quinta-feira, 25 de novembro de 2021

História dos dois ladrões (Fábula), de Monteiro Lobato

 

HISTÓRIA DOS DOIS LADRÕES
 

Era uma vez um boiadeiro lá do sertão, que tinha cara de bobo e fumaças de esperto. Um dia veio ao Rio de Janeiro gastar os cobres duma boiada. Logo que desceu do trem e ia se encaminhando para um hotelzinho próximo, foi abordado por um homem de cara ainda mais boba que a sua. 

— Boa noite, meu senhor! — saudou o homem humildemente. 

O boiadeiro respondeu com um "boa noite" desconfiado, e foram andando juntos. O homem começou a contar uma história muito comprida. Disse que era da roça e estava completamente zonzo naquela capital. Não conhecia ninguém, não sabia tomar bondes, atrapalhava-se com qualquer coisinha — e o pior de tudo era o medão de ser roubado. 

— Isto aqui — disse ele — é gatuno de todos os lados. Ninguém pode confiar em ninguém. Os piratas não dormem. Se a gente está com dinheiro no bolso, eles conhecem pelo cheiro — e tanto fazem que deixam uma pessoa limpa. 

— Se o senhor tem tanto medo, é sinal de que está empatacado — disse o boiadeiro. 

O homem correu os olhos, com desconfiança, dum lado e doutro; depois respondeu quase num cochicho: 

— O senhor adivinhou. Todo o meu medo vem de trazer no bolso um pacote de notas no valor de dez mil cruzeiros, que lá na minha terra me encarregaram de entregar à Santa Casa. Mas não sei onde é a Santa Casa. Se pergunto, ensinam-me errado — ou então desconfiam de que estou com dinheiro... 

E deu um suspiro. Depois continuou: 

— Aquela gente lá da roça não imagina o que é isto aqui. Nem eu imaginava coisa nenhuma. Se soubesse, não vê que não me encarregava deste maldito dinheiro. Dez mil cruzeiros! Se perco o pacote, ou se algum pirata me passa a perna, vão dizer por lá que roubei — e fico desacreditado. 

— E que pretende fazer? — indagou o boiadeiro. 

— Minha ideia é descobrir um homem de bem que queira encarregar-se da entrega do dinheiro. Mas não acho esse homem. As caras desta terra não me inspiram a menor confiança. Só a sua. Assim que vi o senhor, tive um pressentimento no coração: "Aquele, sim, aquele tem cara de homem de bem." Por isso me aproximei. 

O boiadeiro ficou muito lisonjeado com a boa ideia que o homem fazia dele. 

— Lá isso, sou. Graças a Deus tenho um nome limpo. Quem quiser tratar com pessoa séria, me procure. 

O homem do pacote suspirou. 

— Deus seja louvado! Custou, mas achei. Meu coração não nega. Quando o vi descendo esta rua; palpitei cá comigo: "Meu salvador vai ser aquele homem..." 

— Mas de que maneira acha que eu possa servi-lo? — perguntou o boiadeiro. 

— Dum modo muito simples. Eu lhe dou o pacote dos dez mil cruzeiros e o senhor faz a entrega à Santa Casa. 

Os olhos do boiadeiro brilharam. 

— Pois estou às suas ordens — disse ele. — Neste mundo um tem de servir o outro. Já que lhe inspiro tanta confiança, disponha dos meus préstimos. 

— Ora graças! — suspirou o homem, tirando o pacote do bolso. Era um pacote de notas graúdas, muito bem amarrado, com uma de cem cruzeiros em cima. 

— Pois aqui está o pacote, meu senhor. E eu fico imensamente agradecido da sua bondade, Ah, nem imagina o peso que me tira do coração! Uf! Esse dinheiro estava me deixando doido... 

O boiadeiro pegou no pacote e foi abrindo a mala para guardá-lo. 

— Espere — disse o homem. — Eu tenho no senhor a mais absoluta confiança, mas sempre é bom que me dê uma garantiazinha — aí um dinheirinho qualquer, porque afinal de contas eu acabo de lhe entregar dez mil cruzeiros. Dez mil cruzeiros é uma fortuninha... 

O primeiro ímpeto do boiadeiro foi restituir o pacote. Depois mudou e disse, pondo a mão no bolso: 

— Serve uma garantia de mil e quinhentos cruzeiros? É todo o dinheiro que tenho no bolso. 

O homem cocou a cabeça vacilante. Afinal resolveu: 

— Serve. É pouco, mas serve... 

O boiadeiro puxou os cobres e deu a de mil e quinhentos cruzeiros. 

Despediram-se cada qual seguindo numa direção. 

— Dez mil cruzeiros! — foi murmurando o boiadeiro. — Dez mil cruzeiros! Para que precisa a Santa Casa de tanto dinheiro? Muito melhor eu distribuir isto lá pelos pobres da minha terra — pelo menos metade. É justo que a outra metade fique comigo, em pagamento do trabalho... 

No hotel pediu um quarto, onde se fechou para contar o dinheiro. Só encontrou aquela nota de cem cruzeiros. O resto era papel de jornal... 

 

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Ano de publicação: 1937.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)

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