A BENGALA DE DEZESSEIS
QUINTAIS
Era uma vez um ferreiro, que tratava muito
mal a mulher com pancadas, e de uma vez tantas lhe deu, que sem se importar que
ela andava ocupada de meses a pôs fora de casa. A pobre da mulher foi para os
montes, e coitadinha, lá se agasalhou numa lapa e comia ervinhas do campo.
Passado tempo teve um menino, e quando chegou à idade dava-lhe também a comer
ervas; mas ele tornou-se muito forte, e subia às árvores mais altas e agarrava
coelhos, lebres, raposas e lobos tudo à mão. Vai de uma vez, pelas conversas
que tinha tido com a mãe, pediu-lhe para ir por aí abaixo ver esses territórios
e casarias da cidade, e foi.
Chegante lá, estava um ferreiro a trabalhar à
açafra, e ele disse:
— Oh mestre! quero que me faça um bengala de
ferro de doze arrobas!
— O freguês sabe o que diz? olhe que doze
arrobas não é lá qualquer coisa.
O rapaz conheceu pela cara e modos do
ferreiro, que ele era seu pai, mas calou-se consigo; depois disse:
— Então se doze arrobas ainda é pouco,
faça-me a bengala de dezesseis arrobas.
— Oh freguês! olhe cá para mim direito.
— Olho, sim senhor; que eu não estou a
mangar; e já que você acha pouco, faça-me a bengala de dezesseis quintais.
O ferreiro disse que sim, e não ajustou
preço; o rapaz foi-se embora e contou tudo à mãe. Chegado o dia em que a obra
devia ficar pronta, ele foi à porta do ferreiro e viu muitos homens e uma junta
de bois a puxarem a bengala de dezesseis quintais para a porem na rua. O rapaz
bota logo a mão à bengala e começa a ensarilhar com ela no ar, como se fosse um
junco. O ferreiro e os outros homens com medo de ficarem esborrachados,
começaram-se a esconder por todos os cantos; diz ele:
— Oh mestre; quanto custa a bengala?
— Não é nada; não é nada; pode-se ir embora.
O que o ferreiro queria era vê-lo pelas
costas; disse o rapaz:
— Pois amanhã cá torno para ajustarmos as
contas.
Assim foi; no outro dia trouxe a mãe a casa
do ferreiro:
— Oh mestre! então você não conhece esta
mulher?
— Não senhor.
— Pois você atreve-se a dizer que a não
conhece, tendo-a recebido, dormido com ela e sendo eu seu filho? Pois agora aí
a tem, e veja como a trata.
O ferreiro conheceu a mulher, levou-a para
casa, quis abraçar o filho, e pediu para viverem todos juntos; diz agora o
rapaz:
— Eu vou por esse mundo adiante, que não me
falta que fazer.
Foi-se embora; passando lá por umas matas,
viu um homem a arrancar pinheiros à mão, como se fossem tremoceiros; ficou
pasmado da valentia, e disse:
— Oh homenzinho! você como se chama?
— Eu chamo-me o Arranca-Pinheiros; mas dizem-me
que há outro homem mais valente do que eu, que é o da Bengala de dezesseis
quintais.
— Quer você vir comigo por esse mundo além?
— Iria, mas só com homem da minha igualha.
Ele então puxou da bengala e ensarilhou-a no
ar. O outro ficou pasmado, e foram-se ambos por aí fora muito amigos. Andaram,
andaram, até que foram dar a um sítio onde estava um homem que enfincava as
mãos no chão, e com os pés descoroava os montes e punha-os rasos como uma
cachada.
Disse o da bengala:
— Oh homem! você como se chama?
— Eu sou o Arrasa-Montanhas; mas olhe que há
um homem mais valente do que eu, chamado o Bengala de dezesseis quintais, que
eu ainda dava alguma coisa para vê-lo.
O rapaz ensarilhou no ar a bengala, e ficaram
todos três conhecidos. Combinaram ir por esse mundo, e do que arranjassem
repartirem-no entre si. Foram dar a uma praia muito linda, onde estavam duas
raparigas a banharem-se; ora o Bengala de dezesseis quintais viu que elas
atiravam uma para a outra duas bolas de vidro, que se atravessavam no ar. E
enquanto estavam neste jogo, ele foi-se chegando sorrateiro, estendeu a mão e
apanhou de uma só vez as duas bolas de vidro. Meteu-as na algibeira, e as duas
raparigas desapareceram.
Foram-se os três amigos andando, e chegaram
lá a um escampado, onde estavam umas casarias; entraram. Havia muita mobília,
camas, cozinha, mas não aparecia ninguém. Disse o da Bengala de dezesseis
quintais:
— Fiquemos aqui a descansar. Mas o melhor era
irem vocês ambos apanhar alguma caça, enquanto eu vou cozinhar esta que trago
aqui.
Os outros assim fizeram. Bengala de dezesseis
quintais amanhou os coelhos e lebres que trazia, pôs tudo ao lume, e enquanto
foi buscar uma pedra de sal, sai-lhe debaixo de uma mesa, por um alçapão, um
molequinho de bota vermelha, vai à panela, furta-lhe tudo e mija-lhe dentro.
Bengala de dezesseis quintais ainda agarrou numa acha para o arranjar, mas o
molequinho safou-se, que foi um alho. Quando os companheiros vieram, ele
contou-lhe tudo, mas os outros não quiseram acreditar, dizendo que ele se tinha
regalado com a comida. Disse ele:
— Pois fique agora o Arranca-Pinheiros
cozinhando esta caca, que nós vamos apanhar mais.
Ficou Arranca-Pinheiros; veio o molequinho
das botas vermelhas, furtou tudo e mijou-lhe na panela. Ele ainda correu atrás
dele, mas viste-lo. Vieram os outros, mas só o Arrasa-Montanhas é que não
queria acreditar. Ficou ele desta vez para fazer o cozinhado; mas como campava
de esperto, aconteceu-lhe o mesmo. Disse agora o Bengala de dezesseis quintais:
— Deixa-te estar, meu molequinho, que quem te
vai agarrar sou eu.
E tiraram a mesa que estava em cima do
alçapão, e viram um poço muito fundo e escuro lá para dentro. Ele mandou o
Arranca-Pinheiros, que fosse buscar troncos de árvores e ramalhoças, que as
torcesse e fizesse um calabre para um deles descer lá abaixo. Assim fez; quando
estava tudo pronto, e o calabre chegava ao fundo do poço, disse o Bengala de
dezesseis quintais:
— Quem vai lá abaixo sou eu.
Desceu, desceu, e chegou ao fundo, enquanto
os outros ficaram segurando na corda; lá embaixo era um grande alpendre com
muitas portarias. Bateu a uma com a bengala, mas ninguém lhe respondeu; tornou
a bater, e disse:
— Se não respondem, meto a porta dentro.
Falaram de lá:
— Quem é que está aí?
— É o Bengala de dezesseis quintais; abra.
Abriram; era uma mulher que fazia de
porteira:
— Oh homem, vai-te embora, que aqui mora a
bicha de sete cabeças, que te encanta e nunca mais sais daqui.
— Deixa estar; com ela é que me eu quero.
Chega a bicha bufando toda assanhada:
— Aqui cheira-me a carne de gente.
Vai o Bengala de dezesseis quintais,
ferra-lhe tamanha estourada de meio a meio, que a deixou logo ali esborrachada.
À primeira gota de sangue que derramou desencantou-se a menina, e ele conheceu
que era uma daquelas que vira no banho na praia do mar. Para se desenganar
perguntou-lhe:
— De quem é esta bola de vidro?
— É minha; e ainda hás de ter na algibeira
outra que é de minha irmã que está ali naquela outra porta encantada.
— Deixa estar, que eu é que vou livrá-la; mas
antes de tudo vou-te por lá em cima.
Deu sinal, e os dois companheiros puxaram a
corda. Enquanto eles iam subindo a menina tirou um anel do dedo, e disse:
— Toma lá a minha memória; enquanto estiver
ao pé de ti é que poderei falar; sem tu estares ficarei muda.
O Bengala de dezesseis quintais tornou a
descer ao poço e chegou à outra porta; bateu, e só depois de muito bater, é que
lhe abriram; era outra mulher, que lhe disse:
— Fuja daqui, homem, quando não vem o
molequinho que o mata.
— Ai o molequinho das botas vermelhas! Com
esse é que me eu quero.
— Olhe que ele não tarda, que foi buscar de
comer; ainda que se lhe bata, nada lhe faz mal; só se for com aquela espada
preta que está ali pendurada. Nisto chega o molequinho:
— Aqui cheira-me a carne de gente.
Bengala de dezesseis quintais tinha-se
escondido detrás da porta, e assim que o apanhou a jeito deu-lhe tamanha
estourada, que o açapou no chão. Mas o molequinho levantou-se como se nada
fosse, e disse:
— Ah, se isso vai assim, então vamos fazer
aqui rusga. Pega nesta espada branca, que eu pego na preta.
O rapaz que já estava avisado pela mulher,
disse:
— Nessa é que eu não caio; ou há de ser com a
minha bengala, ou senão com a espada preta.
O molequinho, que não queria os ossos
amassados, antes quis ceder a espada preta; vai o rapaz ao primeiro golpe,
corta-lhe uma orelha, e meteu-a na algibeira. Assim que derramou sangue a
menina desencantou-se, e ele mostrou-lhe a outra bola de vidro. Então ela
contou-lhe que estava com sua irmã encantada, e que eram filhas de um rei, e
deu-lhe também o anel da sua memória, para não poder ter fala para outra pessoa
senão a ele. Bengala de dezesseis quintais meteu-se com a princesa no cesto, e
deu sinal para o içarem. Os companheiros ficaram muito contentes; e vai ele viu
que se tinha esquecido da bengala no poço, e disse que esperassem um bocadinho
enquanto a ia buscar. Assim que os outros o apanharam a meio do poço largaram
cordas e tudo e ele caiu lá embaixo; safaram-se ambos com as duas princesas. O
rapaz viu-se perdido, porque não podia sair do poço; mas lembra-se da orelha do
molequinho, e ferra-lhe uma dentada. Apareceu-lhe logo o das botas vermelhas:
— O que é que tu queres?
— Quero que me leves daqui para fora.
O molequinho transformou-se logo num bode e
subiu pelo poço até meio caminho; depois tornou a cair:
— Só te boto lá em cima, se me deres a minha
orelha.
— Pois sim.
Foi num pronto. Assim que Bengala de
dezesseis quintais se achou cá fora, molequinho a dizer:
— Dá-me a minha orelha.
— Só ta dou, se me levares para onde foram os
meus companheiros.
O molequinho transformou-se logo num
begueiro, e foi por aí fora dar ao palácio do rei. Havia lá festa, porque o rei
estava muito contente por se terem desencantado as filhas, e já se tratava das
festas do casamento delas com os dois homens. Mas o rei tinha muita pena das
filhas serem mudas. Disse o jumentinho ao da Bengala:
— Dá-me agora a minha orelha!
— Só se me levares onde estão as princesas.
O begueiro subiu pelas escadarias, e foi por
corredores dar ao quarto das princesas. Elas assim que o viram começaram logo a
falar e contaram-lhe tudo. Foram dizer ao rei que estava um homem no quarto das
princesas, e que elas falavam. Veio o rei, e a princípio queria mandar matar o
homem, mas as princesas contaram que ele é que as tinha desencantado, e que só
ele é que tinha os anéis da memória, e por isso só com ele é que podiam falar.
Disse o jumentinho ao rapaz:
— Dá-me agora a minha orelha.
— Dou-ta, mas só depois de ter casado com a
princesa herdeira do reino.
O rei consentiu no casamento, e aconteceu que
a primeira que ele tinha desencantado é que era a princesa herdeira, e por isso
a outra não teve de que ter ciúmes. Os dois homens que tinham fugido com elas,
tiveram medo dos poderes do Bengala de dezesseis quintais, e não estavam para
filustrias, deram à perna. Torna o molequinho a aparecer ao rapaz:
— Dá-me agora a minha orelha.
— Só ta dou, quando arranjares as coisas de
jeito que eu entre a reinar.
O caso é que o rei deu-lhe uma doença, e foi
indo, a ficar chupadinho, que morreu. Bengala de dezesseis quintais foi
aclamado rei, e só depois de subir ao trono é que deu a orelha a seu dono.
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Ano de publicação: 1883
Origem: Portugal (Santa Maria —
Famalicão)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2021)
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