O
casamento de Luísa com Pedreira era a tábua de salvação na qual dona Maria
tinha os olhos pra preservar os filhos menores da miséria e da fome, pois o
marido, ao morrer, a deixara sem teto, sem vintém, e ainda por cima carregada
de dívida.
Apareceu,
no entanto, Pedreira, solicitando a mão de Luísa, a filha mais velha, e dona
Maria vira nele um anjo descido do céu, pra lhe fazer aquele pedido.
Pedreira
estava bem. Moço ainda, muito sisudo, abraçara a carreira comercial e seu nome
já gozava de crédito na praça.
Que
melhor partido podia desejar à filha, que, afinal de conta, não passava duma
pobre desvalida sem futuro?
A
velha agradecida, abraçou o ente providencial que surgia em momento tão aziago,
e, pressurosa, foi comunicar a boa-nova à filha, que a recebeu indiferente mas
sem recusar assentimento ao enlace.
Dona
Maria atribuiu a acanhamento aquela maneira de proceder e, sem mais se
preocupar, tratou de aprontar o enxoval de noiva. A pobre senhora se sentia tão
feliz ao costurar aquelas roupas brancas!
***
Contudo
os cálculos de bem-estar futuro tinham de ser contrariados.
A moça
não sentia inclinação a Pedreira, apesar da carinhosa atenção de que ele a
cercava, porque estava perdidamente enamorada dum malandrim da pior espécie,
que todas as noites fazia serenata embaixo de sua janela.
Esse
tipo era um tal Quincas Mimoso, sujeito de costume depravado, jogador,
desordeiro e libertino.
Mas o
que querem? A moça se deixou levar por sua presença agradável, requebro,
cantoria e, numa bela noite, quando faltavam apenas quinze dias pra se casar
com Pedreira, teve a fraqueza de deixar Quincas penetrar em seu quarto. E ele
ali se conservou até madrugada, roubando o único bem que a infeliz possuía, a
virgindade.
No dia
seguinte, passado o primeiro momento de verdadeira alucinação, ao deixar os
braços do amante, longe dos beijos capitosos, da deliciosa e embebedante
carícia, a moça compreendeu toda a gravidade de sua falta, todo o horror da
desgraça que a ferira. Ficou desonrada, no fundo abismo da perdição, onde
cegamente se lançara, não o tendo visto, enganada pela verdolente relva e pelas
florzinhas primaveris que lhe ocultavam as goelas escancaradas. Julgando haver
penetrado no Paraíso se despenhara no Inferno.
Não
podia aceitar o vantajoso casamento com o honesto Pedreira, esse casamento que
era o grande sonho de sua velha mãe, e que seria a salvação da toda a família.
Não queria enganar o digno moço, e mesmo receava o fazer. Pedreira, justamente
por ser escrupulosamente sério, o protótipo da honra e do dever, escudado em
sua dignidade, zelando a pureza de seu nome respeitado, se descobrisse sua
falta, seu crime, sua infâmia, como fatalmente sucederia, ó!, seria
justiceiramente inexorável e não perdoaria! O castigo que receberia seria a
morte.
E
Luísa não queria morrer. Moça ainda, cheia de sonho, ilusão e esperança, sem
ainda conhecer o mundo, amava a existência, e queria viver. Por isso não
trepidou. Tendo combinado com Quincas, tendo entrouxado toda a roupa e algumas
jóias de fantasia que possuía, abandonou a casa materna, deixando uma carta
relatando a sua mãe os motivos que a induziam a proceder daquela forma.
A mãe,
desesperada, se irritou contra ela, e em seu desvario, sem bem saber o que
fazia, cega de dor, louca de desespero, acabando de ler a carta, exclamou:
— Vás,
desgraçada, vás, sumas da minha presença! Me condenas, e a teus irmãozinhos à
miséria, porém Deus é justo e os anjos me ouvem! Assim como arrancas hoje o pão
da boca destas inocentes crianças, teus filhos, se os tiveres, comerão, um dia,
o pão amargo da esmola. É a praga que te rogo! Vás. Procures teu sedutor e
nunca mais apareças!
Luísa
foi viver com Quincas. Durante os primeiros seis meses, que deviam ser os da
lua-de-mel, sofreu horrores.
Sua
vida era um tormento Nem pancada o miserável lhe poupava!
No fim
de um ano pariu uma menina, e então cresceram as agonias da infeliz, pois já
não era a única a sofrer, mas também o fruto querido de sua entranha.
Esse
martírio durou três anos, até que um dia Quincas, estando numa orgia com
mulheres e indivíduos da pior espécie, entrou em questão com um deles e recebeu
certeira facada no coração, da qual resultou morte imediata.
Luísa,
apesar dos maus tratos que Quincas lhe dava, fez um enterro decente, e se
vestiu de luto, pois, por desgraça sua, amava deveras o infame.
Tal
sucesso, porém, e o trabalho contínuo e pesado a que se entregava, lhe tiraram
as forças, debilitaram o organismo e adoeceu.
Foi,
então, que a miséria se tornou atroz. Não podendo trabalhar, nenhum dinheiro
recebia, e muitos dias se lhe confrangia a alma, ao ver sua inocente filhinha
chorar de fome.
Um dia
a infortunada criança, vestida com uma camisa preta toda esfrangalhada, estava
sentada à porta, muito triste, e roendo uma casca de banana que encontrara na
rua. A criaturinha tinha fome! Apenas comera na véspera um pão duro.
Pouco
depois passou ali um homem bem trajado, cheio de jóias custosas e brilhantes,
entre as quais avultava uma bela corrente de relógio. Ao se lhe deparar aquela
triste cena, compreendeu tudo de relance. Condoído, meteu a mão no bolso do
colete e tirando uma moeda de prata de 1000 réis, a colocou na mãozinha da
criança, dizendo:
— Vás,
minha filha. Entregues este dinheiro a tua mãe, pra comprar pão.
E foi.
No outro dia o homem tornou a passar por ali, viu de novo a criança sentada à
porta e lhe deu nova moeda.
No
terceiro dia se repetiu a mesma cena.
Se
cumprira a praga materna, em tão má hora lançada. A filha de Luísa comia o pão
amargo da esmola!
***
Nesse
terceiro dia, porém, Luísa recebeu a visita de sua madrinha, que havia muitos
anos não via.
Era
uma velhinha, que, ao ver o estado miserável da afilhada, sentiu os olhos
cheios de lágrima. A abraçando, pediu contar como chegara àquela penúria.
A desgraçada
começou a chorar e desafogou toda a dor no seio da madrinha.
Referiu
a morte do pai, o projetado casamento com Pedreira, como se deixara seduzir por
Quincas, a terrível praga da mãe, o desmanche do casamento, e afinal os maus
tratos que sofrera de Quincas, a morte dele, sua enfermidade e até a esmola que
a filha havia três dias recebia dum transeunte.
Assim
que terminou a narração da desventura, a madrinha se ergueu e disse:
—
Minha filha, tudo isso te acontece por causa da praga que te rogou tua mãe. Que
coração, o de minha comadre Maria! Nunca pensei! Dizem, porém, que a madrinha
tem poder pra tirar da afilhada a praga que a mãe lhe lança. Assim, se Deus e
nossa senhora acharem em mim merecimento bastante, pela virtude que recebi, ao
te levar à pia do batismo, te tiro a praga que tua mãe te rogou!
Em
seguida a madrinha se retirou.
***
Luísa
teve curiosidade de conhecer a pessoa que todos os dias dava uma moeda a sua
filha. Por isso, no dia seguinte, se postou à janela, quando se aproximava a
hora do transeunte passar.
Não
tardou. Qual não foi o espanto, a confusão, ao ver que o generoso benfeitor de
sua filha era Pedreira!
Ele,
por seu lado, que não esperava a ver em tal lugar, ficou também perturbado.
Mas, formando imediatamente uma resolução, tomou nos braços a criança que
estava à porta, e entrou.
A
infeliz moça, ao ver o antigo noivo, que tanto a amara, com quem, se casaria e
necessariamente seria feliz, se sentiu morrer de dor, remorso, angústia e
desespero. Queria falar mas as palavras como a sufocavam, se misturando com a
lágrima e o soluço. Padecia horrivelmente naquele instante!
Pedreira,
porém, meigo, carinhoso, encetou uma conversa hábil e delicada. Sem proferir
palavra de condenação ou de censura, sem exprobrar o procedimento, conseguiu
que ela se acalmasse pouco a pouco, contando, enfim, toda sua horrível e
desoladora história.
Nesse
dia o digno negociante pouco demorou, mas tornou a voltar na manhã seguinte, e
assim todos os dias.
A
antiga camaradagem que havia entre ambos renasceu como outrora. Luísa se sentia
agradecida ao bom e generoso moço que a socorria sem que o parecesse, com jeito
e delicadeza encantadores.
Ao
cabo de um mês a moça, boa, forte, robusta, restabelecida das comoções e
necessidades que sofrera não era mais a criatura macilenta e faminta, que
agonizava num catre. Surgiu outra Luísa, bela, formosa, elegante, cheia de
carinho e gratidão.
Meses
e meses se passaram. Tendo se mudado a outro arrabalde, sempre por iniciativa
de Pedreira, fez a paz com a mãe, e viviam todos em harmonia.
Um
dia, quando já decorrera mais de um ano, depois que tornara a encontrar o
antigo noivo, já estando esquecido de todo o negro passado, Pedreira propôs
casamento, que ela aceitou, como se estivesse sonhando, sem bem poder acreditar
em tamanha felicidade.
Luísa
e Pedreira foram felizes, absolutamente felizes, cuidando do futuro, sem
recordarem os dias angustiosos que até sempre desapareceram na noite eterna do
eterno olvido!
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