domingo, 5 de dezembro de 2021

A mão do finado (Conto popular), de Teófilo Braga

 

A MÃO DO FINADO
 

Havia um mercador, que tinha três filhas, e tinha por costume ir buscar fora da cidade uma renda todos os anos. Aconteceu falecer a sua mulher, e tendo de ir receber a renda custava-lhe deixar as filhas sozinhas. Disse então o mercador:

— Minhas filhas, eu preciso de ir receber a renda do costume, mas está-me custando ir, para as não deixar sós.

As filhas responderam:

— Vá, meu pai, que não nos há de acontecer nada; nós havemos-nos de fechar por dentro, e não se consente que ninguém entre cá.

O mercador foi-se, fiado na palavra das filhas. Havia fora da cidade uma quadrilha de ladrões, e o capitão deles andava à espera da ocasião da partida do mercador. Assim que soube do dia em que o mercador saiu da cidade, vestiu-se em trajos de velho pedinte, e quando anoiteceu estava toda a sua quadrilha no canto da rua onde moravam as três meninas. Veio o capitão bater-lhes à porta, e como estivesse chovendo, pediu pousada do ar da noite. As meninas mais velhas compadeceram-se dele, e queriam-no agasalhar; a mais moça disse:

— Não! lembrem-se da palavra que deram ao pai; dê-se-lhe uma esmola, e ele que vá com Deus.

Respondeu a mais velha:

— A menina como mais criança não determina nada aqui!

E o velhinho sempre entrou para dentro; deram-lhe na cozinha uma enxerga e cordas para ele estender a roupa, e puseram-lhe a ceia diante. As meninas depois de terem arranjado o velho, foram também cear; eis senão quando o velho abriu a porta da cozinha e veio ter com as meninas à mesa e deu-lhes três maçãs dormideiras, uma para cada uma comer à sobremesa. Ficou vendo se as meninas as comiam; as mais velhas comeram as suas, mas a mais moça não comeu e escondeu-a para o velho a não ver e não desconfiar. Foram-se as meninas deitar e as mais velhas pegaram no sono muito depressa; mas a mais nova não dormiu com medo, mas fingia também que dormia. Quando o ladrão viu que estavam já dormindo, levantou-se e foi ao quarto das meninas, puxou um alfinete real, chegou ao pé da menina mais velha e deu-lhe uma picada a ver se estremecia. Ela não sentiu a picada. Fez o mesmo à segunda; não sentiu. A mais nova com medo do ladrão a matar, fez-se dormindo, ele fez-lhe o mesmo e ela não sentiu.

O ladrão trazia consigo uma espada, uma pistola e uma mão de finado e pôs numa banca estas coisas todas. A menina mais nova abriu os olhos para ver a determinação do ladrão, e tornou-os a fechar. O ladrão acendeu o lume à mão do finado para as meninas ficarem mais pesadas no sono, e correu as casas para arrumar o que tinha que roubar. Abriu o alçapão que dava para a loja das fazendas, entrouxou o que quis, e abriu a porta da loja, e saiu a chamar a sua quadrilha. A menina mais moça levantou-se ao mesmo tempo que o ladrão saiu, viu as trouxas das fazendas prontas, e a toda a pressa trancou a porta da loja. O ladrão que já vinha com a quadrilha, ainda se pôs aos empurrões à porta, e dizia:

— Foi a mais mocinha que me enganou, e que não comeu a maçã dormideira.

E começou a dizer que ela lhe havia de pagar tudo. Teve ainda a confiança de tornar a bater à porta, pedindo à menina que lhe desse a sua mão de finado. Ela respondeu de dentro, que a mão estava em labareda, e que não sabia como a apagar. Disse o ladrão, que a deitasse numa tigela de vinagre, que ela se apagava. A menina veio cá acima buscar a espada que o ladrão tinha deixado, e disse-lhe:

— Aqui está a mão do finado.

Ora na porta havia um buraco em cima em que cabia uma mão; e disse-lhe o ladrão:

— Meta a menina a mão pelo buraco.

— Se quer, meta a sua, que eu lhe darei a mão do finado.

Vai o ladrão cai em meter a mão e a menina traçou-a com a espada. Os ladrões foram-se embora, e o capitão com a mão quebrada. A menina foi para o quarto onde as irmãs estavam dormindo, apagou no vinagre a mão do finado, e ao mesmo tempo as irmãs começaram a estremecer, e acordaram. A boa da menina fê-las levantar, contou-lhes tudo, e levou-as a ver os sinais da desgraça em que estavam. Elas ficaram muito assustadas, e choraram muito lembrando-se do que o pai diria quando chegasse e soubesse que lhe tinham desobedecido.

Chegou o mercador da renda, e viu as filhas aparecerem muito tristes. Pediu a menina mais nova a seu pai que a escutasse; contou o que era passado e como se tinha livrado dos ladrões. O mercador chamou então as filhas e disse:

— Daqui por diante daremos obediência a sua irmã mais moça; eu com ser seu pai, farei o que ela determinar, porque venho a conhecer que vos livrou da morte e de ficarmos desgraçados.

Quando, por fim de muitos anos, o capitão dos ladrões, que tinha mandado fazer uma mão de ferro com engonços e andava de luvas, vestido como qualquer senhor, estabeleceu um armazém defronte da casa do mercador. Ora um dia o mercador, por lhe parecer boa pessoa convidou-o para ele ir lá jantar. Ele aceitou de boa vontade, e as meninas ficaram satisfeitas do pai convidar tão bom vizinho. A mais nova é que ficou muito triste, e o pai lhe perguntou o que era. A menina respondeu que não gostava que o pai convidasse o tal senhor para vir a sua casa. Chegou a hora do jantar e foram para a mesa; as duas outras irmãs, já se sabe, muito contentes. Houve uma conversa, e neste mesmo tempo o vizinho pediu em casamento a menina mais nova ao pai. O mercador ficou muito satisfeito e disse que sim; mas a menina respondeu:

— Aqui o desengano, pai, que com ele não quero casar.

O vizinho ficou aborrecido, e pediu a mais velha, que ficou muito contente, e ele começou a dizer os bens que tinha, e que morava em uns palácios longe da cidade. Chegou o dia do casamento, despediu-se a menina mais velha, e montou no carro mais o marido para fora da cidade. Lá no meio da estrada ele apeou-se, mais a mulher, pagou ao boleeiro para não saber onde ele morava. Foram andando até que chegaram a umas casas metidas nuns matos. Assim que a sua companhia o avistou, vieram com seus ouros e joias oferecer à senhora, dizendo ele que era a sua mulher. Entrou com ela para um quarto, e lhe deu um papel para escrever uma carta a seu pai, que ele notou, dizendo que estava muito satisfeita com ver tanta riqueza e que mandava buscar uma de suas irmãs para estar uns dias em sua companhia. Acabada a carta, que ele arrumou, tirou então a luva e a mão de ferro e mostrou-lhe o braço maneta, dizendo:

— Conheces quem me fez isto?

Ela respondeu-lhe que não.

— Bem sei que não tens culpa, mas o pagarás e tuas irmãs também.

Acabado isto pegou na espada e degolou-a. No fim de uns dias levou a carta ao sogro, que a sua mulher lhe mandava, e o pai leu-a, e disse à filha do meio que fosse. O ladrão levou-a consigo, fez com que ela escrevesse uma carta para vir a mais moça, e depois de a degolar, veio com a carta. O pai mandou a última filha que tinha em casa; ela não queria ir, mas para não desobedecer sempre se resolveu. Foi com o cunhado, que no meio da estrada a fez apear, e depois de irem a pé por muito tempo, descalçou a luva e mostrou-lhe a mão, dizendo:

— Tuas manas já pagaram; agora é a tua vez.

Chegaram a casa; os ladrões apareceram-lhe todos, e ele disse:

— Façam de conta que é minha irmã.

Pôs ao pescoço da menina uma pera de ouro, e disse:

— Podes ir a todos os quartos deste palácio, menos a este.

Partiu com a quadrilha, mas assim que voltou costas, a menina tirou a pera do pescoço e foi ao quarto dos mortos. Viu lá um menino príncipe todo esfaqueado, que lhe disse:

— Esta casa é um covil de ladrões; o que faz a menina por aqui? Olhe que eles estão aí a chegar.

A menina fechou outra vez tudo; botou a pera ao pescoço, e nisto chega o cunhado.

— Fez o que lhe mandei?

— Fiz.

Ele olhou para a pera sem malha, ficou muito contente; destinou-lhe serviços para ela fazer, e foi-se outra vez embora para uma viagem de oito dias.

A menina tirou a pera, e foi ao quarto dos mortos levar um caldo ao menino príncipe, que ficou são. Sentiram uns carros do rei que levavam esterco e eles fugiram e foram ter com os carreiros para os levarem para o palácio. Chegaram aos carreiros e perguntaram:

— Que novidades há nessa cidade?

— Ofícios dobrados pela falta do príncipe.

— O príncipe sou eu; e esta menina deu-me a vida, na casa onde estava esfaqueado pelos ladrões. Agora, carreiro, deita esterco fora do carro de trás, põe meia sebe e deita em cima o esterco, que nós nos escondemos aí.

O carreiro assim fez; eram três carros e puseram-se a andar. Os ladrões tinham encontrado um feiticeiro, e ele ofereceu-se para ir para a sua companhia. Chegaram a casa, o capitão não encontrou a menina, mas o feiticeiro logo lhe disse que ia fugida no carro de trás.

Partiu um dos ladrões para a ir buscar; chegou ao carreiro, mandou-o parar, e cavar no carro de trás até meio, e vendo que não achava nada, foi-se. Os meninos passaram para o carro segundo. Chegando a casa, disse o ladrão:

— É mentira; não achei ninguém, pois despejei o carro até meio.

Disse o feiticeiro:

— Despeja o carro todo, que eles lá estão.

Parte o ladrão a toda a pressa, apanhou o carreiro, mandou despejar o carro todo, e como os meninos já tinham passado para o carro do meio, não achou nada. Foi-se embora furioso contra o feiticeiro. Diz o sábio:

— Vão agora no carro do meio.

Partiu o ladrão, e mandou despejar o carro do meio; mas não achou ninguém. Diz outra vez o feiticeiro:

— Vai lá, que eles passaram-se para o carro da frente.

Mas os carros chegavam já ao palácio e escaparam os meninos. O rei ficou muito contente por ter tornado a encontrar o seu filho, e soube da menina tudo desde a mão do finado até dar a vida ao príncipe, que quis logo casar com ela. O rei deu o sim, e no dia das festas do casamento veio um dos ladrões com obras de ouro, entrou para a igreja que estava preparada, e abriu uma saca, e dizia com ar de tolo:

— Tão bonito! tão bonito!

Apareceu ali um vassalo e disse:

— Quando você se admira disto, que seria se visse a câmera real.

Disse o que se fingia tolo:

— Eu dava todas estas obras de ouro a quem me levasse lá.

O vassalo ofereceu-se, e o ladrão no meio de tanta gente sumiu-se e meteu-se debaixo da cama sem o vassalo ver. Casaram-se os príncipes, e foram para a câmera real; a princesa com uma grande agonia não podia dormir, e não se quis deitar.

Diz o príncipe:

— Deita-te, que os ladrões não podem vir aqui matar-nos.

— O meu coração me diz que mesmo aqui me hão de vir matar.

O príncipe levantou-se, chamou uma sentinela para fora da porta e um leão para a borda da cama. O leão mal entrou começou a farejar para debaixo da cama; a menina levantou-se e foi ver aonde o leão estava dando sinal. Chamou o príncipe para ver um dos ladrões que os tinham querido matar. Acudiu a sentinela, que fez sair o ladrão que ainda fingia de tolo, dizendo:

— Tão bonito! tão bonito!

Mas levaram-no dali para a prisão, até confessar quem o tinha ali metido, sendo enforcado com o vassalo. O rei mandou tropa a rodear a casa dos ladrões, foram todos mortos, e encontraram muitas riquezas, que o rei deu aos noivos que foram muito felizes.

 

---
Ano de publicação: 1883
Origem: Portugal (Ilha de São Miguel — Açores)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)

Nenhum comentário:

Postar um comentário