A BURRA E O SEU BURRINHO
Xairelada deu à luz a um elegante burrinho,
quando o sol principiava a aluminar as casinhas da aldeia de São Pedro. Ainda
muitos habitantes se estavam espreguiçando, e já na cavalariça, no extremo da
terra, acordava tudo, havia imenso tempo. Ali está, Xairelada, a burra
benquista, a deitar a cabeça pela janela. “Hi!
Han! Hi han!” cantarola, mostrando a dentuça. “Hi han! Hi han!” repete, cada
vez que ouve passar alguém pela rua.
Que prazenteira que está! brilham-lhe os
olhos; até se pode dizer que sorri! Que lhe sucedeu? Venham ver. Além, em cima
de um molho de palha, está a dormir o seu recém-nascido, um formoso burrinho,
com cada olho! A mãe acha-lhe as orelhas tão bonitas e tão compridas, que nem
um instante deixa de lhas admirar e lamber, e, revendo-se, nele, assim lhe diz:
— Filhinho querido! O sol alumia-te o
primeiro dia de vida. Oxalá que seja para tua felicidade.
— E decerto que há de vir a ser um burro
famoso, interrompe de lá a Parda, a burra mais velha da cavalariça. Ainda há
pouco se sustinha ele já nas pernas. Queres um conselho, Xairelada? Dá-lhe de
mamar seis meses, pelo menos; tenhamos fé em que o nosso dono há de dar
licença.
— Eu cá por mim, diz dali um burro, só desejo
que ele seja menos tagarela que sua mãe. Desde o arrebol da manhã, ou ainda
antes, que não faz senão zurrar. Não há meio de pregar o olho. Não estarás
calada, Xairelada? Tens o dia todo para anunciar aos quatro ventos da terra o
nascimento de teu filho.
— Meu querido amor, interrompe Xairelada, não
me querem ver feliz!
Depois, deitando-se-lhe ao lado e
ajeitando-se, continua:
— Aqui tens um leite soberbo. Ninguém to
poderia dar melhor. Quantos doentes o não desejariam beber! Não, minhas
senhoras, este não há de ser para vossas excelências, já lhes dei muito no ano
passado: este, agora, reservo eu para o meu filho.
Cresceu o burrinho, e já acompanha a mãe ao
prado. Enquanto ela vai roendo as folhas, anda ele a saltar, a pular, a
rolar-se todo pela erva; às vezes dá saltos tão grandes, que Xairelada chega a
ter medo de lhe ver quebrar alguma perna.
Ao filho estremecido, puseram o nome de
Grizão.
Uma vez Grizão descobriu um riacho no fim do
prado. Por mais voltas que desse ao miolo, Xairelada não chegava a adivinhar
porque ia ele sempre para aquele lado: para tomar banho, não podia ser, porque
ela lho proibira, e, de mais a mais, não é lá muito próprio de um burro estar a
ensopar os pés na água. Fora o caso: Grizão, indo uma vez beber água, descobriu
no riacho o seu rosto burrical, e nunca mais deixou de ir ali dia nenhum para
ver se lhe cresciam as orelhas, se a pontinha da cauda ia crescendo também,
numa palavra, se no focinho se estampava o ar burricalmente característico.
Porque o seu desejo mais ardente era ver-se burro.
— Quando chegar a ser grande, dizia ele a
cada passo, hei de me pôr a comer cardos, como faz a minha mãe, hei de puxar as
carroças, hei de trazer sobre o espinhaço todos aqueles senhores e senhoras e
meninos que vão a passeio. A mamãe fica estafada, mas eu cá, se visse uma
senhora montada, em mim, havia de lhe mostrar que sou forte, que lhe poderia
fazer isto e mais isto...
Grizão tem um gênio, muito alegre, caráter
franco, e por isso adquiriu muitos amigos na aldeia. Mais que todos, um
potrozinho, preto, da idade dele, depois uma cabra velha e o filho, um
cabritinho. Andam muitas vezes juntos no prado. À sombra de uma mangueira,
falam de uma infinidade de coisas, em favor dos animais de sua espécie.
Chegam-se a zangar, e quase a engalfinhar, mas fazem logo as pazes.
Um dia, o potro, voltando-se para Grizão,
perguntou-lhe:
— Ó meu amiguinho, não me dirás onde foste
desencantar essas orelhas tão grandes, e de que te podem elas servir? Quando as
deixas cair, ficas com um ar tão esquisito, que, por mais que eu faça, não me
posso suster com o riso.
— Que queres tu? respondeu Grizão, se eu sou
um burro, como hei de ter orelhas de cavalo? Ora, toma sentido! Não digas mal
de minhas orelhas, olha que eu já percebi que elas ouvem melhor que as tuas.
— Talvez, diz o potro.
Depois, dirigindo-se à cabra:
— Ó Negrinha, haverá quem apresente um pé
mais esquisito do que o teu. Parece partido ao meio. Aposto que o da tua avó
era mais benfeito. Repara no de Grizão e no meu. Duas belezas! Bem se vê que ainda
somos primos!
— Somos, somos, interrompeu Grizão, primos
pelos pés, mas não pelas orelhas.
— Muito obrigado pelo presente dos teus pés
bonitos, disse Negrinha, mas não aceito. Vão vocês com os seus pezinhos
delicados trepar e saltar por sobre os rochedos, comer a erva e as florinhas
que só crescem no cimo dos montes, e depois venham-me mostrar em que estado
lhes ficaram os joelhos e os dentes. Sou uma sua criada! Ainda tem mais outra
vantagem os meus pés: é não os ferrarem nunca; e, ou estou muito enganada, ou é
vantagem que nenhum de vocês apetece.
— Tens sempre boas respostas, disfarçou
o potro, não falemos mais nisto.
— Falemos, sim senhor, continuou Negrinha,
porque é que os cavalos e os burros não têm nenhuma arma para se defenderem,
nem mesmo um chavelho, enquanto as cabras possuem dois?
— É porque nós nos defendemos com os pés,
tornou-lhe o potro.
— Olhe que defesa!
Nisso o cabrito saltou sobre Grizão, o que na
linguagem deles queria dizer: “Vem brincar comigo”. Grizão espojou-se nas
ervas; Negrinha entrou aos saltos de outro lado com o potro. E assim passavam
vida regalada os três amigos.
***
Grizão completou o seu segundo ano, e é já um
burro feito. Xairelada gloria-se do filho que tem. Afirma que é o burro mais
bonito do sítio. O dono mandou-lhe fazer uma sela, depois montou nele para lhe
ensinar a comportar-se com juízo, quando levasse cavalheiros e senhoras, mas o
pobre dono regressou ferido na cara. Grizão estreara tão contente, que saltou
para a direita, saltou para a esquerda, acabando por ferrar com o dono em
terra.
— Meu querido filho, disse-lhe, quando o viu
chegar; por quem és, anda mais passo, olha que te há de acontecer alguma!
— Eu faço as diligências, mas não sei que
formigueiro sinto nas pernas; é-me forçoso saltar: um homem para mim é peso
muito leve. Se eu pudesse falar, dir-lhe-ia que montassem em mim ao mesmo tempo
ele e a mulher.
— Que força! exclamou a burra toda
vangloriosa; como a mocidade é feliz!
Sucedeu que uma manhã chegassem à aldeia um
passageiro, os filhos pequenos e outros rapazinhos amigos. Uma passeata.
— Burros! burros! gritavam todos eles ao
mesmo tempo, ao ver a cabeça de Grizão à janela. Ó papá, aluga-os para
passearmos!
— Se houver para todos, respondeu o pai. Olá,
tio dono dos burros, pode-nos alugar oito?
— São os que tenho; mas, por um, não
respondo: a poucos passos deitará pelo pescoço fora o que montar nele.
— Quero esse! quero esse! gritou Eduardo, o
rapaz mais velho; eu sei me suster.
— Olha que não te quero ver chegar com alguma
perna quebrada.
— Não há de suceder mal, continuou Eduardo:
não é primeira vez que monto em burros.
— Está bem, disse o pai, como não há mais
nenhum, monta nele, e eu vou ao pé de ti, para não te suceder alguma.
Dali a momentos, largava a caravana. Grizão
caminhava ao lado da mãe, que não cessava de lhe fazer advertências,
aconselhando-o, sobretudo, a ir sossegado.
Os rapazes vão gritando todos ao mesmo tempo,
em algazarra própria: – “Eh! Grizão! Eh! Xairelada! Eh! Branquinha”. E a
burricada toda a trote por ali afora, ficando para trás o pai e o burriqueiro.
— Eh! Grizão! disse Eduardo.
Grizão deu um saltinho, mas, de repente,
lembrando-se da recomendação da mãe, conteve-se, e continuou a trotar com
juízo.
— Eh lá Grizão! repetiu Eduardo, dando-lhe
uma palmada no pescoço. Desta vez Grizão esquecendo-se da camaradagem em que
ia, partiu a toda a brida, sem se importar com as subidas nem descidas.
— Para, Grizão! para! gritava Eduardo. Mas,
Grizão, cada vez a correr mais, até que o pobre rapaz, perdendo o freio, foi
pela cabeça do burro fora, e de rolo por um montículo abaixo.
Levantou-se todo aturdido, sacudiu os joelhos
e os cotovelos. O pai, assustado, chegou correndo, mas, ao ver que lhe não
sucedeu mal algum exclamou:
— És um cavaleiro às direitas! Agora, olha
para o teu burro.
Grizão, tendo-se empoleirado numa altura,
estava vendo passar a cavalgada, entoando a sua cantiga do “hi han, hi han, hi
han”, como quem bradava a Eduardo:
— Ora apanha, meu menino; agarra-me, se és
capaz; não viste como eu me livrei de ti?
Grizão não quis tornar a ajuntar à alegre
companhia e voltou para a cavalariça por outro caminho.
— Ah! Grizão, exclamou a dona, quando o viu
chegar sozinho. Aposto que fizeste alguma das tuas!
O dono, desenganado de que Grizão se tornava
de dia para dia mais turbulento, e antevendo mais quedas aos fregueses,
vendeu-o a uma leiteira, que morava ao sopé da montanha. Uma manhã foi levá-lo
à nova dona. O mísero ia cabisbaixo e de orelhas caídas, todo tristonho, por se
separar da sua querida mãe. Xairelada não fazia senão chorar, e tinha-se
conservado à janela da cavalariça todo o tempo que pôde ver o filho pelo
caminho afora. Já ia muito longe, e ainda ela cá a bradar-lhe: “Hi han, hi han,
hi han, adeus, adeus!...”
A leiteira era uma mulher velha que havia
muitos anos levava todas as manhãs à cidade o leite das suas vacas. Acabara de
lhe morrer o burro mais velho, de quinze anos, que apesar da idade conservou-se
à carroça até o último dia. Agora é dado a Grizão o encargo de o substituir
naquele penoso labor. Pois está satisfeito, porque se acha com forças, e, mal a
dona o vem buscar para o pôr à carroça, logo dá um salto de contente.
Chegou o dia próprio. A carroça levava além
do leite algumas canastras de legumes.
— Muito bem, Sr. Grizão, disse-lhe a velha
fazendo-lhe uma festa: Continue assim e seremos amiguinhos.
Grizão tem de esperar enquanto a dona vai
tratar da vida. Vem à capital pela primeira vez, e por isso está todo
maravilhado do que tem visto. Muitos outros burros esperam também pela chegada
dos donos. Grizão, parecendo-lhe que eles tem um ar triste, perguntou ao
vizinho o que significava toda aquela melancolia.
— Bem se vê que ainda estás novo e forte,
respondeu-lhe o interrogado; formosa se te afigura a vida, mas, para nós
outros, velhos, cujas forças vamos perdendo todos dias, a carroça é pesada,
duras as arrochadas e o sustento pouco de cobiçar. Eu só tinha um amigo neste
mundo: era um rapazinho que me levava todas as manhãs um pedaço de pão e me
fazia festas, mas há duas semanas que desapareceu e receio que lhe tenha
acontecido alguma desgraça.
Nesse momento ouviu-se um rufar de tambor. O
burro ancião estremeceu todo.
— Que tens? perguntou Grizão.
— Não é nada. O ruído do tambor incomoda-me
sempre; não me posso esquecer de que seja em cima da pele de minha mãe que eles
batam.
— Em cima da pele de tua mãe?
— Decerto, acrescentou o burro velho; da
nossa pele é que se fazem os tambores; é nosso destino o sermos espancados não
só em vida, mas também depois de mortos.
Esse pensamento entristeceu profundamente
Grizão no resto do dia, e, à volta para casa, vinha menos alegre do que fora
para a cidade, a passo e de cabeça baixa.
— Eh! lá, dizia-lhe a leiteira, dando-lhe uma
chicotada.
— Ah! ela tem o atrevimento de me dar? pensou
Grizão continuando muito a passo.
— Eh! eh! chegando-lhe outra vez.
De repente, Grizão estacou.
— Olá! Este é tão cabeçudo como os outros,
murmurou a velha, tornando a mimoseá-lo com o chicote.
— Bonito! disse Grizão de si para si; começa
a minha vida de tambor.
E não deu mais nem um passo.
A leiteira apeou-se para o puxar pela rédea;
mas ele, vendo-a pôr os pés em terra, deitou a todo galope, e chegou à casa
muito antes dela. Como estava cansado, queria ir beber água, mas a da fonte não
lhe agradava muito, e Grizão, como todos os animais da sua família, não bebia
senão água claríssima.
A dona, ao chegar, a pé, e banhada em suor,
quis ajustar as contas com ele, mas refletiu que ainda era novo, e que, a falar
verdade, para a primeira vez, não tinha sido demasiadamente caritativa.
Desaparelhou-o, foi-lhe dar de beber (Grizão tem todo o cuidado de não meter o
focinho na água) e levou-o para o pasto. Vendo-se à rédea solta, espojou-se
pelas ervas. É um modo de dizer à dona:
— Ah! já que me não limpas, limpo-me eu,
assim!
À noite reentrou na cavalariça, adormeceu
pensando na mãe, e projetando ir um dia visitá-la.
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Ano de publicação: 1896.
Origem: Brasil (Reconto)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)
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