Era uma vez um rei; tratava mal a rainha
porque não tinha filhos, e como esta andava com uma grande aflição, numa hora
de desespero, clamou:
— Quem me dera um filho, ainda que fosse por
obra do diabo.
Passado tempo, a rainha teve uma menina muito
linda, e o rei andava tão contente que não cabia em si. A criança medrava a
olhos vistos, mesmo sem comer nem beber. Em pouco tempo ficou uma senhora, com
um tino que maravilhava; sabia ler, escrever, bordar, cantar, tinha todas as
prendas do mundo sem ter aprendido nada.
O rei todo orgulhoso da sua filha mandou
deitar um pregão: Que se houvesse alguém que fizesse uma pergunta a sua filha e
ela não fosse capaz de responder, se fosse homem havia de casar com ela, e se
fosse mulher dar-lhe-ia uma tença. Veio muita gente de toda a banda, mas a tudo
ela dava troco e deixava de boca aberta.
Um camponês, quis campar de esperto, e também
se lembrou de ir ao chamado do pregão; meteu-se a caminho, andou, andou, e
depois de muito cansado viu uma casa na encosta de um monte e foi ali descansar
das calmas. O camponês encontrou ali um moço, e perguntou-lhe — se ele vivia
ali sozinho?
— Não senhor; vivo com meu pai, que foi dar
uma jeira a quem não pode dar outra, e com dois irmãos, que foram ver a seara
dos arrependidos.
O camponês não percebeu nada destas palavras
e pediu-lhe a explicação.
— A explicação é clara; meu pai foi dar uma
jeira a quem não pode dar outra, quer dizer que foi acompanhar um morto à
sepultura; os meus irmãos foram ver a seara dos arrependidos, porque se ela
estiver boa, ficam arrependidos por a não terem semeado toda, e se estiver ruim
também ficam arrependidos por terem semeado essa mesma.
O camponês seguiu o seu caminho muito
satisfeito, até que chegou ao palácio. Pediu para o levarem à princesa, e
contou-lhe o seu caso. A princesa deu-lhe logo a explicação de tudo. Depois
virou-se de novo para o campônio, e disse-lhe:
— Já que és tão sábio, diz-me lá a razão,
porque é que eu vivo sem comer, sem beber, nem dormir.
— Perdoe-me vossa alteza, mas eu não me fio
nisso.
— Pois então hás de ficar três dias no meu
quarto para veres com os teus olhos.
O rapaz susteve-se o primeiro dia sem dormir
para espreitar tudo o que se passava; custou-lhe muito a aguentar-se, e quando
veio o terceiro dia, disse:
Princesa, minha senhora,
Cá pra mim mulher que não come,
Nem bebe, nem dorme,
É filha do diabo, que não doutro home.
Assim que a princesa ouviu isto foi ter com a
mãe para que lhe explicasse o seu nascimento. A rainha contou-lhe tudo o que
dissera quando o marido a tratava mal por não ter filhos; e assim que acabou de
falar sentiu-se no palácio um barulho como de um furacão que passasse. O
palácio ficou livre daquele encantamento, e todos ficaram obrigados ao
campônio, a quem o rei deu a princesa em casamento em paga de a ter livrado
daquela coisa ruim.
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Ano de publicação: 1883
Origem: Portugal (Algarve)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2021)
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