Era à tardinha. Morria o sol no horizonte
enquanto as sombras se alongavam na terra. Um sabiá cantava tão lindo que até s
laranjeiras pareciam absortas à escuta.
Estorce-se de inveja o urubu e queixa-se:
— Mal abre o bico este passarinho e o mundo
se enleva. Eu, entretanto, sou um espantalho de que todos fogem com
repugnância... Se ele chega, tudo se alegra; se eu me aproximo, todos recuam...
Ele, dizem, traz felicidade; eu, mau agouro... A natureza foi injusta e cruel
para comigo. Mas está em mim corrigir a natureza; mato-o, e desse modo me livro
da raiva que seus gorjeios me provocam.
Pensando assim, aproximou-se do sabiá, que ao
vê-lo armou as asas para a fuga.
— Não tenha medo, amigo! Venho para mais
perto a fim de melhor gozar as delícias do canto. Julga que por ser urubu não
dou valor à obras-primas da arte? Vamos lá, cante! Cante ao pé de mim aquela
melodia com que há pouco você extasiava a natureza.
O ingênuo sabiá deu crédito àqueles
mentirosos grasnos e permitiu que dele se aproximasse o traiçoeiro urubu. Mas
este, logo que o pilhou ao alcance, deu-lhe tamanha bicada que o fez cair
moribundo.
Arquejante, com os olhos já envidrados, geme
o passarinho:
— Que mal fiz eu para merecer tanta
ferocidade?
— Que mal fez? É boa! Cantou!... Cantou
divinamente bem, como nunca urubu nenhum há de cantar. Ter talento: eis o
grande crime!...
A inveja não admite o mérito.
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Ano de publicação: 1922.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2021)
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