Era uma vez um pinto diferente de todos os mais pintos do galinheiro. Que culpa tinha ele disso? Nenhuma. No entanto, todos judiavam dele — vejam só! — porque era sura...
O pobrezinho nem comer em paz podia. Na hora do milho, era zás! uma bicada daqui, zás! uma bicada dali, enquanto os outros, sossegadamente, enchiam o papo até estufar.
E se apanhava algum bichinho, grilo ou içá, era aquela certeza: a galinhada inteira punha-se a correr atrás dele até tomar o petisco.
Por causa disso o pinto sura vivia sempre com fome, encolhidinho pelos cantos, magro e mandiguera...
Certo dia perdeu a paciência. Um frangote carijó, que andava de namoro com umas frangas amarelas, deu-lhe, à vista dessas meninas de penas, uma tal sova de bicadas que o deixou descadeirado. As frangas entusiasmaram-se com a valentia do carijó, riram-se à grande do triste sovado que nem suster-se em pé podia. E chegaram, mesmo, a compor um versinho:
Foi
saracura,
Ó
pinto sura!
Quem te pregou
tamanha surra?
O pinto, desesperado, resolveu queixar-se ao rei.
— Levo-lhe uma carta — pensou lá consigo — e o rei há de atender-me. Depois, quero ver!...
Procurou pelo chão uma carta.
Bobinho como era, qualquer papelzinho para ele era carta.
Achou logo um pedacinho de papel quadrado e, tomando-o no bico, partiu em direção ao palácio do rei. Levava ainda um embornal cheio de milho para ir manducando pelo caminho.
Andou, andou, andou, até que deu com uma raposa sentada à beira do caminho com um cacho de uvas na mão.
— Bom dia, dona Raposa!
— Ora viva, pinto sura! Para onde vai com tanta pressa?
— Ao palácio do rei, entregar-lhe esta cartinha.
— Quer levar-me também?
— Só se você couber neste embornal...
— Caibo, sim! — disse a raposa, e com muito jeito acomodou-se dentro do embornal.
— Mas não me vá comer o milho, hein? — recomendou o pinto, fincando o pé na estrada.
Andou, andou, andou, até que deu com um rio de águas muito limpas, cheio de peixinhos. Parou para beber, e estava glug! glug! quando o rio disse:
— Amigo sura, que vontade de ir viajar com você!
— Pois vamos. Já levo comigo a raposa e nada me custa levar também um rio. Até é bom — porque não preciso parar no caminho quando tiver sede.
— Pois aceito o convite! — disse o rio. E, enrolando-se como um novelo, ajeitou-se dentro do embornal ao lado da raposa, a qual se encolheu toda e exclamou:
— Chispa! Arreda para lá, que me molha, senhor rio!
— Cuidadinho! — interveio o pinto. — Não me vão brigar aí dentro!...
E o senhor rio que não me molhe o milho.
Disse e continuou a viagem. E andou, andou, andou, até que deu com um espinheiro.
— Saia do meu caminho, ouriço! — intimou ele. — Saia da frente que quero passar!
— Hum! Como está valente o pinto sura!... — retorquiu o espinheiro.
— Saia da frente, já disse! — repetiu o pinto engrossando a voz. — Saia da frente, senão...
A raposa, ouvindo o bate-boca, espichou a cabeça para fora.
— Que é lá isso? — perguntou.
É este espelho sem aço que não me quer dar caminho!... — berrou o pinto, furioso.
A raposa virou-se para o espinheiro e propôs:
— Olhe, amigo, em vez de estar aí cercando o pinto sura, muito melhor que viesse cá dentro nos fazer companhia.
— Mas será que caibo nesse embornalzinho?
— Como não? Cá está o milho, estou eu, está o rio e ainda há lugar para muita gente. O pinto sura vai ao palácio do rei tratar dum negócio muito importante...
— Nesse caso, vou também! — resolveu o espinheiro — e dobrando os espinhos encolheu-se todo e acomodou-se no embornal.
O pinto, muito contente da vida, piou qui-qui-ri-qui-qui! — e lá se foi, de papo empinado e cartinha no bico, como um grande figurão!
De novo andou, andou, andou, até que, de repente, ao dobrar um espigão, viu lá embaixo o palácio do rei, alumiando de ouro e prata. Aqui o pinto, assombrado de tanta beleza, parou, com receio de continuar a viagem. Mas para não perder tempo enquanto refletia, engoliu vinte grãos de milho.
— Que leve a breca! — disse por fim. — Quem não arrisca, não petisca!
E dirigiu-se, firme, na direção do palácio real.
Lá chegou de tardezinha. Cumprimentou os guardas e foi entrando, muito senhor de si.
— Epa! Que sem-cerimônia é essa? — perguntou-lhe um criado de farda verde. — Que é que quer?
— Quero que não me aborreça! — respondeu o pinto, fechando a carranquinha. O criado abriu a boca, a pensar lá consigo: "Isto há de ser algum mágico disfarçado em pinto!" E deixou-o passar.
O amigo sura, então, com toda a importância, atravessou salões e mais salões até chegar à sala do trono, onde viu o rei, todo emproado, de coroa na cabeça e cetro na mão. Aproximou-se dele, dobrou os joelhos e — qui-ri-qui-qui! — entregou-lhe a carta.
O rei pegou no papelzinho, examinou-o de um lado e de outro; vendo que era um papel sujo apanhado no lixo, encheu-se de furor. Voltou-se para os guardas:
— Já com este pinto malcriado fora daqui! Ponham-no junto com as galinhas — e amanhã, panela com ele!...
O pobrezinho, agarrado pela asa, viu-se arrastado pelo palácio afora até um galinheiro onde várias galinhas orgulhosas esperavam a vez de serem mastigadas pela real dentuça de Sua Majestade. Mal o viram, começaram a judiar dele, dando-lhe bicadas ainda piores que as do carijó namorador.
Mas o pinto lembrou-se de que trazia no embornal a raposa; e, tirando-a para fora, disse:
— Raposinha amiga: dê um pega, dos bons, nestas emproadas!
A raposa, incontinenti — zás, zás! — deu cabo de todas as galinhas e dos galos que vieram defendê-las.
Livre, assim, daqueles inimigos, o pinto sura mais que depressa saltou o muro e "abriu" para trás, com quantas pernas tinha.
O rei, ao saber do acontecido, rebolou-se no chão de cólera; depois deu ordem, aos berros, para que em perseguição do pinto partisse um regimento de cavalaria.
O regimento partiu no galope — pá-tá—lá! pá-tá-lá! — erguendo nuvens de poeira.
Quando o pinto ouviu aquele tropel, tremeu de medo, com uma gota de suor frio na testa.
— Estou aqui, estou assado! — murmurou.
— Assado, nada! — falou de dentro do embornal uma voz. — Solte-me e verá.
Era o rio quem falava. O pinto, criando alma nova, soltou-o; e o rio, desenrolando-se por ali afora, inundou os campos e deteve a soldadesca.
Mas os soldados logo arranjaram canoas e conseguiram atravessar o rio.
Ao vê-los de novo galopando atrás dele, o pinto esfriou e disse:
— Estou aqui, estou em molho pardo!
— Molho pardo, nada! Solte-me e verá. Era o espinheiro quem falava.
Mais que depressa o pinto soltou o espinheiro, o qual, arrepiando os espinhos, fechou a estrada como tranqueira que nem porco-do-mato vara.
O pinto, vitorioso, subiu a um cupim e fez pito para os soldados. Depois encheu o papinho de milho e continuou a viagem, sossegadamente, ciscando bichinhos à beira da estrada.
Quando deu acordo, tinha chegado. Mas aqui ficou triste.
— Pobre de mim! — pensou. — Vai recomeçar a minha vida de animal judiado... Venci o rei, venci as galinhas do rei, venci os soldados do rei; mas pior que tudo isso é o malvado frangote carijó deste galinheiro. Que será de mim?
Enchendo-se de ânimo, porém, entrou no velho cercado onde nascera. Entrou ressabiado, com mil cautelas, espia de um lado, espia de outro.
Mas aconteceu o que ele jamais esperara. As galinhas vieram rodeá-lo, muito amáveis, com festinhas e olhares meigos. Quanto ao frango arreliento, nem sombra!
— Que é dele? — perguntou o sura.
— Foi para a panela — responderam as galinhas.
O pinto criou alma nova. Depois, olhando, olhando e não vendo o galo, indagou:
— E o galo esporudo?
— Morreu de gogó — disse com lágrimas nos olhos uma bela poedeira.
O pinto sura deu um pinote de alegria.
— E... e quem é o galo agora?
— É você, beleza!... — exclamaram todas as frangas em coro.
Só então o sura compreendeu que a viagem tinha levado muito tempo e ele não era mais o pobre pinto que dali partira e sim um formoso galo, de crista no alto do coco e esporas apontando nos pés.
Em vista disso pulou para cima dum jaca, estufou o papo e desferiu um canto de vitória:
Có-có-ri-có-có!
Quem é
o rei daqui?
E a galinhada inteira respondeu:
O galo sura só!
O pinto já não era mais pinto, e sim um
corajoso galo...
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Ano de
publicação: 1922.
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)
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