Havia um pescador que tinha mulher e uma
filha, e costumava pescar sempre num rio que ficava a pouca distância de sua
casa. Ora uma vez o pescador foi à pesca, e largou por muitas vezes a tarrafa
na água, e não tirou nem um peixe. Já desapontado, e depois de ter corrido os
poços mais apropriados à pesca e sem encontrar nada, ia-se retirando para casa
muito triste. Ao pôr-se a caminho, ouviu uma voz que lhe dizia:
— Se
me deres a primeira coisa que avistares quando chegares em tua casa, eu te
darei muito peixe.
O homem pôs-se a considerar consigo mesmo, e
dizia: "Ora, senhor, quando eu chego em casa, a primeira coisa que me
aparece é a minha cachorrinha de balaio; não faz mal; posso dá-la." Virou-se
para o lado de onde vinha a voz, e disse alto:
— Pois
bem; aceito.
A voz respondeu:
— Pois
pesca ali.
O pescador meteu a tarrafa, e quando tirou
vinha se rasgando de peixe. A voz lhe disse:
— Sábado
a estas horas vem me trazer a primeira coisa que hás de ver ao chegares à tua
casa.
O homem retirou-se. Ao avistar a sua casa, a
primeira coisa que viu foi a sua filha, que, já estando inquieta por causa da
sua demora, estava só pondo o olho no caminho, a ver se o descobria. O homem
ficou muito triste, e entrou em casa com ar fechado, e atirou o peixe para um
lado e não deu nem uma palavra.
A mulher e a filha se admiraram daquilo, e
perguntaram qual a razão daquela tristeza. Depois de muito instado, o pescador
confessou a verdade. A moça não desanimou e disse:
— Não
tenho medo, meu pai; se vossemecê deu a sua palavra de honra, eu irei.
A moça tinha um cavalo com quem consultava
tudo, e foi ter com ele e lhe contou o ocorrido. O cavalo disse:
— Não tem nada; monte-se em mim no sábado, e faça o que eu vou lhe dizer: quando chegarmos à beira do rio, e depois de seu pai se despedir da senhora, a tal voz, que é de um bicho muito feio, há de dizer "Adeus, siá Maria Gomes!" E a senhora há de responder: "Adeus, seu Sarjatário!" Ele há de dizer: "Muito me admira, siá Maria Gomes, da senhora não me conhecer e por meu nome tratar." Ao que a senhora há de responder: "Oh, seu Sarjatário, muito me admiro do senhor não me conhecer e por meu nome tratar." Ele há de dizer: "Está bom, está bom! Caminhe, caminhe!" Hão de seguir e passar por umas campinas muito extensas e depois por umas matas muito altas e cerradas de fazer medo. Lá no fim das matas há um grande muro, que tem um portão, e o Sarjatário há de mandar a senhora abrir a porta e entrar adiante. A senhora não caia nessa e diga: "Não, seu Sarjatário, vá o senhor adiante que sabe os quatro cantos de sua casa." Ele há de abrir a porta e entrar; nisso a senhora passe a mão na chave; dê a volta e tranque a porta e deixe o bicho lá preso, e deixe o resto por minha conta.
Assim foi. No dia aprazado, a moça montou no seu cavalo Bufanim e seguiu. Na beira do rio avistou aquele bicho-homem de barbas muito compridas e cabelos enormes da forma de samambaias, e fez tudo que o cavalo lhe ensinou. Depois que fechou o monstro lá dentro do muro, ela partiu no Bufanim, voando como o vento. Depois de muito andarem, e de já não ouvirem mais os urros que o Sarjatário ficou dando, e quando já estavam muito longe, foram dar num reino. Aí o Bufanim aconselhou a moça que se disfarçasse em homem. Assim fez a moça; entrou para a cidade, alugou uma casa e passava por um moço. Tomou muitas relações e tudo quanto fazia era sempre com os conselhos do Bufanim. Passados alguns tempos — o moço agora não é mais ela, é ele — foi apresentado ao rei, que era solteiro, por um de seus amigos. O rei gostou muito do moço e sempre o convidava para ir passar dias em palácio. O Bufanim recomendou-lhe todo o cuidado para não ser descoberto. Ora, a mãe do rei começou a dizer ao filho:
— Aquele
teu amigo não é homem, é mulher.
Ao que respondia o rei:
— Lá
vem minha mãe com as histórias dela... Qual, minha mãe! É homem e bem homem!
A rainha respondia:
— Está
bom, vamos para diante.
Um dia a rainha disse ao rei:
— Meu
filho, se tu queres ver se teu amigo é mulher ou não, convida-o para dares com
ele um passeio pela cidade, e leva-o aos estabelecimentos de roupas e modas, e
hás de ver como ele se há de agradar justamente dos objetos pertencentes às
senhoras.
O rei ficou certo de o fazer, e convidou de
fato o moço para um passeio, ao que ele acedeu. Foi ter com Bufanim e o cavalo
lhe disse:
— Estamos
perdidos!... Agora se descobre o segredo... Enfim, veja bem o que vai fazer:
quando entrar nas lojas de roupas e modas com o rei, nunca se agrade de objeto
algum de senhora, sempre dos de homem. Quando o rei lhe mostrar um belo
vestido, mostre-lhe um bonito corte de calças, e assim por diante.
Assim foi; no dia aprazado para o passeio, o
rei percorreu com ele toda a cidade entrando nas lojas mais importantes, e
nunca pôde pilhar nada. Largou-se para palácio e disse à velha rainha:
— Eu
não disse, minha mãe? O rapaz é homem e bem homem; não se agradou de objeto
algum que não fosse de homem!
A velha respondeu:
— Isto
é de propósito para não ser descoberto; mas ele é mulher; se tu queres ver
convida-o para ir dar um passeio nas tuas fazendas com outros teus amigos, e lá
convida-o para tomar um banho e hás de ver que ele não há de querer.
O rei convidou o moço para irem um certo dia
às fazendas e tomarem um banho, e o moço aceitou.
Foi ter o moço com Bufanim e lhe contou o
caso. Bufanim disse:
— Eh!...
Está tudo perdido! Enfim, faça o que eu lhe vou dizer: chegando lá nos tanques
do rei não faça cerimônia, vá tirando a sua roupa como os outros; quando a
senhora já estiver de ceroulas e camisa eu me solto e entro a dar coices e
patadas nos outros cavalos; os criados do rei hão de correr para me pegar, e eu
hei de machucar alguns, até que a senhora diga que só a senhora é capaz de me
pegar. Corra atrás de mim até ficar cansada e suada e depois queira tomar o
banho; o rei, vendo isto, não há de consentir, e assim a senhora escapa do
banho.
Assim foi; no dia marcado deu-se tudo tal e
qual, e o moço escapou do banho com instâncias do rei. Chegando este a palácio disse:
— Ora,
minha mãe, o rapaz é homem; ia já se pondo nu e queria tomar banho à força
apesar de suado.
— Mas suado por que, meu filho?
— Por ter corrido atrás de seu cavalo — disse
o rei.
— Isto
é de propósito, respondeu a rainha; se tu queres ver, continuou ela, se ele é
mulher ou não, convida-o para vir passar uma noite contigo ajudando-te a copiar
a tua correspondência; ele não há de aguentar a noite inteira acordado, e
quando ele pegar no sono, desabotoa-lhe a camisa e hás de ver os seios de
mulher.
O rei convidou o amigo, para passar uma noite
em palácio ajudando a copiar a sua correspondência. O moço consultou com o
Bufanim, que lhe respondeu:
— Desta
a senhora não escapa. Enfim faça tudo por não dormir, senão é descoberta com
toda a certeza.
Na noite marcada, o moço se apresentou e
começou o trabalho. O rei ditava e ele escrevia. Foram indo, foram indo e nada
de ninguém dormir. Mas lá para quatro horas da madrugada o moço cochilou e pegou
no sono. Aí o rei veio devagarinho e desabotoou-lhe a camisa e pegou nos seios,
que ali estavam durinhos e guardadinhos... O rei quando lhes botou a mão em
cima foi dizendo:
— Oh,
senhora dona!
Aí apareceu logo a mãe do rei e deu à moça
roupas de mulher, e ela, muito envergonhada, pediu muitas desculpas ao rei, que
logo a pediu em casamento. Depois de casados o Bufanim conservou-se sempre em
poder da moça. Passados alguns meses a nova rainha apareceu pejada e o rei teve
que seguir para a guerra, e levou o Bufanim. Na despedida o cavalo disse à
rainha:
— Quando
se achar em algum perigo grite por mim três vezes, que eu lhe hei de aparecer.
Depois de estar o rei na guerra já algum
tempo, a rainha deu à luz dois meninos, a coisa mais linda que dar-se podia. A
velha mãe do rei ficou muito contente, e escreveu ao filho dizendo que sua nora
tinha dado à luz dois príncipes, que estavam muito fortes, e eram muito belos,
e mandou levar a carta por um soldado, recomendando-lhe muito cuidado. O
soldado, por caiporismo, foi, depois de muitos dias de viagem, pernoitar na
casa do Sarjatário, que se fingiu de tolo, e perguntou que novidades havia. O
soldado lhe contou que não sabia de nada, mas que levava uma carta para o rei.
O Sarjatário, quando o soldado pegou no sono, foi à sua mala, tirou a carta, e
botou lá outra imitando a letra, e dizendo que a rainha tinha dado à luz dois
sapinhos, e que a corte estava coberta de luto. O soldado seguiu viagem e
entregou a carta ao rei, que ficou muito aflito, mas mandou em resposta à mãe —
que sapinhos ou não, fossem eles muito bem tratados. O soldado seguiu com a
resposta, e, ainda por caiporismo, foi pedir rancho na casa do Sarjatário. De
novo este monstro foi à mala do soldado e tirou a carta e botou outra no lugar,
imitando a letra do rei, e dizendo que a sua mãe mandasse pôr a sua mulher e os
dois meninos na Montanha das Feras. O soldado seguiu, e, quando a rainha velha
leu a resposta, ficou muito agonizada e mandou reunir os conselheiros para lhe
dizerem se devia executar aquela ordem terrível. Todos ficaram muito aflitos,
mas responderam que palavra de rei não volta atrás, e por isso devia ser
cumprida a ordem. Assim se fez, e a rainha teve de seguir com seus dois
filhinhos para a Montanha das Feras. As pessoas que as foram levar,
retiraram-se, e a rainha com seus filhos viram-se sozinhos. Mas as feras
bravias que ali havia não as ofenderam. Eis que de repente apareceu aos olhos
da rainha aquele monstro horrível e medonho, era o Sarjatário!
— Agora vim me vingar, senhora Maria Gomes.
Vamos a ver quem pode mais — disse o monstro.
A rainha ficou muito aterrorizada e pediu
compaixão, mas o Sarjatário a nada se moveu. A rainha, convencida de que ia
morrer, pediu para dar três gritos.
— Pode
dar cem ou mil! — respondeu o
Sarjatário. Então ela gritou:
— Bufanim,
ó Bufanim!
Isto três vezes. No fim do terceiro grito o
Bufanim apresentou-se. O Sarjatário, quando o avistou, deu um pulo para o lado,
e pôs-se em distância. Então o cavalo disse à moça:
— Eu
vou ter uma grande luta com aquele monstro e vou morrer; mas ele também há de
morrer. Eu peço somente que arrume uma grande fogueira e deite nela o corpo do
monstro; o meu corpo deixe-o aí ao tempo para os urubus o comerem.
Dito isto atirou-se ao Sarjatário e começou a
briga. A luta foi furibunda, e os dois caíram mortos, cada qual para seu lado.
A moça fez o que o Bufanim lhe tinha dito, e largou na fogueira o cadáver do
Sarjatário e deixou exposto ao ar o do cavalo. Depois de muito chorar, e
abraçar o pobre cavalo, ela foi seguindo por uma grande campina que ali havia.
Depois de muito andar, avistou muito ao longe uma casa. Ao chegar perto,
reconheceu um palácio grande e muito ornado. Entrou e não viu ninguém. À hora
de comer viu aparecer uma mesa muito preparada, e ela sentou-se e comeu,
aparecendo somente umas mãos que lhe indicavam os objetos, mas sem a moça ver
ninguém, nem ouvir falar. Também as mãos apresentavam comida para as
criancinhas. À noite apareceram luzes acesas e camas para se deitarem. Assim
passou a moça muitos meses, até que o rei, voltando da campanha, e não
encontrando a mulher, e sabendo de tudo ficou desesperado, e quis também ir
para a Montanha das Feras; viu alguns ossos pelo chão e sinal de fogo, mas
reconheceu que não eram ossos de gente humana. Pôs-se a andar pela campina, e
seguiu na mesma direção que tinha levado a rainha. No cabo de muito andar foi
ter ao mesmo palácio, e avistou uma moça na janela, ao mesmo tempo que um dos
meninos, que neste tempo já falavam, gritou:
— Olhe,
mamãe, lá vem papai!
— Ah, quem dera que fosse teu pai!
— É ele mesmo — respondeu o rei.
Muita foi a alegria e satisfação de todos,
que voltaram para a cidade e viveram felizes ainda muitos anos.
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