sábado, 4 de dezembro de 2021

A bengala de dezesseis quintais (Conto popular), de Teófilo Braga

 

A BENGALA DE DEZESSEIS QUINTAIS
 

Era uma vez um ferreiro, que tratava muito mal a mulher com pancadas, e de uma vez tantas lhe deu, que sem se importar que ela andava ocupada de meses a pôs fora de casa. A pobre da mulher foi para os montes, e coitadinha, lá se agasalhou numa lapa e comia ervinhas do campo. Passado tempo teve um menino, e quando chegou à idade dava-lhe também a comer ervas; mas ele tornou-se muito forte, e subia às árvores mais altas e agarrava coelhos, lebres, raposas e lobos tudo à mão. Vai de uma vez, pelas conversas que tinha tido com a mãe, pediu-lhe para ir por aí abaixo ver esses territórios e casarias da cidade, e foi.

Chegante lá, estava um ferreiro a trabalhar à açafra, e ele disse:

— Oh mestre! quero que me faça um bengala de ferro de doze arrobas!

— O freguês sabe o que diz? olhe que doze arrobas não é lá qualquer coisa.

O rapaz conheceu pela cara e modos do ferreiro, que ele era seu pai, mas calou-se consigo; depois disse:

— Então se doze arrobas ainda é pouco, faça-me a bengala de dezesseis arrobas.

— Oh freguês! olhe cá para mim direito.

— Olho, sim senhor; que eu não estou a mangar; e já que você acha pouco, faça-me a bengala de dezesseis quintais.

O ferreiro disse que sim, e não ajustou preço; o rapaz foi-se embora e contou tudo à mãe. Chegado o dia em que a obra devia ficar pronta, ele foi à porta do ferreiro e viu muitos homens e uma junta de bois a puxarem a bengala de dezesseis quintais para a porem na rua. O rapaz bota logo a mão à bengala e começa a ensarilhar com ela no ar, como se fosse um junco. O ferreiro e os outros homens com medo de ficarem esborrachados, começaram-se a esconder por todos os cantos; diz ele:

— Oh mestre; quanto custa a bengala?

— Não é nada; não é nada; pode-se ir embora.

O que o ferreiro queria era vê-lo pelas costas; disse o rapaz:

— Pois amanhã cá torno para ajustarmos as contas.

Assim foi; no outro dia trouxe a mãe a casa do ferreiro:

— Oh mestre! então você não conhece esta mulher?

— Não senhor.

— Pois você atreve-se a dizer que a não conhece, tendo-a recebido, dormido com ela e sendo eu seu filho? Pois agora aí a tem, e veja como a trata.

O ferreiro conheceu a mulher, levou-a para casa, quis abraçar o filho, e pediu para viverem todos juntos; diz agora o rapaz:

— Eu vou por esse mundo adiante, que não me falta que fazer.

Foi-se embora; passando lá por umas matas, viu um homem a arrancar pinheiros à mão, como se fossem tremoceiros; ficou pasmado da valentia, e disse:

— Oh homenzinho! você como se chama?

— Eu chamo-me o Arranca-Pinheiros; mas dizem-me que há outro homem mais valente do que eu, que é o da Bengala de dezesseis quintais.

— Quer você vir comigo por esse mundo além?

— Iria, mas só com homem da minha igualha.

Ele então puxou da bengala e ensarilhou-a no ar. O outro ficou pasmado, e foram-se ambos por aí fora muito amigos. Andaram, andaram, até que foram dar a um sítio onde estava um homem que enfincava as mãos no chão, e com os pés descoroava os montes e punha-os rasos como uma cachada.

Disse o da bengala:

— Oh homem! você como se chama?

— Eu sou o Arrasa-Montanhas; mas olhe que há um homem mais valente do que eu, chamado o Bengala de dezesseis quintais, que eu ainda dava alguma coisa para vê-lo.

O rapaz ensarilhou no ar a bengala, e ficaram todos três conhecidos. Combinaram ir por esse mundo, e do que arranjassem repartirem-no entre si. Foram dar a uma praia muito linda, onde estavam duas raparigas a banharem-se; ora o Bengala de dezesseis quintais viu que elas atiravam uma para a outra duas bolas de vidro, que se atravessavam no ar. E enquanto estavam neste jogo, ele foi-se chegando sorrateiro, estendeu a mão e apanhou de uma só vez as duas bolas de vidro. Meteu-as na algibeira, e as duas raparigas desapareceram.

Foram-se os três amigos andando, e chegaram lá a um escampado, onde estavam umas casarias; entraram. Havia muita mobília, camas, cozinha, mas não aparecia ninguém. Disse o da Bengala de dezesseis quintais:

— Fiquemos aqui a descansar. Mas o melhor era irem vocês ambos apanhar alguma caça, enquanto eu vou cozinhar esta que trago aqui.

Os outros assim fizeram. Bengala de dezesseis quintais amanhou os coelhos e lebres que trazia, pôs tudo ao lume, e enquanto foi buscar uma pedra de sal, sai-lhe debaixo de uma mesa, por um alçapão, um molequinho de bota vermelha, vai à panela, furta-lhe tudo e mija-lhe dentro. Bengala de dezesseis quintais ainda agarrou numa acha para o arranjar, mas o molequinho safou-se, que foi um alho. Quando os companheiros vieram, ele contou-lhe tudo, mas os outros não quiseram acreditar, dizendo que ele se tinha regalado com a comida. Disse ele:

— Pois fique agora o Arranca-Pinheiros cozinhando esta caca, que nós vamos apanhar mais.

Ficou Arranca-Pinheiros; veio o molequinho das botas vermelhas, furtou tudo e mijou-lhe na panela. Ele ainda correu atrás dele, mas viste-lo. Vieram os outros, mas só o Arrasa-Montanhas é que não queria acreditar. Ficou ele desta vez para fazer o cozinhado; mas como campava de esperto, aconteceu-lhe o mesmo. Disse agora o Bengala de dezesseis quintais:

— Deixa-te estar, meu molequinho, que quem te vai agarrar sou eu.

E tiraram a mesa que estava em cima do alçapão, e viram um poço muito fundo e escuro lá para dentro. Ele mandou o Arranca-Pinheiros, que fosse buscar troncos de árvores e ramalhoças, que as torcesse e fizesse um calabre para um deles descer lá abaixo. Assim fez; quando estava tudo pronto, e o calabre chegava ao fundo do poço, disse o Bengala de dezesseis quintais:

— Quem vai lá abaixo sou eu.

Desceu, desceu, e chegou ao fundo, enquanto os outros ficaram segurando na corda; lá embaixo era um grande alpendre com muitas portarias. Bateu a uma com a bengala, mas ninguém lhe respondeu; tornou a bater, e disse:

— Se não respondem, meto a porta dentro.

Falaram de lá:

— Quem é que está aí?

— É o Bengala de dezesseis quintais; abra.

Abriram; era uma mulher que fazia de porteira:

— Oh homem, vai-te embora, que aqui mora a bicha de sete cabeças, que te encanta e nunca mais sais daqui.

— Deixa estar; com ela é que me eu quero.

Chega a bicha bufando toda assanhada:

— Aqui cheira-me a carne de gente.

Vai o Bengala de dezesseis quintais, ferra-lhe tamanha estourada de meio a meio, que a deixou logo ali esborrachada. À primeira gota de sangue que derramou desencantou-se a menina, e ele conheceu que era uma daquelas que vira no banho na praia do mar. Para se desenganar perguntou-lhe:

— De quem é esta bola de vidro?

— É minha; e ainda hás de ter na algibeira outra que é de minha irmã que está ali naquela outra porta encantada.

— Deixa estar, que eu é que vou livrá-la; mas antes de tudo vou-te por lá em cima.

Deu sinal, e os dois companheiros puxaram a corda. Enquanto eles iam subindo a menina tirou um anel do dedo, e disse:

— Toma lá a minha memória; enquanto estiver ao pé de ti é que poderei falar; sem tu estares ficarei muda.

O Bengala de dezesseis quintais tornou a descer ao poço e chegou à outra porta; bateu, e só depois de muito bater, é que lhe abriram; era outra mulher, que lhe disse:

— Fuja daqui, homem, quando não vem o molequinho que o mata.

— Ai o molequinho das botas vermelhas! Com esse é que me eu quero.

— Olhe que ele não tarda, que foi buscar de comer; ainda que se lhe bata, nada lhe faz mal; só se for com aquela espada preta que está ali pendurada. Nisto chega o molequinho:

— Aqui cheira-me a carne de gente.

Bengala de dezesseis quintais tinha-se escondido detrás da porta, e assim que o apanhou a jeito deu-lhe tamanha estourada, que o açapou no chão. Mas o molequinho levantou-se como se nada fosse, e disse:

— Ah, se isso vai assim, então vamos fazer aqui rusga. Pega nesta espada branca, que eu pego na preta.

O rapaz que já estava avisado pela mulher, disse:

— Nessa é que eu não caio; ou há de ser com a minha bengala, ou senão com a espada preta.

O molequinho, que não queria os ossos amassados, antes quis ceder a espada preta; vai o rapaz ao primeiro golpe, corta-lhe uma orelha, e meteu-a na algibeira. Assim que derramou sangue a menina desencantou-se, e ele mostrou-lhe a outra bola de vidro. Então ela contou-lhe que estava com sua irmã encantada, e que eram filhas de um rei, e deu-lhe também o anel da sua memória, para não poder ter fala para outra pessoa senão a ele. Bengala de dezesseis quintais meteu-se com a princesa no cesto, e deu sinal para o içarem. Os companheiros ficaram muito contentes; e vai ele viu que se tinha esquecido da bengala no poço, e disse que esperassem um bocadinho enquanto a ia buscar. Assim que os outros o apanharam a meio do poço largaram cordas e tudo e ele caiu lá embaixo; safaram-se ambos com as duas princesas. O rapaz viu-se perdido, porque não podia sair do poço; mas lembra-se da orelha do molequinho, e ferra-lhe uma dentada. Apareceu-lhe logo o das botas vermelhas:

— O que é que tu queres?

— Quero que me leves daqui para fora.

O molequinho transformou-se logo num bode e subiu pelo poço até meio caminho; depois tornou a cair:

— Só te boto lá em cima, se me deres a minha orelha.

— Pois sim.

Foi num pronto. Assim que Bengala de dezesseis quintais se achou cá fora, molequinho a dizer:

— Dá-me a minha orelha.

— Só ta dou, se me levares para onde foram os meus companheiros.

O molequinho transformou-se logo num begueiro, e foi por aí fora dar ao palácio do rei. Havia lá festa, porque o rei estava muito contente por se terem desencantado as filhas, e já se tratava das festas do casamento delas com os dois homens. Mas o rei tinha muita pena das filhas serem mudas. Disse o jumentinho ao da Bengala:

— Dá-me agora a minha orelha!

— Só se me levares onde estão as princesas.

O begueiro subiu pelas escadarias, e foi por corredores dar ao quarto das princesas. Elas assim que o viram começaram logo a falar e contaram-lhe tudo. Foram dizer ao rei que estava um homem no quarto das princesas, e que elas falavam. Veio o rei, e a princípio queria mandar matar o homem, mas as princesas contaram que ele é que as tinha desencantado, e que só ele é que tinha os anéis da memória, e por isso só com ele é que podiam falar.

Disse o jumentinho ao rapaz:

— Dá-me agora a minha orelha.

— Dou-ta, mas só depois de ter casado com a princesa herdeira do reino.

O rei consentiu no casamento, e aconteceu que a primeira que ele tinha desencantado é que era a princesa herdeira, e por isso a outra não teve de que ter ciúmes. Os dois homens que tinham fugido com elas, tiveram medo dos poderes do Bengala de dezesseis quintais, e não estavam para filustrias, deram à perna. Torna o molequinho a aparecer ao rapaz:

— Dá-me agora a minha orelha.

— Só ta dou, quando arranjares as coisas de jeito que eu entre a reinar.

O caso é que o rei deu-lhe uma doença, e foi indo, a ficar chupadinho, que morreu. Bengala de dezesseis quintais foi aclamado rei, e só depois de subir ao trono é que deu a orelha a seu dono.

 

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Ano de publicação: 1883
Origem: Portugal (Santa Maria — Famalicão)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)

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