Houve um rei que encasquetou casar-se com a
moça mais bonita que houvesse. Seus oficiais já tinham percorrido todas as
cidades, e esmiuçado todas as casas, sem que descobrissem a beleza que
contentasse. Só faltava serem apresentadas ao rei as filhas dum lavrador, as
únicas que ele não tinha visto. Estavam as coisas nesse pé quando entrou na
igreja um rapaz de ar abobado, que olhou para a imagem duma santa e pôs-se a
chorar.
Perguntaram-lhe o que era, se estava sentindo
alguma dor.
— Não sinto dor nenhuma — respondeu o rapaz —
mas é que olhei para aquela imagem ali e senti grandes saudades de minha irmã,
que é o retrato da santa.
Todos comentaram aquelas palavras, uns
caçoando, outros a sério, e de tanto fala-fala o caso chegou aos ouvidos do
rei, o qual fez vir o moço à sua presença e lhe perguntou se era verdade o que
dissera na igreja.
— É, sim — respondeu o rapaz — tenho uma irmã
muito linda, o retrato daquela santa da igreja.
— E onde mora?
— Nas grotas do monte Escarpado, a dez mil
léguas daqui, por terra, ou cinco mil por mar.
O rei mandou preparar uma esquadra que
levasse os seus mensageiros ao pai da moça, a fim de pedi-la em casamento — e o
rapaz que dera a informação seguiu junto.
Quando a esquadra chegou à terra do monte
Escarpado, os mensageiros desceram, seguindo para a tal grota. A moça estava à
janela. Oh, que maravilha! Todos ficaram tontos diante de sua beleza. Os
mensageiros entregaram a carta do rei e o pai concordou em dá-la em casamento.
Feitos os preparativos, a linda criatura entrou num dos navios e a esquadra
partiu.
Em certo ponto da viagem o mar ficou tão bravo
que os emissários resolveram descer com a moça em terra, por algum tempo.
Recolheram-se à casa duma velha que morava por ali. Mas a velha não passava da
pior das pestes, pois, tendo ouvido a história da moça, convidou-a a um passeio
pela horta, e lá zuct! —
jogou-a dentro dum poço.
Quando chegou a hora do embarque a velha
levou à esquadra uma filha sua, muito feia, com a cara coberta por um véu, de
modo que os emissários não perceberam a troca. A esquadra partiu.
Assim que os navios desapareceram ao longe, a
peste foi ao poço e pescou a moça, cortou-lhe o cabelo, furou-lhe os olhos e
botou-a dentro dum caixão, que lançou ao mar. Esse caixão foi parar no reino do
rei ante» que os navios chegassem, sendo recolhido por um pescador.
Mas alguém que viu o pescador recolhendo o
caixão deu denúncia ao rei, o qual mandou investigar. As autoridades vieram,
abriram o caixão e muito se assombraram de ver dentro uma tão linda moça, de
olhos furados e cabelos cortados.
Lá levaram a cega para o palácio, mas por
esse tempo também os navios já tinham chegado e os emissários iam entrando com
a filha da velha. O chefe do grupo, muito desapontado, declarou ao rei:
— Fui alegre, senhor, e volto triste. Muito
esperei e pouco alcancei, e se nisto há culpa minha, pronto estou para sofrer o
castigo que Vossa Majestade haja por bem impor-me.
O rei, entretanto, era homem de bem. Apenas
disse:
— Ninguém tem culpa de nada. Prometi, cumpro.
Casar-me-ei com esta moça feia.
E casou-se na maior tristeza, vestido de
luto. Só depois disso é que lhe apresentaram a moça de olhos furados. Mas o
irmão dela, que estava presente, reconheceu-a de pronto e contou ao rei o
desembarque no meio do caminho, a ida à casa da velha, o passeio da velha pela
horta e por fim falou da substituição da sua irmã pela filha da velha.
O rei mandou trazer a velha à sua presença. A
peste negou tudo e até renegou a própria filha, dizendo que nunca tinha visto
semelhante feiura. Mas a parecença de traços entre a mãe e filha era muito
grande para que alguém pudesse ter a menor dúvida, e o rei deu ordem para que
cortassem os cabelos e furassem os olhos da velha.
Assim que isso foi feito, os olhos da moça
ficaram perfeitinhos, e sua cabeleira cresceu num instante. Virou uma criatura
ainda mais formosa do que havia sido. Estava tudo salvo. As duas embusteiras
foram lançadas ao mar e o rei viu-se, finalmente casado com a criatura mais
linda que havia.
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Ano de
publicação: 1922.
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)
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