Naquela serena tarde de primavera, a princesa
descera com as pequeninas aias e a camareira-mor as escadas de mármore branco e
de mármore róseo do suntuoso palácio real.
Era numa corte de complicada pragmática. Os
movimentos eram feitos consoante regras antigas; cada passo, cada mesura, cada
sorriso, vinham marcadas no grosso livro que um mordomo-mor coligira, a exemplo
do que fizera um imperador bizantino.
Apesar disso, porém, na corte esplendida havia um
pouco de mocidade. E detrás dos leques de varetas rendilhadas, os lábios
abriam-se em sorrisos os olhos franziam-se, quando estava distante a hirta,
camareira-mor.
Os bailes tinham solenidade como os ofícios divinos;
mas as cores frescas das raparigas, a ligeireza com que dançavam, a
graciosidade que florescia nas suas atitudes rapidamente desmanchadas,
logo substituídas, davam-lhes o ar de festas.
No grande palácio brilhante, as gentes andavam
lentamente, como em procissão. No rosto do mais alegre era preciso espelhar-se,
sombria, a tristeza que emagrecia a face pálida do rei. Era mister que ninguém
perturbasse, com o tinir fresco de um riso, a dor real. Se alguma vez as
donzelas deixavam passar o riso através das rendas finas dos seus leques, logo
a camareira-mor intervinha, severa, a repreender. Nos tapetes morriam os sons
dos passos; os grossos reposteiros abafavam o ruído das vozes. O silêncio era
eterno, como essa grande e aniquiladora mágoa que abatera a vigorosa mocidade
do Rei.
Em tempo, o palácio vibrara com o clamor das
festas; as músicas saltitantes riam nas amplas salas. Os vestidos claros, em
cujos decotes os peitos brancos se mostram, sublinhavam a alegria. Um bobo
pequenino e monstruoso punha um chocalhar de guiso em cada frase. E junto da
Rainha, loira, pálida, delgada, o Rei também sorria, a olhar a flor preciosa e
frágil que pelo braço levava, em movimentos musicais, como uma ave.
Junto à sua frescura luminosa, as joias pareciam
flores. E o diadema pesado, sobre os cabelos louros, era como uma aureola maior
nessa cabeça fina.
Ela também sorria, olhando os olhos escuros do Rei.
E pela boca vermelha havia como um palpitar de beijos. A festa continuava.
Havia no ambiente claro de tantas luzes, tantas joias, tantos olhos contentes,
uma alegria maior. Vaporizavam-se os movimentos. As rendas tremiam nos vestidos
das mulheres, nos gibões de seda dos gentis-homens. As conversas de amor faziam
arfar os seios... O Rei e a Rainha continuavam a sorrir-se, como dois amantes
rústicos, que se encontram na vinha, por um suave outono.
Uma noite, porém, a dor entrou nesse palácio claro.
Ligeiros, para não fazer ruído, como sombras, os cortesãos, as damas de honor,
as aias, passavam, murmurando rezas, ou trocando, baixinho, as impressões. Era
como um ciciar leve de brisa sobre um campo de flores. Os vultos cruzavam-se:
— Então?
— Na mesma...
— Impossível salvar-se...
— O físico não atina com o remédio...
Era a Rainha, que, como certos arbustos que morrem,
depois de florir, finava-se ao dar à luz a pequena princesa.
A dor trágica e calada do moço Rei! Nem uma palavra
se lhe ouviu da boca crispada. Nem um grito na lutuosa câmara onde carpiam as
senhoras da corte. De joelhos junto ao leito magnífico, onde se postara
depois de ter cerrado os largos olhos garços, o Rei chorava em silêncio. Os
frades diziam monotonamente, como um esvoaçar de insetos, as rezas rituais. Um
ou outro soluço, a desolação de um ai, cortavam a fúnebre quietude; mas o rei,
entre as suas as mãos finas e amarelecidas da Rainha, não tinha um grito, nem
uma palavra. Nos lábios da morta ainda havia o sorriso, esboçado a olhar para o
marido...
O Rei mandou retirar a todos do quarto. Quis ele
próprio vestir aquela que tanto amara. Beijou-lhe os olhos de pálpebras
azuladas, beijou os cabelos, que na imprecisa penumbra, tinham um brilho de
ouro... Outra vez caiu de joelhos.
Então as palavras de dor, abundantes, saíram dos
lábios tanto tempo represos. Disse-lhe o grande amor e a grande mágoa.
Prometeu-lhe viuvez eterna; que a sua alma se conservaria fechada, como um
relicário, a guardar a imagem quase divina da mulher primeira amada, única...
Longo tempo se conservou, as mãos frias da morta
entre as suas, no quarto silencioso, onde apenas os seus queixumes davam uma nota
de vida. No lampadário já se extinguiam as luzes, que, de quando em quando
lançavam, altas, dentadas, labaredas azuis e de ouro.
A madrugada clara entrou pelas janelas, como
um chilrear de pássaros. A vida renascia, musical, da noite escura. No coração
do Rei a dor fizera uma sombra eterna.
Entre os brandões acesos levaram o cadáver, vestido
por mãos mercenárias, que as do Rei nem tinham forças para o peso dos anéis...
Filas de bispos mitrados, graves e compungidos,
seguiam o féretro através as ruas da cidade e por estradas risonhas, até o
convento magnífico em cuja igreja jaziam todos os numerosos reis e rainhas da
casa real; seguiram os fidalgos como seus escudeiros de luto; seguiu, comovido,
o povo, que pranteou a morte daquela que fora linda e nas ruas sorria às
criancinhas pobres, que lhe pediam a benção...
Era uma comprida fila que se perdia nas corcovas da
estrada. As confrarias, os conventos mandaram os irmãos e os frades, com as
insígnias. E àquele radioso sol de agosto, que punha na atmosfera uma tremura,
tudo resplandecia, como uma apoteose. Brilhavam as lanças, brilhavam os ouros,
brilhavam os báculos e sobretudo refulgiam as insólitas pedrarias dos bispos,
caminhando majestosos e tristes. E o salmejar dos padres, ouvido ao longe,
perdia a nota de lamento: era como o último eco de um canto de vitória, no dia
glorioso...
No palácio quase deserto, o Rei ficara no quarto
vazio. Como arredá-lo de lá? De joelhos ainda, pensava talvez ter entre as
suas mãos os dedos finos da Rainha morta. De quando em quando um soluço parecia
estalar a garganta. E as lágrimas desciam pela face, iam morrer na barba
perfumada.
Olhava para o grande espelho, onde a Rainha
costumava ajeitar, à noite, os cabelos fartos. Lembrava-se de ter ali visto o
gesto grácil, aquele pó de ouro, e o corpo que tinha a frescura e a elegância
de uma flor que vai a desabrochar. Por que não guardam os espelhos as imagens
refletidas? Teria ali, viva, a Rainha, na atitude de compor as sedas das suas
tranças... Mas os espelhos deixam tudo escapar. Assim os lagos não guardam, no
seio ligeiro, volúvel, o voo curvo das pombas que fogem...
E para ali se quedava, vivendo do passado, como um
velho... Que importava que as guerras na fronteira distante assolassem o país?
Que tinha que os povos gemessem, que as catástrofes aluíssem as cidades
fulgentes ao luar e ao sol nas suas catedrais preciosas, que os rios, saltando
os leitos, invadissem as aldeias claras? Que importava a vida se ele só vivia
da morte? Mergulhassem os outros no passado os olhos cobiçosos e vivessem de
tanto esplendor de batalhas e de riquezas que listravam de clarões a história
do reino afortunado. Na miséria presente, que se recordassem!
A própria princesa entre as mãos das açafatas,
delicada e linda, ia vivendo, nos grandes olhos verdes, uma tristeza, como quem
sabia... No palácio severo, lúgubre, sem os tinidos das alabardas e os mantos
que formavam lagoas, nas alcatifas, ninguém se via. E ela, a pequena princesa,
não aprendera a rir e também não chorava.
Uma vez ou outra, ao atravessar silencioso e só as
câmaras, o Rei via a princesa; maquinalmente as suas mãos pálidas passavam
pelos cabelos louros da filha. E seguia, taciturno, sempre diante de si a
imagem daquela que morrera a sorrir e o esperava na cripta silenciosa do
austero templo gótico.
Ensinavam as aias à princesinha, não relatos cruéis
de contendas, nomes temidos dos reis seus avós, mas histórias maravilhosas.
Diziam-lhe que à noite, os grandes cálices das magnólias abriam-se, com um
ruído musical. E de dentro saíam cortes de fadas minúsculas, vestidas com
mantos tecidos com raios de luas-cheias. Pelo parque andavam livremente entre
as roseiras esplêndidas... Contavam-lhe que à meia-noite, as árvores se
desprendem da terra e vão beber, como os gados, às límpidas ribeiras. Ela sabia
que entre si os animais falavam, as andorinhas nos bicos dos telhados, os
cisnes brancos nas lagoas azuis, os pavões sobre as árvores, quando espalmam as
enjoalhadas caudas, as pombas brancas à beira dos poços, sobre o mármore
polido.
Conhecia os trabalhos ligeiros dos gnomos, que nas
cavernas escuras trabalhavam o ouro e o ferro; distinguia os alfagemes, que
afiam as espadas mortíferas, e os ourives, que afilagranam os metais.
Diziam-lhe as lendas floridas dos amantes, de cujos
túmulos saem sorrisos carregados de rosas, que num arco perfumado se abraçam a
misturar os perfumes...
Mas a pobre princesa, apenas núbil, não conhecia a
Vida, nem o Amor, nem o Riso.
Um dia, pois, a princesa, com as pequenas aias,
desceu ao jardim do suntuoso palácio.
Misterioso por tantas sombras, tantos caminhos que
se contorciam por entre rugosos troncos, tantas águas que cantavam nos mármores
brancos, tantas flores que dentre a verdura perfumavam...
De socalco em socalco abriam-se, em leques, as
escadarias; saltavam as águas das cascatas, despenhavam-se as trepadeiras
floridas, rastejavam as ervas, rosas de toucar e jasmins lançavam os ramos
frágeis.
Junto ao palácio o jardim era cuidado, como uma
cabeça garrida. As largas flores espargiam os aromas; os repuxos finos esguichavam
fios de prata, pelas ruas areadas passavam, majestosos os pavões solenes... Mas
depois, começava a floresta. As altas árvores lutavam, estorcidas: algumas
subiam, magras como pedintes, numa aspiração, muito direitas para o sol. Outras
torciam-se, esta sem forças, esgarçava-se mirrada. E a hera crescia, vestia os
troncos, até nas árvores secas vicejava, como uma mascara risonha numa face de
morto. Alguns troncos de seculares carvalhos continham grutas escuras. E os
pássaros, dentre os galhos, ao ruído dos passos, levantavam voo, alvoroçados.
Era o "Caminho das Rosas", que ali
levava. Rosas de toda a cor: ensanguentadas, brancas, cor de mel e de marfim,
cor de carne, rosas para florir peitos de danados e para tranças de primeiras
comungantes, rosas que abrem chagas no verde das roseiras, outras que chamam
beijos, como colos nus em festas iluminadas, rosas que têm toda a pureza de uma
noiva, outras toda a garridice de uma amante, rosas para túmulos, brancas,
mortas quase, rosas cheias de vida, que pareciam querer saltar das hastes, e
oferecer-se, lascivas...
Vinha do seu conjunto um perfume entontecedor. Por
tanto aroma lançarem no ar, nas noites quentes de agosto, algumas damas da
corte caiam, em delíquio. E todas tinham medo daquele pórtico encantado, que parecia
abrir para um paraíso, mas que podia descer a algum abismo.
Foi para ali, que, correndo atrás de uma borboleta,
se dirigiu a princesa. Em vão lhe prenderam as vestes de seda os espinhos das
roseiras, em vão a chamaram as pequenas aias; mesmo foi debalde que a voz seca
da camareira-mor gritou por ela, entre respeitosa e autoritária. A princesa, a
rir, corada, continuava atrás da grande borboleta, deixando tiras de seda nos
galhos em flor que, sacudidos, lançavam sobre a sua cabeça pétalas finas.
Ninguém, contudo, se atreveu a ir atrás dela.
Corria no palácio e na cidade uma lenda estranha
sobre a floresta, que continuava o jardim, depois do perfumado "Caminho
das Rosas".
Dizia-se que numa época remota, no tempo em que
pela cidade luminosa e culpada ainda passavam os santos ensinando a Lei e
edificando as gentes, governava o reino uma rainha pagã. No jardim murmuroso e
claro havia frêmitos de beijos. Nas águas dos tanques brilhavam corpos
ligeiros. Nas salas que as tochas e os lampadários iluminavam, mulheres quase
nuas dançavam levemente ao som de músicas alegres. E o vinho levava das taças
lavradas às bocas vermelhas a alegria e o Amor.
Por toda a parte havia flores, havia risos, havia
festas. Os cavaleiros, nas justas, paravam; morriam as centelhas em que ardem
as espadas no choque dos combates, e das bocas frescas saíam vozes a
cantar a formosura das florestas, a elegância das mulheres, a limpidez das
águas cantantes.
Um dia, um santo bispo entrou, andrajoso e cansado,
a pedir pousada; a rainha, ao vê-lo tão miserável, mandou-o recolher no canil,
com os criados das matilhas. Os cães, piedosamente, foram lamber os pés em
sangue do santo homem.
Mas a Rainha não o quis receber. Como de São João
Batista, as palavras subiam para as portas, ásperas e condenatórias. Toda a
noite a sua voz rude anunciava o castigo.
A Rainha, cansada de ouvir a voz rouca, mandou-o
açoitar e expulsar do palácio, em que reviveu a alegria. Mas durou pouco,
porque um dia uma língua de fogo saiu da terra, e agitou-se no ar, de sangue e
ouro; espavorida, toda a corte fugiu, para não mais voltar, para a floresta
misteriosa, que ninguém sabia ao certo onde acabava.
E todo o reino teve medo, como de um inferno, dessa
floresta que começava por uma estranha floração de rosas e terminava porventura
pelos eternos gelos, pelas labaredas, talvez...
Por ali seguira a princesa, a rir-se. Em vão o Medo
guardou durante séculos a misteriosa entrada. Em vão as rosas se agitaram, como
turíbulos, para a entontecer com o perfume, e os galhos a prenderam, e os
espinhos lhe rasgaram as rendas e as sedas. Foi correndo. A borboleta
enorme parecia uma joia a fugir por entre as flores. A princesa era como uma
ave, delgada e linda, atrás dela.
Subitamente a paisagem modificou-se. Do dia
glorioso que estava no jardim do palácio, nasceu um crepúsculo dourado, como um
velho damasco amarelo.
A luz parecia um convalescente a rir-se por cima
das árvores, pelos tanques quietos, pelos mármores. E as folhas das árvores
tremiam fazendo brilhar os filamentos de ouro. As flores tinham todas um aroma
ligeiro, como os frascos de perfumes, que durante longos anos se guardam,
vazios, nos armários fechados. Eram brancas todas as rosas e as pétalas
enrugadas, como peles finas de velhas, que viveram nos claustros, entre
cosméticos.
Quando a princesa deu pela mudança da luz e da
paisagem lembrou-se da lenda pavorosa que afastava as gentes da floresta e do
Caminho das Rosas.
— Onde estão as línguas ávidas do fogo?
perguntava-se. Onde os gelos que prendem e matam? Onde os dragões?
A paisagem era toda serena e de um riso triste.
Dir-se-iam anêmicas as flores pálidas, as anêmonas de seda velha, de cera
transparente, que por toda a parte deixavam cair, de cansadas, as pétalas
finas. E nos caminhos a areia preta era cruzada pelos veios das ervas
rasteiras, coberta pelos galhos dos arbustos, aqui sacudiam-se rosas, além os
gerânios frescos. Pelos troncos direitos das árvores a hera enroscava-se, a
subir. Nas curvas dos tanques, dormiam os nenúfares. Nos mármores dos poços as
trepadeiras cobriam os lavores. Havia um silêncio leve, por onde perpassava o
espírito de um canto, como um aroma que a brisa traz de longe.
Os templos tinham as portas abertas. A princesa
para eles entrou, a medo, a espreitar, afastando os loureiros e os mirtos, que
quase fechavam a entrada.
Ninguém. Apenas os deuses de mármore, calmos,
esperavam as oferendas. Mas as aras dos sacrifícios tinham umidade da lavagem
recente. As cinzas eram quentes; no templo de uma deusa havia grinaldas de
rosas e penas de pombas brancas soltas pelo chão.
Alguém ali vivia, pensava a princesa. Mas quem?
Gênio malfazejo, que a mataria, ou fada carinhosa? Seria ali que nas noites
claras viriam passear as cortes suntuosas que moram nos cálices das magnólias?
Habituada ao silêncio sombrio da corte não a
inquietava aquele silêncio leve. E continuava a explorar a encantada floresta,
onde parecia agitar-se um simulacro de vida.
Como um coração que vive da saudade dos tempos
remotos, assim ali parecia existir a repercussão de uma vida antiga. A cada
passo a princesa encontrava sinais de sandálias, flores cortadas, uma fita,
indícios de vida. Mas de onde partiam? Quem os deixava?
Viveria ali, naquele país de luz anêmica, uma corte
de feiticeiras trágicas, que esperam, para sair das cavernas, as badaladas lúgubres
da meia-noite? Mas não. As feiticeiras escolhem as montanhas altas e escarpadas
onde chegue o canto soturno do mar revolto, sem árvores que impeçam o voo
incendiário das blasfêmias e das imprecações para o céu sem lua e sem estrelas.
Ia caminhando a princesa. Via ribeiros claros que
escorregavam sobre seixos brancos; lagoas azuis, fachadas de templos,
quincôncios bordados por buchos altos. E as ruas seguiam entre filas de
altas árvores formando túnel, até serem cortadas por novas ruas, com árvores ou
flores.
Cansou-se a pequena princesa. Um vago terror a
invadiu. Quis regressar ao palácio, mas não podia. As ruas de árvores, os
templos, os ribeiros, as estátuas, sucediam-se. Parecia-lhe estar num
complicado labirinto. Como conseguir o mágico fio?
Uma noite, que parecia artificial, espalhara-se
pelo céu e envolvia as coisas. À tonalidade dourada, sucedia uma tonalidade
branca, como se tudo fosse feito de prata. A princesa sentou-se num banco,
a chorar.
Ouviu de longe como um passar de brisa leve por harpas
suspensas em árvores. Escutou. Era um canto que um coro fazia subir, ligeiro
como um fumo. Mais se aproximava. As vozes eram cansadas, mas límpidas.
Cantavam a vida e as festas, o rir das flores, a alegria das árvores na
primavera.
Cada vez se aproximavam mais. Dirigiam-se,
certamente, para o sítio onde ficara a princesa, um jardim junto de um templo
de mármore verde.
Já via as canéforas, com açafates de flores,
seguidas pelas escravas com tamboretes; depois a numerosa teoria de mulheres,
com archotes, que, ao queimar-se, iluminavam e perfumavam. Não havia homens.
Certamente que vinham para a festa ateniense das Tesmofórias.
Eram as habitantes da floresta. Caminhavam
lentamente, as cunháricas flutuantes sobre as túnicas amarelas. As hidróforas
traziam as urnas na cabeça. Num gesto gracioso, seguravam-as com uma das mãos;
os braços nus eram tão brancos como os mármores transparentes das urnas.
Quando viram a princesa, medrosa, a esconder-se
entre as árvores, a procissão parou, as vozes calaram-se, a meio do canto.
Em voz baixa concertavam entre si a resolução a
tomar. A princesa ouvia apenas um zumbido confuso, como os das abelhas, quando
nos dias quentes se cruzam pelos jardins floridos. Colada a um tronco, pálida
como um ex-voto de cera, viu com pavor aproximar-se dela uma das habitantes da
floresta. Era porém, tamanha a sua beleza e a sua gracilidade, que o medo
tombou do espírito da princesa. Pensava-se ver uma haste florida a andar.
Vagarosa, os seus gestos curvos e lentos pareciam fazer nascer no ar quieto uma
harmonia...
— Perdi-me aqui! Perdi-me aqui!
— De onde vens?
— Do palácio. Sou a princesa. As minhas aias não se
atreveram. Eu corri para apanhar uma borboleta. A borboleta fugiu. Fiquei sem
saber onde estava, que caminho tomar. Isto é tão lindo! Mas faz tanto medo não
se saber onde se está!
— E queres voltar? Deixaste teu pai e tua mãe...
— Minha mãe morreu. Meu pai não o vejo... quase
nunca. É um velho triste e duro, que não fala... Tenho medo da camareira-mor. E
as aias estão a chorar às escondidas dela como sempre... A vida é triste,
triste, no palácio...
— Preferes ficar conosco?
A boca fina pareceu sorrir-se. A princesa olhava
para as mais que se tinham acercado. Eram todas lindas e moças, mas sem
frescura, como as rosas que abrem pelas chuvas e ventanias.
— Se me quiserem. Se me quiserem.
— Pois ficarás! Ficarás! Vem conosco!
Pôs-se em marcha o cortejo, novamente. Entraram no
templo com a princesa.
E a princesa ali ficou, porque nos rostos se
conservava a mocidade e não havia a dor, nem o constrangimento. Tudo era claro
e sereno. E não voltou mais ao palácio, onde as aias choravam e a
camareira-mor, seca e hirta, tinha uma voz esganiçada e autoritária.
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