quinta-feira, 25 de novembro de 2021

O velho, o menino e a mulinha (Fábula), de Monteiro Lobato

 

O VELHO, O MENINO E A MULINHA

O pai chamou o filho e disse:

 — Vá ao pasto, pegue a bestinha ruana e apronte-se para irmos à cidade, que quero vendê-la.

O menino foi e trouxe a mula. Passou-lhe a raspadeira, escovou-a e partiram os dois a pé, puxando-a pelo cabresto. Queriam que ela chegasse descansada para melhor impressionar os compradores.

De repente:

 — Esta é boa! – exclamou um viajante ao avistá-los. O animal vazio e o pobre velho a pé! Que despropósito! Será promessa, penitência ou caduquice?...

E lá se foi, a rir.

O velho achou que o viajante tinha razão e ordenou ao menino:

 — Puxa a mula, meu filho. Eu vou montado e assim tapo a boca do mundo.

Tapar a boca do mundo, que bobagem! O velho compreendeu isso logo adiante, ao passar por um bando de lavadeiras ocupadas em bater roupas num córrego.

 — Que graça! – exclamaram elas. – O marmanjão montado com todo o sossego e o pobre menino a pé... Há cada pai malvado por este mundo de Cristo... Credo!...

O velho danou e, sem dizer palavra, fez sinal ao filho para que subisse à garupa.

 — Quero só ver o que dizem agora...

Viu logo. O Izé Biriba, estafeta do correio, cruzou com eles e exclamou:

 — Que idiotas! Querem vender o animal e montam os dois de uma vez... Assim, meu velho, o que chega à cidade não é mais a mulinha; é a sombra da mulinha...

 — Ele tem razão, meu filho, precisamos não judiar o animal. Eu apeio e você, que é levezinho, vai montado.

Assim fizeram, e caminharam em paz um quilômetro, até o encontro com um sujeito que tirou o chapéu e saudou o pequeno respeitosamente:

 — Bom dia, príncipe!

 — Por que príncipe? – indagou o menino.

 — É boa! Porque só príncipes andam assim de lacaio à rédea...

 — Lacaio, eu? – esbravejou o velho. – Que desaforo! Desce, desce, meu filho, e carreguemos o burro às costas. Talvez isto contente o mundo...

Nem assim. Um grupo de rapazes, vendo a estranha cavalgada, acudiu em tumulto, com vaias:

 — Hu! Hu! Olha a trempe de três burros, dois de dois pés e um de quatro! Resta saber qual dos três é o mais burro...

 — Sou eu! – replicou o velho, arriando a carga. Sou eu, porque venho há uma hora fazendo não o que quero, mas o que quer o mundo. Daqui em diante, porém, farei o que me manda a consciência, pouco me importando que o mundo concorde ou não. Já vi que morre doido quem procura contentar toda gente...


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Ano de publicação: 1922.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)

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