Havia um sapateiro muito tolo que tinha um
discípulo, que o aconselhava. Uma vez o sapateiro, botando um caco com goma
para esfriar, caíram nele sete moscas, que ficaram presas e morreram. O discípulo,
vendo aquilo, aconselhou ao mestre que escrevesse em letras grandes na copa de
seu chapéu: João Gurumete que de um golpe matou sete. Assim ele fez. O povo
quando viu aquilo ficou pensando que o sapateiro era um homem muito valente.
Aconteceu que apareceu um bicho bravo, que andava acabando tudo, comendo a
gente. Era um bicho de sete cabeças e sete línguas; todos os dias ele vinha
buscar sua porção de gente, e, de sete em sete, já tinha acabado os meninos da
cidade e estava devorando as donzelas. O rei mandou suas tropas acabar com o
bicho, mas nada puderam fazer. Foram dizer ao rei que havia na cidade um homem
muito destemido que só dum golpe tinha matado sete, e que só ele é que podia
dar cabo do bicho. O rei mandou chamar o João Gurumete e o mandou acabar com
aquela fera. O sapateiro ficou muito assustado mas não deu a entender ao rei, e
disse que ia matar o monstro. Saindo da presença do rei, foi ter com o
discípulo, quase chorando, que o valesse, que desta feita ele morreria. O
discípulo lhe disse:
— Não
tem nada; lá onde se encontra o bicho há uma igreja velha; você corra, quando o
avistar, e entre pela igreja adentro, e saia por um buraco que tem no fundo, e
deixe estar que o bicho há de entrar também, e então você feche a porta, e ele
fica preso lá dentro e morre de fome, e está acabada a história.
João Gurumete ficou muito contente e partiu;
muita gente o acompanhou para ver a morte do monstro. Quando o Gurumete avistou
o bicho meteu-se no mundo largo numa desfilada e entrou pela igreja adentro. O
bicho fera o acompanhou e entrou também. O sapateiro saiu pelo buraco que havia
no fundo da igreja, e o bicho, por ser muito grande, não pôde passar por ali. O
povo que estava da banda de fora fechou a porta, e o animal morreu lá dentro de
fome. João, então, cortou-lhe as sete cabeças e foi levar ao rei, que lhe deu o
título de conde e muito dinheiro. Passou-se.
Quando foi de outra vez apareceram três
gigantes muito grandes e temíveis que estavam assolando tudo, matando e
roubando, e ninguém podia dar cabo deles. Avisaram ao rei que só o Gurumete era
capaz de acabar com aquela peste. O rei mandou-o chamar e lhe encarregou de
livrar a cidade de tanto flagelo. O sapateiro desta vez saiu mais morto do que
vivo, e foi ter com o seu discípulo, dizendo:
— Agora
sim, estou perdido; aquele bicho sempre era bicho e foi fácil o enganar; mas
estes gigantes são gente, e como eu hei de acabar com eles? Desta eu me vou...
O discípulo lhe disse:
— Não
tem nada; vá escondido; antes dos gigantes chegarem, trepe-se num pé de árvore,
onde eles costumam comer e descansar, e amarre lá em cima três pedras muito
grandes que correspondam à cabeça de cada um. Quando eles estiverem dormindo,
corte a corda de uma pedra e deixe cair a pedra em cima da cabeça do primeiro;
depois a outra, e depois a outra, e deixe estar.
João Gurumete partiu; chegando na tal árvore
muito grande, avistou logo as três covas, que já havia no chão, feitas pelo
peso dos corpos dos gigantes, por ali dormirem. Pegou em três pedras muito
pesadas e amarrou lá era cima em três galhos da árvore, que correspondiam às
cabeças dos três gigantes, e trepou-se também lá muito quietinho e escondido
nas folhas. Quando os gigantes vinham chegando foi aquele zoadão, e o Gurumete
teve tanto medo que quase roda de cima embaixo. Os gigantes lá chegaram, e
quase batiam com as cabeças onde estava o mestre sapateiro. Ali comeram e
beberam a rachar; ficaram muito tontos, se deitaram e pegaram no sono. Aí o
João cortou a corda de uma das pedras que caiu bem em cima da cabeça de um deles,
que acordou e disse:
— Má
está a história; vocês já começam com as brincadeiras, já estão me dando
cocorotes.
Tornaram a pegar no sono. Aí o Gurumete pegou
e cortou as cordas de outra pedra, que bateu na cabeça de outro gigante, e ele
pensando também que era algum cocorote dado por um dos camaradas, zangou-se
muito, e disse que se a coisa continuasse ele ia às vias de fato. Fizeram muita
algazarra e tornaram a pegar no sono. Daí a pedaço o sapateiro largou a
derradeira pedra, que bateu na cabeça do terceiro. Eles não tiveram mais
dúvida, não: bateram mão nos alfanjes e avançaram um para o outro, e brigaram
até ficarem todos três estendidos no chão. João Gurumete desceu, cortou as
cabeças dos três e levou-as para mostrar ao rei.
Houve muitas festas; o conde Gurumete recebeu
o título de general e muito dinheiro, e ficou muito rico. Passou-se.
Daí a tempos saíram umas guerras para o rei
vencer, e as tropas do rei estavam já quase acabadas e morto o general Lacaio,
em quem os soldados tinham mais ânimo. O rei ficou muito desanimado, e os
conselheiros lhe disseram que não havia remédio senão chamar o general conde
João Gurumete, que de um golpe matou sete: o rei mandou-o chamar para ir vencer
as guerras, e então lhe havia de dar sua filha em casamento. Desta feita o
sapateiro quase cai para trás de medo. Foi ter com o discípulo e disse:
— O
bicho e os gigantes eram tolos, e agora as guerras com ferro e fogo... Valha-me
Deus!
O antigo discípulo o animou, dizendo:
— Vista-se
com a fardamenta do general Lacaio, monte-se no seu cavalo e deixe estar o
resto.
O Gurumete partiu; lá no acampamento dos
soldados não sabiam ainda da morte do general Lacaio, porque os enganavam
dizendo que ele tinha ido à corte falar com o rei. Gurumete meteu-se na
fardamenta de Lacaio, montou-se bem armado no cavalo dele, e avançou pra
frente. O cavalo disparou, e o sapateiro, que não sabia montar, ia caindo e
pôs-se a gritar:
— Lá
caio, lá caio, lá caio!...
Os soldados, que ouviram isto, supuseram que
era seu antigo general, avançaram com força e derrotaram os inimigos. Assim
acabaram-se as guerras, ficando Gurumete por vencedor, e casou-se com a filha
do rei.
Na noite do casamento houve uma grande festa,
e o antigo sapateiro bebeu demais, e quando foi se deitar, caiu na cama como um
porco roncando e pôs-se a sonhar alto:
— Puxa
mais este ponto, bate esta sola, encera a linha, olha a tripeça!
A princesa ficou muito espantada e desgostosa
e queixou-se ao pai no outro dia que estava casada com um sapateiro, tanto que
ele tinha sonhado toda a noite com os objetos de sua tenda. O rei mandou ficar
tropa à espreita e disse à filha:
— Se
ele esta noite sonhar como ontem, me avisa que ele será preso e morto.
O discípulo de Gurumete soube disto e o
avisou:
— Olhe
que você está pra levar a carepa, se esta noite sonhar com coisas da tenda,
como na noite passada; não beba hoje nada; e quando for pra cama finja que está
dormindo e sonhando com uma guerra, grite aos soldados, pegue na espada, risque
pelas paredes, e deixe estar.
Assim fez.
Na cama fingiu que dormia, pôs-se a gritar,
comandando as tropas, pegou na espada e quase feriu a princesa que teve um
grande susto. O rei, que ouviu isto, ficou muito satisfeito e repreendeu a
filha, dizendo:
— Estás
casada com um grande homem, um valente guerreiro, e me andas com histórias de
sapateiro! Não me repitas outra.
Daí por diante Gurumete dormiu em paz,
sonhando sempre com suas solas e sapatos.
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Ano de publicação: 1883
Origem: Sergipe (Brasil)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)
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