quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

A Iara (Lendas Brasileiras), de Afonso Arinos

 

A IARA
(Lenda amazônica)

Jaguarari, o filho do tuxaua dos manaus, era belo como as frescas manhãs de sol nas águas do Grande Rio. Tinha a força e a destreza do puma auri-negro que domina a matéria brava, mas muito o excedia na audácia em perseguir a caça e afrontar o inimigo.

Quando ele vogava na sua igara, deslizando sobre as águas silenciosas, que a proa, como a asa de um pássaro, apenas frisava, as garças ariscas por vê-lo, não fugiam da beira do rio, e os jacamins mesureiros vinham saudá-lo roçando os peitos no chão.

Nas grandes festas com que as tabas dos manaus, reunidas ao rufar do trocano, celebravam a admissão dos mancebos à fila dos guerreiros, nenhum moço igualou Jaguarari na altivez do porte, nem na agudez da vista, nem na firmeza do braço.

Arremessada do rijo arco a sua flecha certeira cortava a carreira do caititu ou o pulo do maracaiá, e a uamiri da sua zarabatana abatia no voo o gavião carniceiro.

Os velhos o queriam, amavam-no as moças, admiravam-no os guerreiros e nos seus cantos o nome de Jaguarari soava como o daquele que um dia, decerto bem longe ainda, iria gozar o supremo bem nas Montanhas Azuis, a sonhada mansão dos bravos.

Quando ao florescer da frondosa mamaurana, a sua igara passava junto do barranco do rio, embaixo da verde ramagem debruçada sobre a corrente, as brisas folionas sacudiam os galhos e derramavam nos negros cabelos do filho do tuxaua uma chuva de flores.

Nas tardes purpúreas, quantas vezes a sua canoa, ruborescida pelo poente e tauxiada de sombras esguias de árvores marginais, não subia em demanda da ponta do Tarumã, onde se quedava, solitário e silente, até ao meio da noite!

— Que pescaria é esta, filho, que se prolonga com as sombras, à hora em que só Anhangá se deleita em correr as terras e as águas? Não ouviste alguma vez a sua voz temerosa trazida pelo vento gemedor? Meu filho, meu filhinho! Anhangá espalha pelo capim rasteiro e pelas folhas dos arbustos as sementes das dores que matam!

Assim falava a pobre mãe tapuia quando via o filho entrar na habitação paterna a horas mortas, vindo dos lados do rio, e ficar insone, noite a dentro, com as pernas pendentes da rede selvagem, os cotovelos fincados nos joelhos e os olhos fundos e tristes a olharem, a olharem pungentemente para fora, para o rio, para a noite, para o seio negro da escuridão!

Às enternecidas palavras de sua mãe, Jaguarari respondia apenas com um olhar, o olhar daqueles olhos tristes e fundos, onde se sentiria a crispação de vertigem das profundezas.

— Filho, não foi de muito tempo: faz pouco ainda e a alegria esvoaçava à flor de teus olhos como as marrequinhas à tona da lagoa. Por que fugiu? por que foi ela fazer tão longe de ti e de mim o seu ninho?

— Mãe! — murmurava ele apenas, fazendo um vago gesto.

E o seu corpo, que tinha o frescor e a seiva do talo da palmeira, murchava, murchava sempre; o cupim roaz picava-lhe o coração.

Ele acompanha ainda o tuxaua nas expedições de caça e o seu braço não treme ao rugido do canguçu. Mas, ao cair da tarde, evita os jovens guerreiros que armam laços para prenderem as aves silvestres e foge dos grupos que vagueiam pelas coroas do rio atirando redes de pesca.

Sozinho, salta na leve igara e voa até a ponta do Tarumã, onde os companheiros o vêm de longe, com os olhos fitos no espelho das águas, solitário e tristonho como o meditativo maguari.

Um dia, cheia de apreensões funestas, sua mãe exclamou: — Filho, os juruparis perversos envenenaram o ar que respiras. Acauã vem agora cantar à nossa porta. Teu pai quer fazer longe daqui nova taba para nossa gente. Só assim a ave da alegria voltará a esvoaçar em teus olhos...

Depois de profundo silêncio, Jaguarari suspirou:

— Mãe, eu a vi! Eu a vi, mãe, boiando em flor como os nenúfares nas águas do igarapé. É linda como a Lua nas noites mais claras. Eu a vi! Mãe! Seus cabelos têm a cor das flores do pau d'arco e o brilho do sol; suas faces tiraram o rosado das penas da colhereira e das flores da sapucaia. Os passarinhos que mais cantam não cantam como ela. Mãe, ela é formosa como nenhum homem das tabas do Grande Rio jamais viu nem verá. Ela cantava e à sua voz a própria cachoeira do Tarumã cessou de roncar e parou, decerto por ouvi-la. Ela olhou para mim, ó mãe, e estendeu-me os braços. Depois, repartiram-se as águas e ela desceu para sua casa, que foi esquecida lá no fundo pelo céu, num tempo muito longe, quando o céu se entendia como embaixo de nós a campina matizada de flores, antes de subir e de arquear sobre as nossas cabeças a sua concha estrelada. Mãe, eu quero vê-la mais: eu quero ouvir ainda o seu canto!

A tapuia horrorizada clamou:

— Foge, foge daquele lugar maldito! Nunca mais a tua igara demande a ponta do Tarumã. Foge meu filho! Tu viste a “Iara!” O seu canto é a agonia! Foge Jaguarari! É a “Iara!” de dentro de seus olhos verdes te espia a Morte!

E em soluços a velha tapuia atirou-se por terra.

No dia seguinte, à hora em que os torcazes aos casais passam alto, tendendo os ares em demanda do pouso da noite, a igara de Jaguarari desusava célere nas águas do Rio Negro.

Os mancebos manaus que o viram passar disseram:

— Lá vai Jaguarari pescar tucunaré.

Mas, súbito, de um grupo de mulheres que levavam ânforas de barro à beira do rio partiu um grito:

— Corre, gente! corre, vem ver!

Acudiram os moços e pararam atônitos, olhando a barra do horizonte incendiado pelo ocaso. A canoa do filho do tuxaua, inundada de luz, fendia as águas com Jaguarari de pé, abertos os braços, como uma grande ave selvagem prestes a desferir o voo. A igara parecia marchar em direitura ao sol, a fim de precipitar-se no seu disco abrasado. E ao lado do jovem guerreiro, enlaçando-o como a beijá-lo, surgia, num halo de luz argêntea que se destacava no rubor do poente, um corpo alvo, de formas harmoniosas, coroado de longas madeixas de fios de ouro a esvoaçarem.

— A “Iara!” a “Iara!” — conclamaram, em grito uníssono, os guerreiros e as moças dos manaus correndo para o meio da taba.

E foi a derradeira vez que viram o filho do tuxaua vogar nas águas escuras do rio. 

 

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Ano de publicação: 1917.
Origem: Brasil (Manaus)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)

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