Havia um mercador, que tinha três filhas, e
tinha por costume ir buscar fora da cidade uma renda todos os anos. Aconteceu
falecer a sua mulher, e tendo de ir receber a renda custava-lhe deixar as
filhas sozinhas. Disse então o mercador:
— Minhas filhas, eu preciso de ir receber a
renda do costume, mas está-me custando ir, para as não deixar sós.
As filhas responderam:
— Vá, meu pai, que não nos há de acontecer
nada; nós havemos-nos de fechar por dentro, e não se consente que ninguém entre
cá.
O mercador foi-se, fiado na palavra das
filhas. Havia fora da cidade uma quadrilha de ladrões, e o capitão deles andava
à espera da ocasião da partida do mercador. Assim que soube do dia em que o
mercador saiu da cidade, vestiu-se em trajos de velho pedinte, e quando
anoiteceu estava toda a sua quadrilha no canto da rua onde moravam as três
meninas. Veio o capitão bater-lhes à porta, e como estivesse chovendo, pediu
pousada do ar da noite. As meninas mais velhas compadeceram-se dele, e
queriam-no agasalhar; a mais moça disse:
— Não! lembrem-se da palavra que deram ao
pai; dê-se-lhe uma esmola, e ele que vá com Deus.
Respondeu a mais velha:
— A menina como mais criança não determina
nada aqui!
E o velhinho sempre entrou para dentro;
deram-lhe na cozinha uma enxerga e cordas para ele estender a roupa, e
puseram-lhe a ceia diante. As meninas depois de terem arranjado o velho, foram
também cear; eis senão quando o velho abriu a porta da cozinha e veio ter com
as meninas à mesa e deu-lhes três maçãs dormideiras, uma para cada uma comer à
sobremesa. Ficou vendo se as meninas as comiam; as mais velhas comeram as suas,
mas a mais moça não comeu e escondeu-a para o velho a não ver e não desconfiar.
Foram-se as meninas deitar e as mais velhas pegaram no sono muito depressa; mas
a mais nova não dormiu com medo, mas fingia também que dormia. Quando o ladrão
viu que estavam já dormindo, levantou-se e foi ao quarto das meninas, puxou um
alfinete real, chegou ao pé da menina mais velha e deu-lhe uma picada a ver se
estremecia. Ela não sentiu a picada. Fez o mesmo à segunda; não sentiu. A mais
nova com medo do ladrão a matar, fez-se dormindo, ele fez-lhe o mesmo e ela não
sentiu.
O ladrão trazia consigo uma espada, uma
pistola e uma mão de finado e pôs numa banca estas coisas todas. A menina mais
nova abriu os olhos para ver a determinação do ladrão, e tornou-os a fechar. O
ladrão acendeu o lume à mão do finado para as meninas ficarem mais pesadas no
sono, e correu as casas para arrumar o que tinha que roubar. Abriu o alçapão
que dava para a loja das fazendas, entrouxou o que quis, e abriu a porta da
loja, e saiu a chamar a sua quadrilha. A menina mais moça levantou-se ao mesmo
tempo que o ladrão saiu, viu as trouxas das fazendas prontas, e a toda a pressa
trancou a porta da loja. O ladrão que já vinha com a quadrilha, ainda se pôs
aos empurrões à porta, e dizia:
— Foi a mais mocinha que me enganou, e que
não comeu a maçã dormideira.
E começou a dizer que ela lhe havia de pagar
tudo. Teve ainda a confiança de tornar a bater à porta, pedindo à menina que
lhe desse a sua mão de finado. Ela respondeu de dentro, que a mão estava em labareda,
e que não sabia como a apagar. Disse o ladrão, que a deitasse numa tigela de
vinagre, que ela se apagava. A menina veio cá acima buscar a espada que o
ladrão tinha deixado, e disse-lhe:
— Aqui está a mão do finado.
Ora na porta havia um buraco em cima em que
cabia uma mão; e disse-lhe o ladrão:
— Meta a menina a mão pelo buraco.
— Se quer, meta a sua, que eu lhe darei a mão
do finado.
Vai o ladrão cai em meter a mão e a menina
traçou-a com a espada. Os ladrões foram-se embora, e o capitão com a mão
quebrada. A menina foi para o quarto onde as irmãs estavam dormindo, apagou no
vinagre a mão do finado, e ao mesmo tempo as irmãs começaram a estremecer, e
acordaram. A boa da menina fê-las levantar, contou-lhes tudo, e levou-as a ver
os sinais da desgraça em que estavam. Elas ficaram muito assustadas, e choraram
muito lembrando-se do que o pai diria quando chegasse e soubesse que lhe tinham
desobedecido.
Chegou o mercador da renda, e viu as filhas
aparecerem muito tristes. Pediu a menina mais nova a seu pai que a escutasse;
contou o que era passado e como se tinha livrado dos ladrões. O mercador chamou
então as filhas e disse:
— Daqui por diante daremos obediência a sua
irmã mais moça; eu com ser seu pai, farei o que ela determinar, porque venho a conhecer
que vos livrou da morte e de ficarmos desgraçados.
Quando, por fim de muitos anos, o capitão dos
ladrões, que tinha mandado fazer uma mão de ferro com engonços e andava de
luvas, vestido como qualquer senhor, estabeleceu um armazém defronte da casa do
mercador. Ora um dia o mercador, por lhe parecer boa pessoa convidou-o para ele
ir lá jantar. Ele aceitou de boa vontade, e as meninas ficaram satisfeitas do
pai convidar tão bom vizinho. A mais nova é que ficou muito triste, e o pai lhe
perguntou o que era. A menina respondeu que não gostava que o pai convidasse o
tal senhor para vir a sua casa. Chegou a hora do jantar e foram para a mesa; as
duas outras irmãs, já se sabe, muito contentes. Houve uma conversa, e neste
mesmo tempo o vizinho pediu em casamento a menina mais nova ao pai. O mercador
ficou muito satisfeito e disse que sim; mas a menina respondeu:
— Aqui o desengano, pai, que com ele não
quero casar.
O vizinho ficou aborrecido, e pediu a mais
velha, que ficou muito contente, e ele começou a dizer os bens que tinha, e que
morava em uns palácios longe da cidade. Chegou o dia do casamento, despediu-se
a menina mais velha, e montou no carro mais o marido para fora da cidade. Lá no
meio da estrada ele apeou-se, mais a mulher, pagou ao boleeiro para não saber
onde ele morava. Foram andando até que chegaram a umas casas metidas nuns
matos. Assim que a sua companhia o avistou, vieram com seus ouros e joias
oferecer à senhora, dizendo ele que era a sua mulher. Entrou com ela para um
quarto, e lhe deu um papel para escrever uma carta a seu pai, que ele notou,
dizendo que estava muito satisfeita com ver tanta riqueza e que mandava buscar
uma de suas irmãs para estar uns dias em sua companhia. Acabada a carta, que
ele arrumou, tirou então a luva e a mão de ferro e mostrou-lhe o braço maneta,
dizendo:
— Conheces quem me fez isto?
Ela respondeu-lhe que não.
— Bem sei que não tens culpa, mas o pagarás e
tuas irmãs também.
Acabado isto pegou na espada e degolou-a. No
fim de uns dias levou a carta ao sogro, que a sua mulher lhe mandava, e o pai
leu-a, e disse à filha do meio que fosse. O ladrão levou-a consigo, fez com que
ela escrevesse uma carta para vir a mais moça, e depois de a degolar, veio com
a carta. O pai mandou a última filha que tinha em casa; ela não queria ir, mas
para não desobedecer sempre se resolveu. Foi com o cunhado, que no meio da
estrada a fez apear, e depois de irem a pé por muito tempo, descalçou a luva e
mostrou-lhe a mão, dizendo:
— Tuas manas já pagaram; agora é a tua vez.
Chegaram a casa; os ladrões apareceram-lhe
todos, e ele disse:
— Façam de conta que é minha irmã.
Pôs ao pescoço da menina uma pera de ouro, e
disse:
— Podes ir a todos os quartos deste palácio,
menos a este.
Partiu com a quadrilha, mas assim que voltou costas,
a menina tirou a pera do pescoço e foi ao quarto dos mortos. Viu lá um menino
príncipe todo esfaqueado, que lhe disse:
— Esta casa é um covil de ladrões; o que faz
a menina por aqui? Olhe que eles estão aí a chegar.
A menina fechou outra vez tudo; botou a pera
ao pescoço, e nisto chega o cunhado.
— Fez o que lhe mandei?
— Fiz.
Ele olhou para a pera sem malha, ficou muito
contente; destinou-lhe serviços para ela fazer, e foi-se outra vez embora para
uma viagem de oito dias.
A menina tirou a pera, e foi ao quarto dos
mortos levar um caldo ao menino príncipe, que ficou são. Sentiram uns carros do
rei que levavam esterco e eles fugiram e foram ter com os carreiros para os
levarem para o palácio. Chegaram aos carreiros e perguntaram:
— Que novidades há nessa cidade?
— Ofícios dobrados pela falta do príncipe.
— O príncipe sou eu; e esta menina deu-me a
vida, na casa onde estava esfaqueado pelos ladrões. Agora, carreiro, deita
esterco fora do carro de trás, põe meia sebe e deita em cima o esterco, que nós
nos escondemos aí.
O carreiro assim fez; eram três carros e
puseram-se a andar. Os ladrões tinham encontrado um feiticeiro, e ele
ofereceu-se para ir para a sua companhia. Chegaram a casa, o capitão não
encontrou a menina, mas o feiticeiro logo lhe disse que ia fugida no carro de
trás.
Partiu um dos ladrões para a ir buscar;
chegou ao carreiro, mandou-o parar, e cavar no carro de trás até meio, e vendo
que não achava nada, foi-se. Os meninos passaram para o carro segundo. Chegando
a casa, disse o ladrão:
— É mentira; não achei ninguém, pois despejei
o carro até meio.
Disse o feiticeiro:
— Despeja o carro todo, que eles lá estão.
Parte o ladrão a toda a pressa, apanhou o
carreiro, mandou despejar o carro todo, e como os meninos já tinham passado para
o carro do meio, não achou nada. Foi-se embora furioso contra o feiticeiro. Diz
o sábio:
— Vão agora no carro do meio.
Partiu o ladrão, e mandou despejar o carro do
meio; mas não achou ninguém. Diz outra vez o feiticeiro:
— Vai lá, que eles passaram-se para o carro
da frente.
Mas os carros chegavam já ao palácio e
escaparam os meninos. O rei ficou muito contente por ter tornado a encontrar o
seu filho, e soube da menina tudo desde a mão do finado até dar a vida ao
príncipe, que quis logo casar com ela. O rei deu o sim, e no dia das festas do
casamento veio um dos ladrões com obras de ouro, entrou para a igreja que
estava preparada, e abriu uma saca, e dizia com ar de tolo:
— Tão bonito! tão bonito!
Apareceu ali um vassalo e disse:
— Quando você se admira disto, que seria se
visse a câmera real.
Disse o que se fingia tolo:
— Eu dava todas estas obras de ouro a quem me
levasse lá.
O vassalo ofereceu-se, e o ladrão no meio de
tanta gente sumiu-se e meteu-se debaixo da cama sem o vassalo ver. Casaram-se
os príncipes, e foram para a câmera real; a princesa com uma grande agonia não
podia dormir, e não se quis deitar.
Diz o príncipe:
— Deita-te, que os ladrões não podem vir aqui
matar-nos.
— O meu coração me diz que mesmo aqui me hão
de vir matar.
O príncipe levantou-se, chamou uma sentinela
para fora da porta e um leão para a borda da cama. O leão mal entrou começou a
farejar para debaixo da cama; a menina levantou-se e foi ver aonde o leão
estava dando sinal. Chamou o príncipe para ver um dos ladrões que os tinham
querido matar. Acudiu a sentinela, que fez sair o ladrão que ainda fingia de
tolo, dizendo:
— Tão bonito! tão bonito!
Mas levaram-no dali para a prisão, até
confessar quem o tinha ali metido, sendo enforcado com o vassalo. O rei mandou
tropa a rodear a casa dos ladrões, foram todos mortos, e encontraram muitas
riquezas, que o rei deu aos noivos que foram muito felizes.
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Ano de publicação: 1883
Origem: Portugal (Ilha de São Miguel — Açores)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2021)
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