A LENDA DO CHÁ
Dakar era um ardente devoto de Shiva a cruel deusa indiana que só gosta de morticínio e de sangue, e que recebe as adorações mais submissas, profundas e completas duma legião de crentes que habitam nos misteriosos recessos das florestas da Índia, dessa terra das lendas e das maravilhas. Havia anos que vivia numa gruta em ardente adoração; de estar sempre de joelhos criara calosidades que lhe não permitiam endireitar as pernas, e as unhas dos dedos das mãos, que conservava fechadas havia anos, tinham rompido os tecidos e apareciam do lado oposto.
Não havia martírio a que se não sujeitasse, e as populações fanáticas consideravam-no Santo e vinham de longe render-lhe homenagem e pedir-lhe conselhos.
Só uma nuvem negra, um pesar profundo perturbava o misticismo de Dakar. Sofria sem custo o frio, a fome, a sede, as mais incômodas posições, dominando à vontade o organismo, só não pudera ainda vencer o sono! Debalde se esforçava por resistir, debalde fazia despejar sobre si quantidades enormes de água fria, debalde se sujeitava à aplicação do ferro em brasa, ou fazia vibrar o tantã junto dos ouvidos. O sono como mais forte, subjugava-lhe a vontade e obrigava-o a dormir. No seu desespero chegou a fazer cortar as pálpebras cuidando assim que espancaria para longe o sono, mas a tortura foi baldada. Os olhos permaneciam abertos mas Dakar dormia!
Uma tarde, — havia dias que estava sem comer — orava o faquir fervorosamente pedindo a Shiva que se amerceasse dele e lhe permitisse antes de morrer a última e suprema felicidade de poder vencer o sono, quando começou a sentir-se muito fraco, uma languidez precursora do sono a dominá-lo, tudo a dançar-lhe à volta...
Seria fome? Seria sono? Oh, se apaziguando a fome vencesse o sono...
Olhou em roda... alimentos nenhuns; os fiéis tinham-se esquecido de lhos trazer... mas não havia mal... Fora, perto da gruta, vegetavam variados arbustos, e a alimentação de tantos animais também havia de convir ao homem. Seria mais um sacrifício... E Dakar arrastando-se com dificuldade, quase vencido pela necessidade de dormir, chegou até junto dum vegetal e começou a devorar-lhe as folhas.
Mas, caso milagroso, à medida que ingeria as folhas do vegetal, o sono desaparecia e o faquir sentia-se mais forte, fresco e vigoroso.
Obrigado oh Shiva! exclamou ele jubiloso, agora posso morrer, pois morro feliz visto que graças a ti, alcancei dominar o que até hoje zombara dos meus esforços. Venci o sono!
Começou desde então a fazer colher pelos seus adeptos folhas e folhas do vegetal, que deitava de infusão, e quando o sono fazia sentir os seus primeiros rebates bebia da água milagrosa e ele desaparecia logo.
O arbusto descoberto pelo fanático faquir
indiano, o vegetal dissipador do sono foi o chá.
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Ano de publicação: 1892
Origem: Portugal
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)
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