No tempo em que os animais falavam, cada
espécie tinha o seu Rei ou Rainha. E viviam em sociedades, organizadas tão bem
ou melhor do que hoje são as dos homens. Quase todos escolhiam para seus
governantes, não um animal da sua natureza e feitio, o que não imporia respeito
a brutinhos daqueles, mas sim Feiticeiras e Fadas, Lobisomens e Gênios,
conforme os seus gostos mais ou menos apurados.
Quando alguma coisa havia a discutir de
interesse geral reuniam-se os Soberanos no palácio do Rei dos leões, o Rei dos
Gênios, porque também o leão é o Rei dos animais. E acontecia às vezes que
entre os reis e rainhas se levantavam graves questões, porque todos queriam
apregoar a superioridade natural do seu povo.
Assim, um dia que estava reunido o conselho
para tratar de negócios importantes, deu-se um fato de que iam resultando
graves transtornos. A Rainha das raposas, uma Fadazinha gentil, muito viva e
esperta, com o focinhito aguçado, sempre pronta a saborear a carne das
galinhas, tomou, sem mais cerimônias, o primeiro lugar.
Vem de lá a Rainha dos lobos, uma Bruxa muito
feia e velha, só amiga de andar de noite, de olhos chamejantes e dentes agudos,
e gritou e berrou que aquele lugar lhe pertencia, pois os lobos valiam mais do
que as raposas.
Nisto chegou a Rainha das Cegonhas e disse
que, de direito, o lugar lhe pertencia a ela, por serem as aves coisa muito
superior aos quadrúpedes.
O caso complicava-se de forma que, para as
acalmar, o Rei dos Gênios interveio dizendo:
— O mundo é dos mais finos, e no conselho
terá o primeiro lugar aquela das três Rainhas que na próxima reunião prove
governar o povo de maior esperteza.
Postas as coisas neste ponto, levantou-se a
sessão e as três Rainhas despediram-se furiosas, mas aparentando cortesia. A
das raposas subiu para um carrinho de vime e, cumprimentando graciosa, foi um
instante enquanto desapareceu, puxada por duas das suas espertas vassalas. A
das cegonhas deitou-se numa rede que foi levada por ares e ventos, segura nos
bicos daquelas pensativas aves. A dos lobos, montada num desses feios animais,
lá foi, mais arreliada que nenhuma outra, mostrando os dentes ameaçadores, feia
como a peste.
Por indicação da sua Rainha, passados dias a
Cegonha foi ter com a Raposa e disse-lhe, com toda a gentileza que a sua
gravidade permitia:
— Comadre Raposa, venho aqui convidar-te,
porque tenho lá umas papas de milho para a merenda. Como gostas muito desse
acepipe, lembrei-me de o partilhar contigo.
Gulosa, a Raposa respondeu:
— Ó comadre Cegonha, da melhor vontade te
acompanho, e desde já te agradeço tanta delicadeza.
Dirigiram-se as duas a casa da Cegonha, que
já tinha deitado numa almotolia o precioso manjar. Metia o comprido bico e
comia à vontade, enquanto a pobre Raposa apenas podia lamber do chão o que a
Cegonha deixava cair.
A Raposinha estava furiosa, mas não confessou
o seu desprazer, agradecendo até à comadre Cegonha a sua amabilidade, com muitas
vénias da cauda e sorrisos amarelos. Lá no seu íntimo jurava vingar-se.
Passados dias, foi ela a casa da Cegonha dizendo:
— Bons dias, comadre, então como tens
passado? Venho aqui convidar-te para jantares hoje comigo.
— Pois não, comadre Raposa, da melhor
vontade!
Foram as duas a casa da Raposa, que logo
deitou numa laje, bem espalhadas, grande porção de papas. Ora ela tinha boa
língua e lambia tudo, enquanto a triste Cegonha com a ponta do bico mal lhe
tomava o cheiro. E fugiu envergonhada porque a Raposa soubera ser mais fina.
A raposa tanto comera que, de farta, se
deixou adormecer. Passou por ali um sardinheiro que andava com um burro
carregado a vender sardinha pelas aldeias. E, vendo a raposa, imaginou-a morta,
e lembrou-se de a levar para ganhar algum dinheiro mostrando-a a donos de
galinhas.
A finória acordou, mas, achando-se bem,
continuou a fingir-se morta, comendo a sua sardinha de quando em quando, para
abrir o apetite. O homem, adiante, puxava pela corda do burro e de vez em
quando ouvia:
— Raposinha gaiteira, farta de papas anda à
cavaleira.
Olhava para trás e não via ninguém.
Admirava-se muito, mas nem por sombras supôs ser a Raposa quem isto dizia, pois
a julgava morta e bem morta. Voltava a caminhar, e tornava outra vez a ouvir:
— Raposinha gaiteira, farta de papas anda à
cavaleira!
Assim foi todo o caminho, até que, chegados a
uma casa onde o homem ia fazer negócio, ela saltou de cima do burro e fugiu.
Bem gritou o homenzinho que estava
desgraçado, que a patifa lhe tinha comido as sardinhas, mas a bela da raposa
onde estaria já! Foi atrás dela, campos fora, até que se cansou. A Raposa, que
esperava isto mesmo, foi andando até encontrar o Lobo que lhe disse:
— Olá, comadre Raposa, então vens a fugir?
— Ai, amigo Lobo, tudo por tua causa! Venho
aqui morta de cansaço, para te prevenir que uns homens muito maus te querem
matar. É preciso fugir!
— Então fujamos depressa.
— Pois sim, mas tu hás de levar-me às costas,
porque eu estou estafada por tua causa.
O Lobo pô-la às cavalitas e partiram. Chegaram
a um rio, e fingindo-se aflita, disse a Raposa:
— Ai, compadre Lobo, que não podemos
atravessar! Tens que beber a água toda; não há outro remédio!
O brutinho bebeu, bebeu e depois quase não se
podia mexer. Foram porém andando até que chegaram a uma eira onde um rancho de
homens estava a malhar. Mal viram o lobo e a raposa, fizeram grande alarido.
Então ela disse:
— Olha, compadre Lobo, são aqueles os homens
que te querem matar. Lança-lhes o rio.
O Lobo assim fez, mas os homens vieram de lá
com os mangoais e, como ele não podia correr por estar ainda muito cheio de
água, deram-lhe pancadaria basta.
A Raposa fugiu, a rir. E foi contar à sua
Rainha as partidas que tinha feito aos dois adversários. Ficou muito contente a
Soberana, e no primeiro conselho apareceu triunfante, tendo desde esse dia o
primeiro lugar, o que aumentava a fúria da Bruxa, Rainha dos lobos, e tornava
cada vez mais triste a Fada, Rainha das cegonhas.
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Origem: Portugal.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)
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