apoquentaram-se? Ora não há, uma coisa assim! Era eu que estava contando a este
irmãozinho a história de meu pai.
E muito baixo foi dizendo:
— Agarrem aquele homem, que é ladrão. Estava
debaixo da minha cama e traz uma grande faca no cinto.
Os vizinhos entraram e prenderam o homem que
se não pôde defender, por ser uma coisa feita de surpresa. Foi levado para a
cadeia e guardado à vista pelo povo até ao outro dia o entregarem na cidade
onde mais tarde foi julgado e condenado, porque na verdade era um grande
ladrão.
E foi assim que a velha salvou o seu netito e
se livrou a si mesma da morte e do roubo, mercê da sua coragem, sangue frio e
muita esperteza.
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Origem: Portugal.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)
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