terça-feira, 23 de novembro de 2021

O sabiá e o urubu (Fábula), de Monteiro Lobato

 

O SABIÁ E O URUBU
 

Era à tardinha. Morria o sol no horizonte enquanto as sombras se alongavam na terra. Um sabiá cantava tão lindo que até s laranjeiras pareciam absortas à escuta.

Estorce-se de inveja o urubu e queixa-se:

— Mal abre o bico este passarinho e o mundo se enleva. Eu, entretanto, sou um espantalho de que todos fogem com repugnância... Se ele chega, tudo se alegra; se eu me aproximo, todos recuam... Ele, dizem, traz felicidade; eu, mau agouro... A natureza foi injusta e cruel para comigo. Mas está em mim corrigir a natureza; mato-o, e desse modo me livro da raiva que seus gorjeios me provocam.

Pensando assim, aproximou-se do sabiá, que ao vê-lo armou as asas para a fuga.

— Não tenha medo, amigo! Venho para mais perto a fim de melhor gozar as delícias do canto. Julga que por ser urubu não dou valor à obras-primas da arte? Vamos lá, cante! Cante ao pé de mim aquela melodia com que há pouco você extasiava a natureza.

O ingênuo sabiá deu crédito àqueles mentirosos grasnos e permitiu que dele se aproximasse o traiçoeiro urubu. Mas este, logo que o pilhou ao alcance, deu-lhe tamanha bicada que o fez cair moribundo.

Arquejante, com os olhos já envidrados, geme o passarinho:

— Que mal fiz eu para merecer tanta ferocidade?

— Que mal fez? É boa! Cantou!... Cantou divinamente bem, como nunca urubu nenhum há de cantar. Ter talento: eis o grande crime!...

A inveja não admite o mérito.

 

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Ano de publicação: 1922.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)

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